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Boomers sob o calor intenso do Verão da Beira Baixa



André Tavares (Texto) / Valter Vinagre (Fotografia)

‘WE ARE LOVE’

Boom Festival. Idanha-a-Nova

Há um festival de Verão que aposta na arquitectura como argumento forte da sua programação. Ao lado da música e da experiência colectiva que atrai milhares de pessoas a um mesmo lugar num mesmo momento, o Boom quer ser um instrumento de mudança, “criar uma realidade que se relacione de forma positiva com o meio ambiente e contribua para a educação e o conhecimento”. A arquitectura do Boom não é canónica, mas responde a considerações técnicas e a problemas ambientais sem pôr em causa a experiência psicadélica da música. Talvez por isso mesmo a organização do espaço e das formas construídas ofereça pistas para ultrapassar os limites das convenções e repensar o universo tal qual o conhecemos. “We are love” é o lema deste festival: haverá lugar para uma arquitectura do amor?

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UMA POLÍTICA PARA A LOGÍSTICA

Em cada Verão multiplicam-se os festivais de música. Cada festival exige uma logística complexa, que envolve receber temporariamente milhares de pessoas. São operações que se aproximam da arquitectura militar, activando estruturas leves e sistemas de abastecimento capazes de garantir o conforto e a fruição de um momento singular. No espaço de poucas semanas, montam-se e desmontam-se cidades, com espaços de habitação (campismo) e comércio (alimentação e não só), estacionamentos para milhares de viaturas, cargas e descargas, e, infalivelmente, todos os focos apontam para palcos e cenários monumentais. Na maior parte dos casos, a arquitectura sucumbe perante a engenharia e os sistemas modulares industrializados, mas há um festival português onde a arquitectura assume um papel preponderante, e, do marketing à experiência física do lugar, a organização do espaço e as formas construídas são elementos centrais da concepção desse evento. O Boom Festival, o mais internacional dos festivais portugueses e que tem como matriz a cultura psicadélica e a música Trance, é, também, um festival de arquitectura.

A valorização da arquitectura está em consonância com as preocupações sociais e ecológicas subjacentes à cultura específica deste festival. O discurso da sustentabilidade, das energias renováveis, da compostagem dos resíduos sanitários, da protecção dos ecossistemas, da bioconstrução e das práticas ambientalmente conscientes faz parte de uma postura política da organização e dos participantes. Não se trata de uma lavagem de consciência ou de um vocabulário sonante para atrair financiamentos a fundo perdido, uma vez que a venda de ingressos cobre integralmente os custos do festival (os bilhetes custam entre 120 e 160 euros e o número de entradas é limitado, com a lotação esgotada muito antes do evento). Ou seja, há convicção na possibilidade de construir um mundo alternativo à sociedade de consumo, e a construção física do espaço do festival reflecte essa convicção e toma formas objectivas. Isto independentemente de a realidade ser mais cruel do que o sonho e, feitas as contas, as acções e estratégias do festival se inscreverem no próprio contexto social e económico que é contestado. Essa domesticação explica a “terceira vaga” que o Boom atravessa: se nos primeiros anos era um festival declaradamente “anarquista”, passando depois por uma época “psicadélica”, o Boom é agora “ecotech”.

Durante sete dias de Agosto, o recinto do Boom acolhe cerca 30 mil pessoas, activas 24 horas por dia. Como se organiza um espaço desta natureza? Segundo a explicação de Artur Mendes, um dos organizadores do festival, a estratégia parece simples, algures entre uma teoria vitruviana e uma concepção moderna do planeamento. O trabalho começa por reconhecer a natureza do lugar, nomeadamente as características topográficas e geológicas do terreno, os recursos hídricos e caminhos de água, a existência de sombras naturais, as pendentes mais apropriadas para construir o assentamento. O segundo momento cruza a definição do zonamento com o sistema de fluxos: um festival é feito de circulação, entre as zonas de campismo e os palcos, entre as áreas de repouso e os espaços de alimentação. Os fluxos de público encontram a natureza do lugar e tudo parece acontecer naturalmente, como se a singularidade da experiência social psicadélica apagasse o esforço e a razão subjacentes à concepção do recinto.

