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Pedro Campos Costa / Isabel Barbas (texto) / André Cepeda (fotografia)

NA TERRA DO FOGO

Sede do Parque Natural Do Fogo, Chã das Caldeiras, ilha do Fogo, Cabo Verde.
Projecto de OTO Arquitectos

Construir na cratera de um vulcão é uma façanha destemida. O poder da paisagem parece ser avassalador e não deixar espaço para qualquer forma de arquitectura. Perante esse cenário, o projecto que venceu um concurso público em 2007 para a sede do Parque Natural do Fogo é uma combinação engenhosa de competência e processo. Inaugurado em Março deste ano, a obra demonstra como a melhor arquitectura se constrói no fio da navalha, entre a ficção e a realidade.

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TENSÃO E COEXISTÊNCIA

A omnipresença do vulcão domina a paisagem física e mental da ilha do Fogo. No edifício da sede do Parque Natural do Fogo há uma tensão latente na relação entre a obra e a natureza. A relação inevitável com o lugar implica a coexistência, o edifício não desaparece na paisagem, não quer desaparecer. Os arquitectos dizem que nunca foi opção enterrar, ou esconder, a arquitectura. O edifício procura apenas mimetizar a sua envolvente para pertencer ali, para ser e resistir, não como um ser estranho àquele mundo mas como um organismo que lhe pertence. Aliás, como as casas da povoação de Chã das Caldeiras, que se envolvem e fundem na paisagem pela materialidade do tecido geológico. A cor e a textura da construção parecem desmaterializar a forma. As volumetrias construídas com pedra de lava agarram-se ao território pela mão de quem o quer habitar e, com o próprio território, procura construir as suas casas e cultivar os seus alimentos. É essa a força visível nos cenários vulcânicos habitados, a força do homem que molda a matéria. O edifício da sede do Parque Natural do Fogo é um artefacto construído, é feito de matéria que não se dissolve, mistura-se e quase desaparece, mas não desaparece. Está lá, no lugar, indica a presença humana e procura tornar-se parte integrante do vulcão.

A CONSTRUÇÃO NO LUGAR

O edifício tem uma textura que sugere ter sido construído com pedra, ou lava. Mas na verdade foi construído com banais tijolos de cimento, feitos in situ e secos ao sol, como se fossem de adobe. A pedra foi descartada por razões políticas e culturais: os habitantes da ilha constroem com pedra (lava) local que está a desaparecer, pondo em risco as características naturais da paisagem. A autoridade administrativa não quis dar maus exemplos no que toca à conservação da paisagem, e o projecto optou por utilizar blocos com a tonalidade da pedra local. Chegaram a fazer-se testes com partículas de lava para se conseguir a mesma tonalidade da ilha, mas os arquitectos confessam que essa estratégia não funcionou. “Acabámos por fazer testes com pigmento da Secil, que deu mais garantias.” A secagem ao sol e a produção in situ, sugerida pelo próprio empreiteiro, foi a solução com melhor relação custo benefício.

A textura irregular das paredes resulta da manualidade do processo, com imperfeições e desfasamentos provocados na colocação das peças. O edifício mimetiza a textura porosa das superfícies de lava escura. A fragilidade do adobe de cimento é contrariada pela imponência das paredes, que chegam a ter uma tripla camada e a atingir 80 centímetros de espessura para garantir a auto-suficiência energética do conjunto. A estrutura é um sistema convencional em pilares e vigas de betão armado. O enchimento da cobertura ajardinada, cultivada com espécies autóctones, chega a atingir dois a quatro metros de profundidade, opção que também traz vantagens no desempenho térmico. A geometria da cobertura é um dos aspectos fundamentais do projecto, as rampas em espiral permitem a incorporação de depósitos de água, e a camada de enchimento é uma forma engenhosa para a filtragem da água.

