Ivo Oliveira

Um destino cego para a casa da Justiça

No passado mês de Junho, o Ministério da Justiça tornou públicas as “Linhas Estratégicas para a Reforma da Organização Judiciária”. As “Linhas Estratégicas” propostas têm o objectivo paradoxal de promover uma maior concentração da oferta judicial sem prejuízo da descentralização dos serviços judiciários. Ao longo das 525 páginas do documento – que também justificam a estratégia que conduzirá ao encerramento de 54 tribunais –, apesar de se afirmar ter sido ponderada “a qualidade das instalações de cada tribunal”, não há qualquer referência que articule as decisões tomadas com o seu impacto no património construído. As “Linhas Estratégicas”, nas palavras da ministra da Justiça, suportam tecnicamente uma reforma que prima pela “simplicidade, pela agilização e por melhor justiça para os cidadãos”. Mas que justiça é essa que, focada exclusivamente nas instituições, ignora a relação dos cidadãos com os edifícios e destes com as instituições que albergam?

Não nos vamos deter aqui nas questões judiciais que conduzem a esta proposta, ela quer ser o momento zero de um debate que já vai longo. Tome-se por exemplo o estudo de 2002 do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, a partir do qual se tem reconhecido “a ineficiência das reformas para combater os bloqueios do sistema judicial” e se tem apelado a um “pacto para a justiça” capaz envolver e produzir consensos entre as diferentes forças políticas e agentes judiciais. Com consciência dessa necessidade, as “Linhas Estratégicas” oferecem-se a uma ampla discussão pública, debate difícil na medida em que vários actores judiciais e políticos têm produzido uma argumentação violenta, que faz duvidar ser possível alcançar um documento final com capacidade aglutinadora. Perspectiva-se que, mais do que um “pacto para a justiça”, se suceda uma imensidão de Decretos-Leis e Portarias que respondem parcelarmente às ambições de diferentes actores, garantindo a permanência de uma estrutura judicial cuja configuração poucos sabem descrever e na qual poucos se reconhecem. Os arquitectos não devem, nem podem, ficar silenciosos neste debate, uma vez que os documentos e as discussões públicas que se têm realizado parecem ignorar que as relações entre os cidadãos e as instituições têm lugar em edifícios e que, para além das instituições judiciais, a dimensão urbana de cada lugar é fortemente abalada com a perda do valor simbólico e da carga funcional que os tribunais oferecem.

A fundamentação para o encerramento de cada um dos 54 tribunais teve como principal factor o volume processual de cada comarca, não deixando, no entanto, de referir que a decisão está articulada com aspectos como a acessibilidade, as ligações às comarcas vizinhas, o número de habitantes e as condições dos edifícios. Contudo, à excepção do tribunal de Avis, onde se refere “a muito acentuada degradação física das instalações”, ou de Penacova (cujo encerramento não está previsto mas poderá acontecer, devido à extrema degradação do edifício) é inexistente qualquer referência às instalações, à sua administração, ao investimento recente feito pelo Estado ou pelos municípios, aos custos de manutenção e ao impacto urbano que o seu encerramento poderá causar. Em boa verdade, o que se discute é apenas o encerramento da instituição Tribunal, sugerindo-se em alguns casos a permanência de funções no edifício, nomeadamente as “secções de proximidade” que substituirão as “extensões judiciais”, uma espécie de secretaria avançada capaz de prestar informações sobre os processos que decorrem noutros lugares. E se se poderia pensar que a retracção corresponde a um controlo de custos com rendas pagas pelo Estado, verifica-se que 21 edifícios a esvaziar são propriedade de câmaras municipais, 19 pertencem ao Instituto de Gestão Financeira e de Infra-Estruturas da Justiça, 12 são do Estado e apenas os tribunais de Sever do Vouga e Sines são arrendados. Impõe-se, então, a pergunta: o que se ganha com o abandono dos edifícios? Quem os irá tomar a seu cargo? Quem irá garantir a sua preservação? E com que meios?

