(1)

O terminal e o molhe, a partir do Castelo do Queijo



IVO POÇAS MARTINS (TEXTO) / NUNO CERA (FOTOGRAFIA)

TURBILHÃO

Novo Terminal de Cruzeiros de Leixões, Matosinhos.
Projecto de Luís Pedro Silva

O novo Terminal de Cruzeiros é a face mais visível de uma importante reestruturação em curso do porto de Leixões, capaz de afectar a sua organização interna e a sua relação com a cidade e com a região. O edifício é uma das maiores obras de carácter público construída no norte do país nos últimos anos, e constitui também a dimensão visível do contributo da arquitectura num processo complexo de mediação de diferentes poderes em actuação e confronto no território.

O PORTO DO PORTO

A estrutura portuária construída no estuário do rio Leça data de finais do século XIX. Os cem anos que seguiram esta fundação foram marcados pela progressiva absorção da actividade portuária que tinha lugar na cidade do Porto, facto que em grande medida se explica pela dificuldade da entrada das embarcações na embocadura do Douro, marcada por sucessivos e trágicos registos de naufrágio. Como em muitas outras cidades, a especialização e modernização da actividade portuária, nomeadamente o processo de contentorização do transporte de carga, foi responsável pela situação actual, em que o porto, apesar do seu papel fundamental para a vitalidade económica da região, tem pouca ou nenhuma relação com a sua envolvente urbana. O desaparecimento do afã portuário do contexto urbano e a tentativa de o amenizar são tão antigos como a da história do próprio porto.

O arquitecto Luís Pedro Silva integrou, desde 2003, a equipa que elaborou o Plano Estratégico do Porto de Leixões, que, além da melhoria funcional do porto, visava a inversão desta relação. Nesse âmbito, faziam parte das recomendações a criação de um parque urbano no Vale do Leça, a articulação directa do porto com as novas infra-estruturas rodoviárias a nascente, e a melhoria das condições existentes de acolhimento de cruzeiros de passageiros. Na sequência do estudo anterior, o atelier de Luís Pedro Silva foi convidado a desenvolver um estudo prévio para o programa de passageiros, que, além da solução formal e da localização da infra-estrutura, tinha como objectivo definir o programa do edifício e elaborar um estudo de viabilidade económica.

O primeiro projecto apresentava cinco cenários com diferentes posições no porto, cada um deles com diferentes modos de articulação com a envolvente. A versão escolhida era já próxima da que foi materializada, quase no extremo do molhe sul. Da proposta fazia parte um conjunto de operações: a construção de um novo cais de acostagem para cruzeiros, um porto de recreio, o edifício para a estação de passageiros, um arruamento de acesso público ao longo do molhe ligando ao passeio marginal da praia de Matosinhos, e a conquista de acesso público a uma área ajardinada – como prolongamento do Jardim do Senhor do Padrão – que agora é um espaço expectante reservado ao porto.

O movimento no porto de Leixões, gerido pela Administração dos Portos do Douro, Leixões e Viana do Castelo (APDL), integra os usos de transporte de carga, pesca, navios de passageiros e barcos de recreio. A aposta no reforço das condições da actividade cruzeirista pretendia permitir a acostagem de navios de maior porte e ampliar a capacidade de receber passageiros em turnaround, ou seja, que efectuam embarque e desembarque (o que implica uma infra-estrutura para a logística das malas e o check-in de passageiros). Esta função permite conquistar proveitos materializáveis de forma indirecta na economia local e abre a possibilidade de estender os períodos de permanência de turistas por mais uma ou duas noites na região. O antigo Terminal de Passageiros Norte, um imóvel classificado projectado pelo arquitecto Francisco Figueiredo em 1955, apenas pode acolher 600 passageiros em turnaround, e o seu cais está limitado à acostagem de barcos de 250 metros. O novo cais tem capacidade para barcos até 340 metros e está localizado logo à entrada do porto, o que simplifica as manobras dos cruzeiros e minimiza a interferência deste tráfego nos movimentos de barcos de carga. Desde a abertura deste novo cais em 2011, o volume de entrada de navios-cruzeiros cresceu substancialmente, sem afectar o funcionamento das outras actividades portuárias.

UM REDEMOINHO DE BETÃO

O edifício do Terminal de Cruzeiros de Leixões está implantado entre o molhe sul e o cais de acostagem de cruzeiros, a 800 metros da linha de costa, no ponto de transição entre o tramo recto e o sector curvo do molhe. Entre o molhe e o cais está a futura marina de recreio, onde existe uma outra plataforma de acostagem destinada à trasfega de passageiros dos grandes navios para barcos de menor dimensão, capazes de navegarem até à barra do Douro e subirem o rio até à Régua e à região turística do vinho do porto. Enquanto se aguarda pela conquista de um jardim público no interior do porto, o arruamento de acesso ao edifício permitirá a circulação de autocarros, bicicletas e peões, e prevê a possibilidade de instalar trilhos para ligação à rede de eléctricos. Esta acessibilidade transforma o molhe sul num espaço público aprazível, oferecendo à cidade o usufruto de um novo lugar com uma nova perspectiva sobre a própria cidade.