Os desenhos parecem mimetizar um corte geológico. A força destes desenhos revela uma empatia com o lugar e com a sua materialidade que se compreende no conjunto e em cada detalhe. A rocha porosa e leve permite acumular humidade e alimentar o mato bravo (funcho, videira, erva-cidreira e mostardinha, entre outras), e tem o peso formal e a leveza física que justificam o detalhe construtivo inusitado. As paredes dispõem de um sistema de perfuração e de grelhas que garantem a ventilação natural dos espaços. A forma do conjunto também se caracteriza pela permeabilidade dos acessos, pelas rampas que conectam os espaços exteriores interiores, os corredores e acessos cobertos nas áreas de serviços e nas zonas técnicas. Podemos entender o conjunto como uma massa porosa que se foi moldando na erosão do processo de projecto.

A FUNÇÃO DO LUGAR

O processo teve início em 2007, com um concurso de arquitectura integrado no programa de consolidação do Parque Natural do Fogo, promovido pelo governo de Cabo Verde e com financiamento integral da Cooperação Alemã para apoio a países em vias de desenvolvimento. As sucessivas reuniões e debates com os diferentes intervenientes e utilizadores do futuro edifício levaram a uma gradual alteração do programa funcional. O projecto foi-se ajustando ao programa, ao lugar e às exigências das especialidades, particularmente às componentes térmica e mecânica. As simulações dinâmicas das especialidades foram requerendo avanços e recuos relativamente às soluções adoptadas que o desenho da arquitectura foi capaz de receber e integrar. Os autores sublinham que foi exactamente esta característica que motivou a ideia de projecto. A partir de dados concretos procuraram fazer o mínimo para integrar o máximo e tirar partido da real expressão do lugar. Sem artifícios, respeitaram a crueza dos dados, uma metodologia que acabou por caracterizar o edifício, como que sublinhando a ideia de que o funcional é belo.

O programa caracteriza-se por uma área administrativa e técnica de apoio ao Parque Natural com salas para gestão, monitorização das espécies e da actividade vulcânica e integrou um conjunto de valências de apoio à comunidade. Foi acrescentada uma biblioteca, um centro de exposições e dois auditórios, um interior e outro exterior. A infra-estrutura e os serviços prestados pela biblioteca, nomeadamente o acesso à Internet, permitem-lhe receber visitas diárias da população local, nomeadamente de estudantes. Se o primeiro objectivo foi criar um centro de interpretação do vulcão e da paisagem, foi possível ajustar o programa para que o edifício se tornasse uma mais-valia para a população. Discreto mas perceptível no impacto visual, a sua função exprime-se na consolidação de uma nova paisagem física e social.

AUTO-SUFICIÊNCIA

Desde o primeiro momento, a concepção do projecto e a sua estrutura formal procuraram responder ao problema da auto-suficiência. O lugar assim o exigia: auto-suficiência de energia, de comportamento térmico equilibrado e ventilação natural, e de gestão de águas. Esta procura fascinante de independência é um tema recorrente, mas neste contexto específico tornou-se um imperativo e não apenas um desejo ou um argumento teórico. Temas comuns foram elevados à categoria de premissas fundadoras do projecto. O edifício demonstra essa resposta, adapta a sua cércea ao relevo preexistente, no sentido de se agarrar geograficamente ao terreno, tirar o melhor partido da orientação solar e levar a que, através dos acessos e da forma volumétrica, se definam caminhos de recolha de águas pluviais.

A engenheira Maria João Rodrigues, coordenadora dos projectos de especialidades e ideóloga do sistema térmico e de produção de energia, garante que as dificuldades que o projecto apresentava se transformaram numa oportunidade criativa para pensar um edifício capaz de integrar os vários elementos passivos. A especificidade das paredes e dos seus materiais, os ensombramentos dos vãos e a cobertura ajardinada foram sendo afinados através de cálculos dinâmicos e concomitantes com o trabalho dos arquitectos. Em forma de desabafo, a engenheira confirmou: “Não é fácil encontrar arquitectos disponíveis para esta intersecção. Ao longo da minha experiência profissional foram muito poucas as situações em que realmente foi possível fazer e concretizar este tipo de experiência.”