Tome-se, como exemplo, o Tribunal do Cadaval. É um edifício que pertence ao Estado, cujo projecto resultou de um concurso público lançado em Setembro de 1996. A equipa vencedora, coordenada pelo arquitecto Nuno Leónidas, desenvolveu o projecto entre 1996 e 2000. Foi construído entre 2001 e 2005 e correspondeu a um investimento global próximo dos dois milhões de euros. São 1400 metros quadrados de instalações de alta qualidade, pensados para acolher o tribunal e uma conservatória, não tendo sido considerada, em nenhuma fase do projecto, a possibilidade de o edifício vir a acolher um outro uso. O desaparecimento do tribunal e a criação de uma “secção de proximidade” deixará devoluta grande parte do edifício e não deixará de implicar uma drástica redução da carga urbana que actualmente existe. A estratégia urbana do município é assim posta em causa e, considerando que o debate sobre as “Linhas Estratégicas” não está encerrado, a Câmara Municipal do Cadaval tem lutado pela preservação, no município, dos três poderes, tendo proposto ao Ministério da Justiça a criação de um tribunal arbitral de natureza fundiária. Uma proposta que, segundo o chefe de gabinete da ministra, foi acolhida positivamente, mas sobre a qual pouco se sabe. Apesar destas soluções pontuais, subsiste a preocupação: terão os municípios condições de reprogramar ou reinventar estes edifícios após a retirada do Estado? Como poderão reequacionar estratégias específicas de consolidação e desenvolvimento urbano?

Outro caso exemplar é o do tribunal de Melgaço, propriedade do Estado e inaugurado em 2002. A decisão do encerramento não considera o investimento feito pelo município – que passou pelo financiamento da expropriação do terreno e pela prestação de apoio técnico à construção. A decisão de abandonar o edifício põe em causa o objectivo municipal de desenvolver um centro administrativo no qual o munícipe pudesse aceder aos serviços da Administração Central e Local. Os tribunais desempenham um papel específico no ambiente urbano e, para o melhor e para o pior, são a representação pública do poder judicial. Desconectar o exercício dessa função do Estado do lugar onde essa função se exerce não só pode empobrecer o ambiente urbano, como tende a desligar o que se vê do que contém. Tal caminho poderá não trazer danos e até impulsionar estratégias e lógicas menos óbvias de uso e experiência do espaço público, mas por enquanto essa possibilidade é apenas uma expectativa. O que se consuma é a perda de postos de trabalho em lugares onde a solidez urbana está a ser ameaçada. Uma reforma judicial deve ultrapassar a dimensão tecnocrática de avaliar as instituições apenas pela quantificação sectorial do seu desempenho.

O conjunto heterogéneo dos tribunais portugueses testemunha as oscilações da justiça. A idade dos edifícios, o carácter provisório de alguns, a diversidade dos contextos urbanos onde se implantam, o seu estado de conservação, revelam decisões e hesitações que têm décadas. A relação entre o Estado e o Cidadão depende de múltiplos factores, e a dimensão física dessa relação é um aspecto crucial para o seu desempenho. Apesar de a justiça ser cega, deverá ser consciente do papel fundamental que a sua casa desempenha no território. Essa relação, no que concerne à arquitectura, tem uma expressão substancial em três frentes, que ultrapassam o desempenho específico da quantidade de processos em curso.

A primeira frente é funcional, na medida em que a mera actividade do edifício gera empregos locais, é capaz de desencadear dinâmicas urbanas e de criar sinergias com outros equipamentos públicos e privados. As decisões de localização, ampliação e encerramento deverão ter em conta não apenas o desempenho de cada braço da instituição, mas a sua relevância urbana e a articulação com outras funções do Estado no lugar, dando substância às relações interministeriais (saúde, educação e outras) e a uma estratégia integrada para o território.

A segunda frente é financeira, na medida em que o investimento no património edificado deve ser contínuo e não feito por supetões. Não se trata de dizer que se vão construir novos tribunais (ou que se vão fechar velhos) trata-se de reconhecer a necessidade de um investimento contínuo que permita não apenas garantir a manutenção dos edifícios mas a sua constante contemporaneidade, impedindo decisões estapafúrdias como a do possível encerramento de um tribunal apenas porque o seu edifício está em mau estado de conservação (como se encerrar o edifício fosse o garante da sua recuperação). O exercício da justiça exige dignidade, e essa dignidade exige investimento e a mobilização do conhecimento específico dos arquitectos.

A terceira frente é simbólica, na medida em que a estrutura institucional do Estado deve ser expressa na forma como este se faz representar fisicamente no território que é suposto tutelar. É necessário que a população e a administração compreendam a forma física dos edifícios da Justiça e a sua distribuição territorial. Essa legibilidade poderá oferecer chaves determinantes para a compreensão pública do que é o sistema judicial português. Não se trata de criar monumentos estanques, reflexos de uma arquitectura afirmativa e autoritária; os arquitectos dominam os instrumentos necessários para conciliar representação e flexibilidade e para adaptarem edifícios capazes de reagir à instabilidade contemporânea.