Os vários fluxos confluem no edifício do terminal e dão origem a uma forma dinâmica em torno do centro oval. É em torno desse centro que uma lâmina em betão armado, num movimento espiral ascendente, percorre toda a obra, do chão à cobertura, e organiza os percursos exteriores de acesso. No espaço público, do caminho do molhe até à linha do cais de acostagem, a obra é envolvida por linhas cuja tensão formal caracteriza a dimensão singular da obra. No espaço gerado pela sobreposição dos vários anéis da espiral abrem-se as linhas de iluminação natural, complementadas por uma clarabóia generosa sobre o vazio do núcleo central no interior do edifício. Este núcleo articula os diferentes níveis e as diferentes funções do edifício em torno de uma rampa contínua que prolonga no movimento interior a expressão dinâmica das formas exteriores.

O programa inicial previa a instalação da estação de passageiros no primeiro piso e uma zona comercial no segundo, complementada com área de restauração no último piso, além do miradouro na cobertura e do estacionamento automóvel no piso subterrâneo. Em 2008, enquanto a APDL fazia estudos de viabilidade económica para a exploração da área comercial, a Universidade do Porto manifestou interesse em integrar o seu Pólo do Mar no edifício em projecto. Isso obrigou a um ajuste na organização interna, de modo a acomodar, no espaço anteriormente destinado a 13 lojas, um programa de maiores dimensões e com necessidades funcionais mais complexas: laboratórios, gabinetes, administração e um biotério. A área necessária para o novo uso foi conquistada às zonas de circulação em torno do vazio central e implicou o desenho de um piso intermédio com gabinetes dispostos em mezanino sobre os laboratórios. A iluminação natural deste centro de investigação é conseguida através do poço de luz e, pontualmente, por clarabóias de condução de luminosidade através de tubos com o interior espelhado. O último piso foi convertido em gabinetes de administração da APDL, espaços para eventos e um pequeno restaurante. Na cobertura, em forma de anfiteatro voltado a sul e protegido do vento norte, encontra-se uma panorâmica da cidade e do mar.

A especificidade de uma estação de passageiros consiste no funcionamento por picos: o frenesim das chegadas e partidas – que em Leixões ronda as 3000 pessoas – alterna com longos momentos de inactividade. O uso do edifício como Pólo do Mar prevê uma ocupação permanente de 250 investigadores (distribuídos pelos laboratórios e gabinetes do 2.º piso e pelos aquários no piso inferior) aos quais se somam os funcionários da administração da APDL e as ocupações pontuais do espaço multiusos no 3.º piso. A terceira utilização será a pública, com a possibilidade de acesso à praça na cobertura. O desenho dos espaços e da linguagem do edifício cumpre a missão complexa de responder e articular estes vários andamentos, muitas vezes contraditórios, entre o momento de excepção numa lenta viagem oceânica, o espaço de concentração e trabalho quotidiano, ou o lugar disponível para o uso público.

A estrutura da obra, em betão armado, repousa em estacaria assente no fundo rochoso, a dez metros de profundidade. A complexidade geométrica do edifício é estruturada segundo um conjunto de pilares de secção circular, organizados de forma radial com um desenvolvimento em diagonal para o exterior, suportando as lajes de piso e as lâminas exteriores. A paleta de materiais é dominada pelo betão branco, o granito de São Gens (um material da região no qual tinham sido construídos os molhes do porto) nos pavimentos exteriores – que se prolongam para o interior do piso térreo – e por grandes panos de vidro. O ambiente interior é predominantemente branco, conseguido no acabamento dos pavimentos em betonilha, rebocos de parede, vidros serigrafados ou tectos em tela branca retroiluminados. Pontualmente, há revestimentos “preciosos”, como o tecto em tela acobreada no piso de recepção, rebocos em tons de terra, latão escovado no restaurante ou veludo azul na sala de actos. No entanto, o grande destaque nos materiais cabe ao revestimento de ambas as faces das “lâminas” em mosaicos cerâmicos brancos produzidos pela Vista Alegre, uma estreia desta fábrica no sector da construção. A geometria das peças, hexagonais com faces oblíquas ao plano da fachada e disposição aleatória, confere ao edifício uma textura com um efeito cénico atractivo, capaz de reflectir inesperadamente a luz do sol sobre as suas superfícies curvas.