A Herdade da Granja, com cerca de 150 hectares na margem da albufeira da barragem de Idanha, é ocupada pelas áreas de repouso e pelos vários palcos do festival. Em torno dessa zona central foram preparados 41,3 hectares para campismo, 19,1 hectares para caravanas (e tendas) e 19 hectares de estacionamento. Há um controlo de acessos único, e todo o recinto é cuidadosamente vedado. Apesar do sistema de acessos e transportes públicos, a massa interminável de automóveis recobertos de poeira fina é a porta de acesso ao “mundo Boom”. Tractores transformados em navettes fazem a ponte entre o estacionamento e o campismo e o ponto fulcral dos acontecimentos do festival: as margens da albufeira, onde estão localizados os palcos para a música e as tendas para a dança. Há aspectos logísticos cruciais, nomeadamente a gestão do consumo de água em chuveiros (a água é gratuita e fornecida a partir da rede pública), ou a opção pela compostagem de resíduos sólidos nos sanitários. Também aqui se sente a nota ecológica do festival, quando os organizadores afirmam “adoramos transformar dejectos em terra fértil”. Essa terra, por sua vez, é utilizada para a produção hortícola, consumida especialmente no tempo da montagem das estruturas antes do festival. Durante os dias de festa há 315 pessoas que se ocupam permanentemente da limpeza do recinto, o que ainda assim não evita a presença constante de priscas de cigarros pelo chão. Isto para além dos 45 espaços de alimentação (e dos respectivos sistemas de cargas e descargas), das equipas de segurança, dos postos de cuidados médicos, dos escritórios para coordenação e, também, dos técnicos de manutenção dos poderosos equipamentos sonoros sobre os quais se concentram todas as atenções do festival.

Há um ponto-limite em que a dimensão do recinto, a complexidade logística e a presença da multidão entram em conflito com as expectativas de alternativa política e cultural. A dúvida sobre os terminais de multibanco permite aferir essa tensão. Apesar das longas filas para levantar dinheiro, os organizadores dizem que para a próxima edição não haverá mais terminais, “estar no Boom não é como estar num shopping center”, uma afirmação que condiz com a dúvida:

… entre os boomers as opiniões divergem sobre o que traz um número crescente de participantes: para alguns perde-se o espírito do festival, para outros demonstra que há cada vez mais pessoas inflamadas com o espírito do psytrance, a cultura psicadélica e formas alternativas de vida.

A organização do festival garante que o objectivo é a qualidade, “no futuro haverá menos bilhetes disponíveis”.

O OVO E A GALINHA

O epicentro do Boom é o Dance Temple, uma catedral construída em bambu. A dimensão é colossal (uma forma com cerca de 75 metros de diâmetro e torres entre 25 e 31 metros de altura) e a complexidade técnica é evidente. Trata-se de um conjunto com uma planta cruciforme de quinze módulos abobadados, envolvidos por um anel de torres que suspendem quatro “folhas”, cobrindo os mais de quatro mil metros quadrados de área de dança. O foco das atenções é o palco, numa das extremidades da cruz para onde a ligeira pendente do terreno aponta, mas a força vertical das estruturas de bambu gera um espaço isotrópico. As torres são os elementos formalmente mais intrigantes, compostas por seis costelas verticais, subdividem-se em três níveis estruturais (base, fuste e espiral), articulados por cintas, anilhas e parafusos metálicos. As colunas levantam um mastro que permite suspender o cordame que dá forma às telas, e são também utilizadas para incorporar a iluminação decorativa que dá presença nocturna à estrutura. No ponto de maior diâmetro do nível da base é lançado um anel de espigões que sustêm telas num raio de sete metros, telas essas que se associam às quatro folhas e à cruz central, rematando a composição. A construção em bambu é complementada com um aparato tecnológico substancial, nomeadamente cablagens para a ligação entre a régie, o palco e a distribuição dos pontos de difusão sonora, bem como um aparato decorativo assinalável.

A forma espiralada das colunas leva os autores a citar a Sagrada Família como modelo, um projecto em busca da dimensão sagrada do espaço. Mas as estruturas têxteis que o cobrem parecem ser o aspecto mais importante do pavilhão, seja para sombrear a multidão que dança, seja para garantir o melhor desempenho acústico da tenda. A qualidade do som é extraordinária e a estrutura em bambu e tela transforma-se numa caixa de ressonância e absorção para a amplificação sonora. Talvez seja o problema do ovo e da galinha: o que terá chegado primeiro? Os autores do projecto não confirmam nem desmentem, como nos diz François Baudson:

“a arquitectura do Dance Temple” como um espaço de comunhão influenciado pela Sagrada Família foi seguramente mais potente do que o som.