Perante o cenário de crescente compartimentação e legitimação tecnocrática de decisões cruciais para o Estado e para as cidades, os arquitectos não podem abster-se de fazer valer o seu contributo disciplinar. Provavelmente haverá tribunais para encerrar, outros para abrir, mas alguém deverá considerar valores que ultrapassam a tecnocracia do número de processos aviados em cada secretaria.

 

Este artigo foi publicado no J-A 246, Jan — Abr 2013, p. 66-69.

54 tribunais em vias de extinção: Alcácer do Sal (Fernando Lobato Guimarães, 1976) / Alcanena (edifício adaptado) / Alfândega da Fé (edifício adaptado) / Almodôvar (edifício adaptado) / Alvaiázere (Caetano da Silva, 1991) / Ansião (Carlos Ventura Dias, 1999) / Armamar (Fernando Lobato Guimarães, 1992) / Arraiolos (edifício adaptado) / Avis (edifício adaptado) / Bombarral (edifício adaptado) / Boticas (Manuel Ferrão de Oliveira, 1979) / Cadaval (Nuno Leónidas, 2005) / Carrazeda de Ansiães (edifício adaptado) / Castelo de Vide (edifício adaptado) / Castro Daire (Raul Rodrigues Lima, 1971) / Ferreira do Zêzere (edifício adaptado) / Fornos de Algodres (PLABI, 1997) / Golegã (Armando Fernandes Amorim, 1967) / Mação (Pardal Monteiro, 1994) / Meda (Luís de Azeredo, 1998) / Melgaço (Cristina Santos, 2002) / Mértola (Fernando Varanda, 2000) / Mesão Frio (edifício adaptado) / Mira (edifício adaptado) /  Miranda do Douro (Leonardo Castro, 1966) / Monchique (edifício adaptado) / Mondim de Basto (edifício adaptado) /  Murça (Mário Santos, 1998) / Nelas (edifício adaptado) / Nisa (Raul Rodrigues Lima, 1962) / Nordeste (edifício adaptado) / Oleiros (edifício adaptado) / Oliveira de Frades (Maria Otília dos Santos, 1987) / Pampilhosa da Serra (António Madeira de Portugal, 1993) / Paredes de Coura (António Afonso, 1992) / Penamacor (edifício adaptado) / Penela (António Madeira de Portugal, 1982) / Portel (Consulmar, 1999) / Povoação (Gomes Fernandes, 1991) / Resende (Manuel Silva Rodrigues, 1988) / Sabrosa (edifício adaptado) / Sabugal (Carlos Chambers Ramos, 1966) / São João da Pesqueira (edifício adaptado) / São Vicente (edifício adaptado) / Sátão (edifício adaptado) / Sever de Vouga (arrendado) / (arrendado) / Soure (Luís Amoroso Lopes, 1972) / Tabuaço (Miranda Gomes, 1992) / Valpaços (Luís Oliveira Martins, 1986) / Vila Nova de Foz Côa (Consulplano, 1992) / Vimioso (Raul Rodrigues Lima, 1951) / Vinhais (Raul Rodrigues Lima, 1970) / Vouzela (Lopo Prata, 1991)

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A primeira reforma democrática ao sistema judicial foi realizada em 1977, dissociou a divisão judicial da divisão administrativa e criou novas comarcas. Em 1987 apostou-se na crescente hierarquização do sistema, criando três níveis de tribunais de 1.ª instância e os tribunais de círculo. Em 1999 extinguiram-se os tribunais de círculo e criaram-se tribunais de competência especializada (menores, família, comércio, entre outros) e a comarca afirmou-se como a “célula base do tecido judiciário de 1.ª instância”. Em 2008 criou-se a figura da comarca-piloto, na qual se instalam serviços especializados comuns e que preside a um conjunto alargado de comarcas. As “Linhas Estratégicas”, de 2012, onde é perceptível a oscilação entre um modelo que concentra e um modelo que aproxima, foram delineadas para reequacionar a reforma de 2008 ainda em curso na sequência da primeira avaliação da Troika ao Memorando de Entendimento assinado em Maio de 2011 entre o Estado Português, a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional.

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O documento “Linhas Gerais para a Reforma da Organização Judiciária”, que estabelece os princípios gerais do novo Mapa Judiciário, foi produzido pelo Ministério da Justiça, colocado em discussão pública a 15 de Junho de 2012. A nova lei que decorreu desse debate foi aprovada em Conselho de Ministros a 22 de Novembro de 2012 e não foi tornada pública a tempo de ser considerada na elaboração deste artigo, que apenas considerou o projecto de lei a que tivemos acesso.