LEVANTA-SE O VÉU

A forma do edifício é inusitada, icónica e com uma forte presença urbana, visível a partir das frentes marítimas do Porto e de Matosinhos. Como refere Luís Pedro Silva, a forma gerou desde o início uma adesão capaz de motivar e dinamizar os vários agentes envolvidos: a autoridade portuária (APDL), as autoridades municipais e regionais e a Universidade do Porto (UP). A forma do projecto terá tido ainda a capacidade de contribuir para o desfecho positivo da candidatura conjunta da APDL e da UP aos fundos comunitários do QREN. Envolvida desde a definição estratégica do porto, aos sobressaltos da definição programática e culminando na caracterização formal de uma nova atracção turística, o contributo da arquitectura foi fundamental para a viabilização da própria obra.

A inauguração do edifício é a próxima etapa de um longo processo. Mas a obra só atingirá o seu potencial com a construção e a abertura ao público do arruamento de ligação a terra e dos jardins adjacentes. Nesse momento será reforçado o papel do edifício enquanto extensão do espaço público, se for permitido um acesso tão livre quanto é possível à sua rampa interior e, finalmente, à praça da cobertura. Só assim se cumprirá o que constitui a maior força desta obra: a abertura do porto de Leixões à cidade. Trata-se de procurar articular de modo mais fluido o interior e o exterior de um espaço vedado, com lógicas funcionais e administrativas completamente distintas e por vezes antagónicas, intervindo na espessura mínima da fronteira que os divide: o molhe. Mais do que derrubar muros, esta arquitectura permite caminhar sobre eles, e usufruir do que acontece de ambos os lados.

Este texto foi publicado no J-A 252, Jan–Abr 2015, p. 546–559.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Aplicação de vidros no edifício
Valor da subempreitada: 3,1 M€
Número de vidros: 3000 UN
Metros quadrados de vidro: 7000 m2
Número de equipas montagem: 16
Peso total: 350 toneladas
13% dos vidros são curvos, com 4 repetições dimensionais.
Envidraçado do piso 3: 312 UN – 42 toneladas
Envidraçado do piso 3A: 62 UN – 13 toneladas
Envidraçado da manga fixa: 308 UN – 50 toneladas
Clarabóia da manga fixa: 101 UN – 10,5 toneladas
Guarda da rampa marina: 109 UN – 3,5 toneladas

TERMINAL DE CRUZEIROS DE LEIXÕES
Localização
Molhe Sul do Porto
de Leixões, Matosinhos
Programa
Terminal de Cruzeiros Pólo do Mar da Universidade do Porto
Cliente
APDL – Administração dos Portos do Douro, Leixões e Viana
do Castelo S.A. + Universidade do Porto
Datas do Projecto
Ideia inicial: 2005
Licenciamento: 2009
Projecto de execução: 2010
Construção
2012–2015
Área Bruta
de Construção
16 500,00 m2
Estimativa de Custo da Obra
Projecto de Execução: 28 287 083,65 euros
Custo Total da Obra
24 963 841,38 euros
Arquitectura e Coordenação
Luís Pedro Silva, Arquitecto. Lda.
Especialidades
Newton, Consultores de Engenharia, Lda.
Projecto de Fundações e Estruturas; Plano
de Segurança, Higiene e Saúde; Abastecimento
de Água e Rede de Incêndio; Drenagem de Águas Residuais; Drenagem de Águas Pluviais; Plano de Segurança, Higiene e Saúde.
Rodrigues Gomes & Associados, Consultores de Engenharia, S.A.
Instalações e Equipamentos Eléctricos; Infra-estruturas de Telecomunicações; Instalações de Segurança Contra Incêndio; Instalações
de Segurança Contra Intrusão; Instalações Electromecânicas; Instalação de Som; Gestão Técnica Centralizada
GM Engenharia Instalações de AVAC
Projecto de Instalações de Gás; Projecto Térmico
Iperplano, Lda.
Consultoria em fase de Projecto de Execução
Quaternaire Portugal
Estratégia do Modelo de Negocio e Turismo
José Magalhães
Projecto de Arranjos Exteriores; Projecto
de Drenagem de Águas Pluviais Exteriores; Projecto de Sistema 
de Deposição de Resíduos; Projecto
de Sinalização Vertical
gng.apb, arquitectura e planeamento, Lda.
Acessibilidade e Mobilidade
Vasco peixoto freitas Durabilidade
e Higrotermia Instituto de Hidráulica e Recursos Hídricos
Pedro Romano
Obra Marítima
Fiscalização
Proman, S.A.
Construção
Consórcio Opway, S.A. e Ferreira, S.A.