Chegada a uma fronteira incerta



Alexandra Areia

PRIMEIRO OS SANTOS

A arquitectura dos encontros entre etnografia e cinema

Por formação e experiência, os arquitectos possuem um conhecimento muito específico sobre o mundo habitado, embora nem sempre sejam bem-sucedidos em comunicar essa visão a um público mais alargado. Poderiam ser agentes efectivos de uma transformação cultural, na maneira como o nosso território é ocupado e gerido; mas, porque os seus discursos raramente extravasam os círculos de debate disciplinar, os arquitectos tendem a tornar-se ineficazes. Uma pergunta faz sentido para contrariar esta tendência: como tornar visível um pensamento crítico de arquitectura? Para procurar uma resposta, vale a pena observar um encontro, que é frequente, entre antropologia e cinema. Uma publicação recente, associando contribuições dessas duas disciplinas – dois documentários e um ensaio –, misturou investigação e cinema num processo contínuo de aproximação ao real. Sem ser esse o objectivo principal do trabalho, o resultado constitui uma leitura muito particular do território português.

Durante dois verões consecutivos, no final dos anos 90, José do Fundo e Jacinta da Graça Félix – um casal de emigrantes portugueses radicados em França – aceitaram ser observados por uma antropóloga e filmados por um cineasta. Sobre este processo de intromissão resultam dois documentários de João Pedro Rodrigues – Esta É a Minha Casa (1997, 51’) e Viagem à Expo (1999, 55’) – e, década e meia mais tarde, o ensaio da antropóloga Filomena Silvano De Casa em Casa –Sobre um Encontro entre Etnografia e Cinema. Segundo a antropóloga, também presente na realização dos documentários, nem o seu ensaio pretendeu substituir-se às leituras que os filmes possibilitam, nem alguma vez esperou que os documentários de João Pedro Rodrigues fossem outra coisa que não um puro exercício de cinema (em vez de um exercício etnográfico ou sociológico); o interesse deste encontro de disciplinas esteve, a seu ver, “na independência dos assuntos que moveram cada um de nós”. Juntos, mas cada um à sua maneira, antropóloga e cineasta invadiram o quotidiano de José e Jacinta para descobrirem como é que uma família de emigrantes, que vive em permanente deslocação entre dois países, constrói a sua própria identidade cultural.

As práticas espaciais da família Fundo fragmentam-se em múltiplas localizações, mas, no limite, encontram-se circunscritas aos lugares de um quotidiano profundamente sistematizado. A semana é passada num minúsculo apartamento em Paris, no prédio onde Jacinta é porteira; José, que é sapateiro, passa o dia na oficina de que é proprietário; Johnny e Léa, filhos do casal, quando não estão na escola, estão no apartamento com Jacinta. No fim-de-semana, a família troca o confinado apartamento pela confortável “casa da campanha”, pequena moradia unifamiliar que possuem na periferia. No domingo de manhã, vão e voltam de carro a Paris, para atender à missa na igreja do bairro; e à noite, deixam o carro na “casa da campanha” e voltam de metro para o apartamento. Todas as semanas se repete a mesma rotina. Até que chega o Verão, momento muito aguardado durante todo o ano, e se concretiza a mais sagrada das rotinas familiares – a “ida à terra”.

A viagem dos Fundo no Verão de 1997 estabelece a narrativa de Esta É a Minha Casa, o primeiro dos dois documentários, desde a partida de Paris, às três da manhã, até à chegada à aldeia de Argozelo, Trás-os-Montes, ao final da tarde. Trata-se de uma viagem de carro incrivelmente célere: José conduz e leva consigo a sua mãe, Jacinta, e João Pedro Rodrigues com a câmara; Filomena Silvano segue noutro carro, mas recusa-se a acompanhar tal velocidade. O tempo da narrativa corresponde à duração desta viagem, pouco mais de 24 horas, mas a sua montagem não respeita linearmente a cronologia do percurso – é frequente o recurso a avanços e recuos, a imagens de tempos diferentes (Jacinta tão depressa aparece de cabelo comprido como curto) e até a imagens de vídeo amador a preto e branco – produzindo um efeito de grande fragmentação espacial, que, porventura, pode até baralhar o espectador. Mas num aspecto a montagem do filme é absolutamente linear: o crescimento exponencial da sua intensidade emocional, que está em sintonia com o entusiasmo crescente dos Fundo ao aproximar-se da “terra” – desde o compenetrado desprendimento com que se prepara a partida e se fecham as casas em Paris; à postura visivelmente mais relaxada de José com a passagem da fronteira; até ao clímax final, com Jacinta eufórica a sair do carro em andamento para abraçar os filhos (que haviam partido mais cedo para passar Agosto inteiro em casa dos avós maternos). Do percurso entre Paris e a fronteira fica o vácuo de uma viagem alucinante, onde José e o seu carro são um só, recusando qualquer interacção social com a realidade envolvente. Na passagem da fronteira, revela-se um dos grandes motores identitários da família – a Igreja. Nem o cansaço, nem a pressa de chegar à aldeia impedem José de calmamente visitar dois santuários e cumprir uma série de rituais religiosos – dar uma volta à capela, beijar a parede do altar, deixar uma esmola – como acto, algo paradoxal, de agradecimento pela sua chegada em segurança, mesmo tendo conduzido sempre de forma irresponsável e perigosa.