Em primeiro lugar, as pessoas reúnem-se naquele “espaço sagrado” para desfrutar da experiência proporcionada pela música. As grandes colunas e as torres de amplificação que construímos para a Funktion-One são uma tentativa algures entre o som e o design… E, afinal, não é tudo isso arquitectura

Esta ambiguidade de leitura também é confirmada por Gerard Minakawa:

Não sei se “estar dentro de um altifalante gigante” é uma coisa boa ou má , mas é certo que tivemos de articular o desenho estrutural com a equipa Funktion-One antes de construir o que quer que fosse. O contributo deles foi muito grande desde o início do processo.

É o mesmo conflito entre razão e emoção que também encontrámos em conversa com André Soares, um dos arquitectos do Boom. Há uma prática do projecto que assenta em fundamentos ideológicos ou conceptuais, a razão da construção e os seus suportes tecnológicos apenas oferecem os instrumentos necessários para levar a cabo a obra. Apesar de os instrumentos serem determinantes no desenvolvimento do projecto, torna-se absurdo focar a atenção nesses aspectos: se os instrumentos fossem outros, a obra seria outra, mas a ambição seria a mesma.

Se a concepção do Dance Temple foi confiada a Gerard Minakawa e François Baudson, o modelo tridimensional para o cálculo da estrutura e controlo de execução foi desenvolvido pela mexicana Alejandra Sotelo Cortés, assim como outra equipa desenhou as lonas da cobertura e outros artistas colaboraram na formalização das portas de entrada, tal como a equipa Funktion-One desenhou o desempenho sonoro. Ao contrário de outros pavilhões do Boom, no pavilhão de bambu a predeterminação do projecto é fundamental. A tecnologia adoptada exige um controlo de representação e detalhe que aproxima o trabalho do design industrial, afastando o desenho dos  modelos de representação convencionais. Plantas, cortes e alçados apenas fazem sentido enquanto representações esquemáticas que orientam a distribuição de cablagens dos sistemas de som e iluminação. A simplicidade aparentemente natural da obra, muito apreciada pelos boomers, só é possível graças à sofisticação tecnológica subjacente ao projecto. Este paradoxo, mais do que ser uma contradição, está no cerne da cultura Boom. A tecnologia oferece os instrumentos necessários para superar os limites do convencional e abre caminhos para construir uma sociedade mais bela. As arquitecturas do Boom são um reflexo dessas experiências.

ARQUITECTURA EXEMPLAR

O espaço do festival usa-se em movimento. Os boomers transitam entre o Dance Temple e os Chill Out Gardens, ou entre o Alchemy Circle e Liminal/Art Museum, contemplam o Sacred Fire a poente do recinto ou alimentam-se nas tendas a nascente, tomam banho na Funky Beach ou sobem para as zonas de campismo. O movimento não é aleatório, os telefones móveis são a tecnologia fundamental para a navegação (e para o encontro), e cada construção é como um farol que orienta o movimento. Não há uma rede de infra-estruturas a ordenar um território, há construções, cada uma com o seu simbolismo voluntarioso, que marcam pontos de referência e estruturam a paisagem. Cada palco, ou cada função, ganha estatuto de monumento, na medida em que se organiza de forma auto-suficiente e é capaz de gerar referências na estrutura do conjunto.

Há obras muito diferentes, mas todas parecem decorrer de uma paixão específica. O Chill Out é povoado por criaturas moldadas em terra, há vários cestos e ninhos que convidam à intimidade e, cada uma dessas peças tem o seu artesão, que as constrói no lugar, em comunhão com outros construtores, que depositam na obra um afecto particular. Ou, noutra perspectiva, também há marcos especiais, como a Wish Tower, uma torre colorida e luminosa desenhada pelo colectivo Like Architects. E outros palcos são estruturas mais ou menos convencionais. No meio desta biodiversidade de arquitecturas, tal como o Dance Temple, destaca-se o pavilhão Liminal.

