JOAQUIM MORENO

GOSTAMOS DA MUDANÇA

A destruição da sede do Parque Natural do Fogo, Chã das Caldeiras, ilha do Fogo. Projecto de Oto Arquitectos

Ainda antes de esta série do J–A se concluir, uma catástrofe natural destruiu uma obra publicada nas páginas do número 250 da revista. Para um jornal que quer falar do presente, não é fácil constatar que uma Obra Feita já esteja desfeita. Perante a evidência da transformação violenta do mundo, temos de enfrentar com sobriedade a perenidade do publicado e a fragilidade de quem publica. Gostamos, com prazer e dor, desta trágica contradição, gostamos da mudança mesmo quando não gostamos das mudanças.

Quase em simultâneo com o concurso para o projecto do Fogo, Jean-Luc Godard condensava um sentido trágico semelhante a este, e também ao da vida à sombra do vulcão, numa cortina cinematográfica intitulada “Uma catástrofe”. Em 64 segundos de um tempo lento, agonizante, instantâneo, Godard sobrepõe o drama mudo das escadarias de Odessa de Eisenstein, o som televisivo de uma partida de ténis, a agonia de um soldado que expira, uma velha canção em várias línguas, um beijo estendido pela câmara lenta e legendas em fundo negro que todas juntas dizem: “Catástrofe é a primeira estrofe de um poema de amor.”

A catástrofe da erupção do vulcão do Fogo passou na televisão, e o momento em que o edifício expirava foi transmitido em directo via Skype. Um edifício que o J–A descrevia como destemido e no fio da navalha morreu ao vivo, transformado em espectáculo, como num reality show televisivo. Assistiu-se a esta catástrofe como a uma tragédia dramática, uma percepção diferente das primeiras fotos da erupção de 1951 tomadas por Orlando Ribeiro, apesar de o olhar do geógrafo também ter sido convocado para o espectáculo do presente, entremeando as primeiras imagens da erupção com a erupção convertida em imagem.

O discurso das páginas do J–A tornou-se tragicamente risível, o olhar crente no progresso e num certo simbolismo funcionalista ganhou uma literalidade cruel. Em resposta às palavras que afirmavam que o edifício “está lá, no lugar, indica a presença humana e procura tornar-se parte integrante do vulcão”, o vulcão limitou-se a confirmar os prognósticos de projecto: “Podemos entender o conjunto como uma massa porosa que se foi moldando na erosão do processo de projecto.” A obra foi engolida pela lava.

A confiança científica na sustentabilidade e nas tecnologias ditas verdes para assegurar inércia térmica num lugar chamado Chã das Caldeiras, numa ilha chamada do Fogo, também parece literatura diante da literalidade dos factos. A realidade dos factos desmentiu a ficção de tentar resolver tecnicamente a façanha simbólica de construir num chão em constante construção. Os eventos conspiraram a contrapelo, e o que era belo – o edifício no meio da cratera – demonstrou ser pouco funcional. Achar que o melhor sítio para a legenda é dentro da imagem, que a sede de um parque natural deva ser parte da sua natureza, é o género de imagem simplificada que os tempos de hoje apreciam. Era um centro de interpretação do vulcão e da paisagem que parecia feito da matéria que pretendia descrever, ainda que na realidade fosse de bloco de betão, ou seja, mimético do ponto de vista formal e autónomo do ponto de vista energético. Mas se o mimetismo formal era adaptado, a passividade mecânica era literal, e quando o lugar que o edifício interpretava chegou, devagar mas irremediavelmente perto, o edifício não conseguiu fugir.

Esta tragédia literal e simbólica chega ainda à escala do equipamento e do mobiliário. As notícias na televisão eram confusas, a protecção civil ordenava a evacuação do local, o parque natural descrevia pilhagens, a polícia dizia que os populares colaboravam no esforço de resgatar os equipamentos, e os políticos anunciavam que os geradores, os painéis solares e os computadores já estavam a ser devolvidos. A intensidade lenta da lava, avançando a 30 metros por hora, hierarquizava as mudanças. Uma catástrofe hipnótica, com o tempo do mundo, não o da arquitectura. A primeira estrofe de um poema de amor pela mudança.

Este texto foi publicado no J-A 252, Jan–Abr 2015, p. 582–583.