Obras do novo pontão para estabilização da praia da marginal de Maputo



João Athayde e Melo

QUALIDADE QUANTIDADE


Estão em andamento duas obras estruturantes na capital de Moçambique, a ponte para a Catembe e a “circular de Maputo”, obras que prometem criar novos pólos de crescimento e desenvolvimento urbano, económico e social. No primeiro caso, fica a dúvida de estar a “carroça à frente dos bois”, uma vez que a ponte, orçada em 545 milhões de euros, ligará a cidade ao sul, actualmente uma zona rural e de praias com baixa densidade urbana. Ainda mais duvidoso é o impacto que a sua construção vai ter na vizinha Reserva dos Elefantes, atravessada pela estrada (que por enquanto é uma picada) para a Ponta do Ouro e pela linha ferroviária que servirá o futuro porto de águas profundas em Techobanine, cuja obra de 5,2 mil milhões de euros já foi adjudicada.

Pelo contrário, a “circular”, uma rede de vias rápidas orçada em 225 milhões de euros, é, já hoje, uma necessidade, uma vez que o aumento do número de viaturas tem sido exponencial, congestionando diariamente as principais vias de acesso à cidade. A “circular” ligará o “corredor de Maputo” (auto-estrada EN4 que vem da vizinha África do Sul) directamente à Estrada Nacional n.º 1 (EN1), encurtando o caminho para norte e, sobretudo, desviando o trânsito de Maputo e da Matola. Englobado no mesmo projecto está um troço que, partindo do melhoramento e alargamento da marginal de Maputo, a liga à EN1, abrindo portas à criação de uma verdadeira frente marítima. A partir desta circular, uma ramificação duplica os acessos à pequena cidade de Marracuene, 30 quilómetros a norte, e um troço liga a EN1 à futura ponte para a Catembe.

Estas são as obras com maior impacto a que assisto na cidade desde que, em 1996, me mudei para Maputo, numa época em que Moçambique renascia após um longo período de guerra civil. Naquele momento, as carências eram enormes e o objectivo comum era o da reconstrução democrática de todo o país, num sentido lato, desde a educação, à saúde, da indústria à agricultura, da habitação ao turismo… A arquitectura tinha então um papel muito claro, despretensioso, intrinsecamente económico e ecologicamente responsável.

De certa forma, tal como a arquitectura tradicional sempre o fizera, a “arquitectura de arquitecto” não se podia dar a luxos supérfluos e assumia a sua responsabilidade social reduzindo a sua expressão ao essencial, usando tecnologias simples e comuns, enfim, sendo low tech. E isto empobreceu a arquitectura? De modo algum! Os bons arquitectos fizeram arquitectura despida de tiques, servindo os objectivos específicos do cliente de então, ao mesmo tempo que faziam uma arquitectura intemporal.

Moçambique foi-se abrindo ao mundo, primeiro por via das cooperações internacionais, depois através de megaprojectos industriais e extractivos, como a fábrica de alumínio ou as minas de carvão, e, mais recentemente, tem sofrido um grande influxo de profissionais europeus refugiados da crise económica, dos quais uma grande parte oriunda de Portugal. Moçambique deu-se ao direito legítimo de escolher os seus novos colonos, não só da velha Europa, mas também do Oriente, em particular da China, aceitando a promessa de obras importantes e estruturantes para o país, como estradas, hospitais ou escolas, mas também de obras monumentais, imponentes, modernas e voltadas para o futuro. Entraram em força modelos internacionais contemporâneos, vistosos, sonhos de progresso (miragens?) indiferentes à sua localização, ao clima, à sociedade e à economia local. Construíram-se, e constroem-se, torres de vidro seguindo o modelo do Dubai, telhados chineses e outras aberrações, mas, pior do que serem obras descaracterizadoras, são obras inadaptadas, de manutenção exigente, termicamente desconfortáveis, com consumos energéticos que se revelam financeiramente insustentáveis pelas instituições locais.

Seguindo (maus?) exemplos do “mundo desenvolvido”, o governo decidiu projectar o nome de Moçambique através da organização dos Jogos Pan-Africanos de 2011, uma espécie de Jogos Olímpicos africanos, com fraca expressão a nível mundial, mas com importância desportiva real no continente. A China e Portugal, prontamente, “ofereceram” crédito para a edificação das infra-estruturas necessárias, claro está, a ser concebidas, projectadas e construídas por empresas dos respectivos países. Foram reabilitadas várias instalações desportivas e, entre outras obras, foi construída uma nova “Vila Olímpica” com apartamentos para os atletas, Piscina Olímpica e o Estádio Nacional do Zimpeto. A competição realizou-se com relativo êxito e com um impacto mediático duvidoso, mas sem grandes falhas organizativas no plano desportivo.

Do ponto de vista das infra-estruturas, a rentabilização dos Jogos Pan-Africanos foi desastrosa e irresponsável. Salvo raras e pequenas excepções, os resultados foram uns quantos elefantes brancos, como o Estádio Nacional, obra que, “naturalmente”, resvalou dos 42 milhões de euros orçamentados para os 54 milhões e que não tem, até hoje, qualquer tipo de utilização rentável, ou a Piscina Olímpica, que, um ano após a inauguração, se encontrava inutilizável por falta de manutenção e para a qual só agora foi lançado um concurso com vista à sua gestão e exploração. Os apartamentos da Vila Olímpica, e a sua venda pública, estiveram envolvidos em polémicas com contornos nebulosos que não tem cabimento esmiuçar neste artigo, mas justifica-se destacar a sua paupérrima qualidade arquitectónica, urbanística e construtiva.

Um fenómeno que tem ocorrido em Maputo é o crescimento exponencial da periferia urbana, mal estruturada, constituída maioritariamente por habitações de nível térreo e por construção precária, que resulta essencialmente da migração das províncias para a cidade – inicialmente, populações que fugiam da guerra e, recentemente, que procuram melhores oportunidades de trabalho e de vida. A par deste crescimento, a “cidade de cimento” (como é conhecida a parte central da cidade, infra-estruturada, urbanizada e com edifícios em altura) avança igualmente sobre o subúrbio. Uma grande parte dos edifícios de habitação do centro urbano foi tomada por serviços públicos e privados, num processo que está a ampliar, cada vez mais, as distâncias de deslocação para a maioria da classe trabalhadora.

Numa cidade onde os transportes públicos são uma fracção do necessário, e onde o sector é dominado por um enxame de pequenos transportes colectivos privados, as novas estradas do projecto da “circular” apresentam-se como uma peça essencial para a fluidez do tráfego, a curto prazo. No sector da construção e da arquitectura, estas obras estruturantes vão seguramente abrir novas frentes de expansão, que, a ser bem aproveitadas, poderão beneficiar efectivamente a qualidade urbanística da cidade, em particular em zonas sensíveis mas com um potencial paisagístico extraordinário, como é o caso da marginal de Maputo. Apesar das dúvidas, só podemos desejar que, com a quantidade, venha também a qualidade, esse sim o grande indicador de progresso.

Este artigo foi publicado no J-A 248, Set — Dez 2013, p. 254-256.

Correspondente em Maputo