O Liminal é uma sala de conferências construída em superadobe, uma técnica que usa a terra de argila ensacada em sacos de propileno e que permite a construção de paredes com formas orgânicas, apiloadas, mas sem necessidade de recorrer a cofragens. As paredes circulares constroem vários nichos com uma resistência térmica notável (que oferecem aos boomers pequenas salas frescas que contrastam com o calor de Idanha), e esses nichos conformam um espaço interior coberto com um toldo tensionado entre o palco e uma série de mastros contrapostos às curvas do superadobe. André Soares, o arquitecto, destaca o papel fundamental do trabalho de colaboração no momento da construção. A equipa debate o projecto, e cada um, com a sua competência, dá forma a uma obra colectiva. Há uma grande margem para improvisação, tirando partido não apenas dos percalços inesperados, mas, sobretudo, das capacidades e empenho de cada um dos colaboradores-construtores. A obra torna-se um lugar de ensaio e experimentação, mas, como nos sublinha o arquitecto, torna-se sobretudo um lugar de “celebração do conhecimento”. O esboço inicial lança a “semente da ideia” e oferece espaço para cada trabalhador partilhar o seu prazer e as suas competências, coordenando e integrando esses contributos numa construção orgânica. É uma homenagem à “arquitectura sem arquitectos”, mas, mais do que isso, é uma noção de projecto que abre outros caminhos à noção de eficiência. Como nos diz André Soares, “a obra faz-se na obra, não no projecto. Não podemos ficar prisioneiros do projecto.”

EXPERIÊNCIA PSICADÉLICA

Os boomers são criaturas únicas. Circulam pela noite em direcção ao palco certo, à experiência física do som e ao prazer dos sentidos, sempre sorridentes. O Boom é um mundo à parte, um universo fechado onde tudo parece fazer sentido, uma experiência acelerada pela combustão psicotrópica que transparece nos rostos e nos corpos sob o calor intenso da Beira Baixa. Será que a arquitectura também pode ser assim?

Este texto foi publicado no J-A 251, Set — Dez 2014, p. 462 – 475.

A face mais explícita das possibilidades abertas pelo conhecimento e pelo domínio tecnológico é manifesta na gestão de recursos urbanos. A utilização de energias renováveis, especialmente energia solar, o tratamento orgânico da água e o recurso à compostagem combinam o refinamento técnico com a vontade de uma utilização consciente dos recursos (10% dos materiais de construção utilizados são reciclados, na maioria provenientes do Rock in Rio, 60% são materiais naturais e apenas 30% materiais industriais).

 

Em 2014, o Boom teve lugar pela décima vez, dezassete anos após as primeiras edições do festival. Esta também foi a quarta edição do festival em Idanha-a-Nova, a segunda no mesmo lugar, que, entretanto, irá acolher as próximas edições do festival. Esta fixação progressiva traz uma mudança substancial: o que antes era uma ocupação temporária vai passar a ser permanente.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

DANCE TEMPLE,
BOOM FESTIVAL 2014
Localização
Boom Festival, Idanha-a-Nova
Projecto
2013
Construção
Junho-Julho 2014
Cliente

Good Mood Lda., Boom Festival
Concepção
Gerard Minakawa – Bamboo DNA em colaboração com o Boom Festival
Coordenação
François Baudson – Boom Festival
Projecto Execução
Alejandra Sotelo Cortés
Lonas
Marcella Angrisano (ITA) com Hugo Cerón, Luis Cerón (México) e Francesca (FR)
Entrada e Frente de Palco
Carey Thompson (EUA)
Entrada Venus e Decoração
Carin Dickson (Artescape) com Daniel Popper e equipa (ZA)
Gallery of Light
Jan Balbaligo, Alejandra Sotelo Cortés e Lucy Seiler
Som
Funktion One
Engenharia
Montaluga – Andaimes Unipessoal, Lda.

 

 

BOOM FESTIVAL 2014
Produção de Lixo
Indiferenciado: 158 toneladas
Reciclado: 25 toneladas
Orgânico: 44 toneladas
Consumo de Água (rede pública)
4 milhões 929 mil litros
Tratamento de águas residuais in loco
Sanitários Secos
284 unidades
253 m3 de dejectos em compostagem
50,6 m3 estimativa de composto utilizável a um ano
156 mil litros de líquido fertilizante (poupança de 249 464 litros de água relativamente a sanitários convencionais)
Papel Higiénico
630 quilómetros