A estratégia adoptada visou, por um lado, eliminar as cargas para climatização (aquecimento e arrefecimento), fazendo uso de uma combinação de massa térmica, isolamento, exposição solar controlada e ventilação natural, e, por outro, reduzir significativamente as cargas de iluminação artificial introduzindo níveis adequados de iluminação natural nos espaços com maior utilização. As temperaturas internas são controladas passivamente – tirando partido da interacção entre a inércia térmica (que permite a acumulação de calor durante o dia) e a ventilação natural nocturna (facilitada por grelhas dispostas estrategicamente ao longo da envolvente dos diferentes blocos). E a ventilação natural beneficia da exposição favorável do edifício aos ventos locais, promovendo, durante a estação de arrefecimento (Verão), o arrefecimento nocturno das várias áreas do edifício, particularmente nas áreas administrativas e de exposições.

Devido à integração dos sistemas construtivos, e com a vantagem de o seu uso ser exclusivamente diurno, o edifício tem um baixo consumo energético, que lhe permite funcionar normalmente em total autonomia. O uso esporádico do auditório, que vai gerar picos de consumo, fez prever um gerador de emergência para o caso de ser consumida a energia acumulada nas baterias. O sistema fotovoltaico está desenhado para ser ligado à rede (ongrid), embora a maior parte da energia produzida seja directamente consumida e o recurso às baterias seja muito reduzido. A gestão das águas, um bem escasso, é feita através de dois tanques de recolha estrategicamente colocados por baixo da cobertura ajardinada. A água pluvial é tratada localmente e está integrada num circuito de consumo que a reutiliza para todos os usos.

O LUGAR DO ENGENHO

A sede do Parque Natural do Fogo é um engenho complexo; simultaneamente austero e racional, é, também, como um pedaço de lava. O trabalho dos arquitectos foi capaz de gerar uma infra-estrutura que pertence ao lugar. O presidente de Cabo Verde, Jorge Carlos Fonseca, considerou este edifício um símbolo da arquitectura contemporânea cabo-verdiana. A referência é legítima porque a obra representa a tensão entre o engenho humano e a inclemência da natureza, entre o Homem e a força esmagadora do Vulcão. Tal como na Casa de Lava, filme de Pedro Costa rodado na ilha do Fogo em 1993, ou em Stromboli, filmado em 1950 por Roberto Rossellini, a paisagem e as tensões das relações sociais que se geram à margem do vulcão caracterizam-se pelas margens ténues entre a ficção e a realidade. Entre o mimetismo e a insinuação, não é claro se neste edifício pertencemos, ou não pertencemos, ao vulcão. Tal como em Stromboli, não vivemos sem ele, não vivemos com ele.

Este texto foi publicado no J-A 250, Mai — Ago 2014, p. 378 – 389.

De um ponto de vista energético, o edifício tem independência total. A produção de energia é conseguida através de painéis fotovoltaicos integrados na cobertura, a qual, por não ter inclinação, minimiza os desperdícios e favorece a integração dos equipamentos na ideia do projecto. O campo fotovoltaico divide-se em quatro strings de 20 painéis cada, ligados a um inversor de rede trifásico modelo STP17000 da SMA com potência nominal de saída de 17 kW e factor de potência 1. A matriz fotovoltaica tem uma produção anual de 35,2 MWh, a que corresponde uma produtividade de 1870 kWh/kWp, um ráciode desempenho de 78,9% e uma eficiência global anual média de 11,3%. A componente passiva do edifício é de grande eficácia e foi calculada com a plataforma de interface Design Builder (motor de cálculo EnergyPlus), que permite simular o comportamento térmico com modelos de análise dinâmica.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

SEDE DO PARQUE NATURAL DA ILHA DO FOGO
Localização
Chã das Caldeiras, ilha do Fogo, Cabo Verde
Projecto
2007-2013
Conclusão da Obra
2013
Cliente
Ministério da Agricultura
Área Total de Intervenção
3200 m2
Valor de Construção
1 200 000 €
Financiamento
KFW | General coordination, GOPA