É assim que, de lugar em lugar, de ritual em ritual, Esta É a Minha Casa constrói uma cartografia visual do território afectivo disperso da família Fundo, com vista a revelar questões relacionadas com “deslocalização cultural”, objectivo aliás que Filomena Silvano assume ter estado na base de todo o projecto e que uma das falas de José, transcritas no seu ensaio, resume bem: “– O Santo da aldeia é quem nos guarda por cá.”

Mas em Viagem à Expo, o segundo documentário, a lógica inverte-se. Neste filme, rodado no Verão seguinte, é a família de emigrantes que vai ao encontro da equipa de filmagem, numa visita à capital portuguesa. Revelam-se os mesmos factores identitários que orientam a rotina familiar no primeiro filme – o afinco no ofício, visível na conversa entre José e um velho sapateiro de Alfama; a devoção religiosa no momento de Jacinta escolher um souvenir na loja do Cristo-Rei; e o orgulho de ser português quando Johnny posa para a fotografia no estádio do Benfica. Mas, fora do seu território habitual, os Fundo apresentam-se agora como uma única entidade cultural, estável e perfeitamente localizada na sua condição de turistas, sobre a qual se projecta um país em mudança. Em Viagem à Expo, é a identidade cultural de Portugal do final dos anos 90 que se revela “deslocalizada”, definida algures entre a confiança optimista no progresso económico – e na nova urbanidade que a Expo 98 apresentava – e a fragilidade estrutural de um país de tradição ainda vincadamente rural, e que a própria presença dos Fundo tende a evocar.

Passaram-se quinze anos. Desse país, hoje, já pouco reconhecemos, e, se calhar, até os Fundo desistiram de cá vir todos os verões. Deste projecto interdisciplinar, que junta a antropologia ao cinema, fica não só a memória da identidade cultural de uma família, mas também o retrato de um país repleto de contradições. Por um lado, a ideia da “terra” que, para este casal, representava uma espécie de lugar mítico, preservado no seu imaginário como uma paisagem rural intocada, intocada mesmo pelas próprias “casas de emigrante”. Por outro lado, a adesão à Europa, que, para o bem ou para o mal, é hoje uma realidade, era, na época, uma novidade. O momento da passagem pelo antigo posto fronteiriço de Quintanilha (ver texto na coluna lateral), que constitui um dos pontos altos de Esta É a Minha Casa, é sintomático da confusão que a abolição das fronteiras no espaço comunitário gerou numa família de emigrantes empenhada em manter a identidade do seu país de origem.

Entretanto, nestes quinze anos desapareceu uma grande parte da agricultura de subsistência, em muito devido a políticas europeias. Com ela, as marcas de ruralidade deram lugar a cenários de abandono. Também os emigrantes da segunda e terceira geração deixaram de investir na construção de uma casa em Portugal, porque já não têm ambição de um dia regressar. Isto sucedeu enquanto se construía um novo Portugal urbano, configurado a partir do êxito da Expo 98, envolvendo grandes investimentos públicos e apenas possível pela injecção de fundos comunitários.

Independentemente de outras leituras que este projecto possa motivar, ele garante uma boa experiência cinematográfica, fundamentada pelo rigor científico do estudo etnográfico. O cinema de João Pedro Rodrigues dá a ver a verdade intuída nos corpos dos protagonistas, cujas presenças os filmes tornam viciante acompanhar. A palavra escrita de Filomena Silvano acrescenta significado e correspondência antropológica às sensações que as imagens despertam. Juntos, antropóloga e cineasta construíram um espaço de afectos que, com esta publicação, nos oferece a possibilidade de, por momentos, o habitarmos.

 

Este artigo foi publicado no J-A 248, Set — Dez 2013, p. 238-241.

DE CASA EM CASA

Sobre um Encontro entre Etnografia e Cinema (inclui DVD)

Ensaio

Filomena Silvano

Documentários

João Pedro Rodrigues

Edição

Palavrão – Associação Cultural

1.ª edição, 2011

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Num dos planos de viagem de Esta É a Minha Casa acompanhamos a passagem da fronteira. Pela imagem do retrovisor, vemos que José começa a exibir uma expressão facial mais descontraída. Sabemos que nos estamos a aproximar do território português porque ele nos vai apresentando os marcos físicos que o antecedem: “Aquelas casas já são portuguesas. É o quartel da guarda espanhola.” Ao mesmo tempo, vamos acompanhando um crescendo de emoção, expresso por José e sua mãe, que termina numa entusiasta gritaria:

 
Aqui é a fronteira de Quintanilha.
– Estamos em Portugal!
– Aqui estamos em Portugal! Eh, Eh…
 
Imediatamente a seguir, instala-se a hesitação, a perplexidade e mesmo a frustração:
 
Ainda não. É aqui.
– Além.
– É aqui.
– Não.
– Aqui é que é. Aqui é adonde é que estavam os polícias.

Tudo isso, porque a passagem pelo lugar exacto onde começa Portugal já não está marcada por um acto que a torne evidente. Passada a ponte onde uma placa azul da Comunidade Europeia marca os limites territoriais dos dois estados-membros, vimos uma série de carros, com placas francesas e suíças, estacionados. As pessoas estavam cá fora e algumas comiam uma merenda, no cumprimento de uma rotina que vem do tempo em que eram obrigadas a parar para tratar das formalidades alfandegárias.