Acesso comum às habitações e à conduta técnica



Rui Mendes (texto) + Valter Vinagre (fotografia)

O património a quem o quer usar

Edifício na Rua dos Fanqueiros, Lisboa. Atelier José Adrião

… habituámo-nos a julgar a obra à luz da adequação face ao aparato, talvez seja tempo de começarmos a julgar o aparato à luz da sua adequação face à obra.

Bertolt Brecht, 1930

O Prémio Vasco Vilalva, instituído pela Fundação Calouste Gulbenkian com um valor pecuniário de 50 000 euros, é atribuído anualmente desde 2007 a um projecto exemplar no âmbito da defesa do património. Em edições anteriores, foram distinguidos o tratamento e divulgação de uma biblioteca, um projecto de animação cultural e restauro de arte sacra, um projecto museológico, um restauro iconográfico e, finalmente, na sua última edição, foi escolhida uma obra de arquitectura. O que tem de extraordinário esta obra para merecer um prémio tão relevante? Segundo o júri, o projecto assinala um esforço de revitalização da Baixa de Lisboa como zona residencial, “um exemplo de boas práticas numa zona em que a reabilitação urbana é especialmente sensível”. Ao ser premiada, a obra conquistou o estatuto de exemplo. Mas quem quererá seguir este exemplo?

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A urgência de novas condições de trabalho

Sabemos que o conjunto da Baixa Pombalina é uma obra notável, inovadora e com características urbanas e arquitectónicas ímpares no mundo, nela se concentrando um troço da história da cidade e do país. Contudo, não escapou ao abandono e à degradação que se tem vindo a acumular no centro da cidade nos últimos anos. Desde que foi construído no século xviii, este edifício de gaveto agora requalificado foi constantemente sujeito a alterações, resultantes quase sempre de mutações dos usos – de habitação a escritório, de pequenos escritórios a múltiplas habitações. Com sobreposições de revestimentos ao gosto de época, foram inseridas novas infra-estruturas e houve elementos estruturais que desapareceram. Neste processo, foram postas em causa questões cruciais da identidade do edifício, nomeadamente a estrutura em gaiola que caracterizava todo o conjunto da Baixa.

Esta obra procurou, simultaneamente, resgatar a matriz original da construção pombalina e conceber um presente capaz de integrar as marcas que o tempo lhe imprimiu. Como disse o arquitecto, “o nosso trabalho começa de forma muito intuitiva. Só com o desenvolvimento do projecto é que se começaram a juntar todas as peças e a formar um raciocínio. Começámos a ver que a única forma lógica de operar era aceitar todas essas transformações”. Ao longo dos anos, a maioria das intervenções a que o imóvel esteve sujeito foram pontuais e parcelares, a possibilidade de conceber uma intervenção que abrangesse todo o conjunto coincidia com o novo programa funcional a instalar, que consistia em dotar o prédio de apartamentos para arrendamento, destinados a estadias de curta duração. A perspectiva era operar no edifício através da adição de uma nova camada infra-estrutural que o reunificasse a partir da reconfiguração do seu sentido original. Ora, essa opção colidia com a legislação em vigor, que permitia apenas “restauro”, e que só foi desbloqueada no final de 2009 com o Plano de Pormenor de Salvaguarda da Baixa Pombalina. “Propúnhamos adicionar um novo layer, para além de todos os que existiam. Nas primeiras reuniões com a Câmara, perguntávamos qual a época que devíamos restaurar. A original? A dos anos de 1940? Se não tivesse surgido o novo Plano de Salvaguarda não podíamos ter feito esta intervenção.”

Para o êxito da obra foi fundamental a adequação da encomenda às características do edifício e, para isso, a atenção do cliente foi determinante. “Este cliente sabia o que queria quando nos pediu um edifício em Lisboa para recuperar. Vimos sete ou oito e escolhemos este. Por um acaso esta intervenção tornou-se visível. Mas eu acho que há imensos e excelentes casos de intervenções idênticas, não creio que esta seja excepcional, no sentido de ser única, há muitas.” Ou seja, a obra resultou não apenas da vontade do promotor para recuperar um edifício degradado, mas também da possibilidade aberta pelo Plano de Salvaguarda para acolher essa vontade dentro de um quadro legal específico, simultaneamente desbloqueador do investimento e atento às especificidade patrimoniais da Baixa Pombalina. Foi essa conjunção que permitiu reavaliar uma máquina parada, a tipologia pombalina e os seus modos de construção. Nessa reavaliação verificou-se que, apesar de parada há algum tempo, a máquina pombalina é passível de ser posta em funcionamento, e o seu rigor permite adequar o edifício a novos usos e, paradoxalmente, a novas infra-estruturas, tornando possível acertar o passo do imóvel a cada novo tempo e a cada novo uso. E o resultado é positivo em vários sentidos: “Esta operação foi bastante económica: 885 euros por metro quadrado. Efectivamente, as pessoas associam estas intervenções a um preço caro, mas não é verdade. Depende é da estratégia que se tem. Quando reavaliamos hoje a nossa intervenção, parece-nos bastante clara: tratou-se de valorizar um imóvel evitando a substituição de coisas que estavam boas, de que as pessoas até não gostavam, mas que começam a apreciar.” O que isto implica é uma nova condição de trabalho, obrigando a uma mudança de léxico, de fraseado e, finalmente, de instrumentos, do projecto à obra.

 

Estratégias de projecto e obra

Um dos aspectos mais relevantes desta obra é o modo como são enquadradas as peças que foram sendo adicionadas nas várias intervenções a que o edifício esteve sujeito, manipulando o sistema construtivo original: mais do que recuperar os traços de uma época, trata-se de incluir e reutilizar portas, janelas, portadas, azulejos e estuque, que mantêm as diferenças no desenho, de piso para piso. Essa variação projecta na obra uma hierarquia que, em certa medida, é anterior ao desenho contemporâneo e que, ao tornar-se explícita, caracteriza o novo desenho. As novas paredes e condutas técnicas são construídas em gesso cartonado, “os tabiques contemporâneos”, e organizam de forma eficaz a nova distribuição, que compreende três habitações por piso. As guardas, varandins e revestimentos da escada vão-se sucedendo em diferentes materiais: a pedra lioz forra a entrada até ao primeiro piso (uma intervenção dos anos 40 do século xx), encosta-se numa guarda de ferro original e, do lado da parede, interrompe-se numa porta opaca a partir da qual o revestimento é em azulejo até ao sexto piso. “A ideia de não tomar o edifício à força, não homogeneizar, aceitar as diferenças, permitiu que as coisas fossem feitas sem grandes alterações.”

Isto significa que uma parte substancial das decisões de projecto foram transferidas para a obra, convertendo o estaleiro numa oficina de pensamento e decisão onde é possível testar opções e ajustar soluções. Assim aconteceu com a estrutura da cobertura, que, destapada dos tectos falsos, se descobriu estar em bom estado: “Já tínhamos feito verificações e sondagens, mas manter tudo foi uma decisão de obra perante o que as demolições revelaram.” O projecto, mais do que detalhar soluções específicas, elaborou princípios-base de intervenção e definiu um leque de materiais – pedra, carpintarias, gesso cartonado, etc. – que se adequavam à reutilização de elementos existentes. “A introdução de novos elementos foi mínima – fizeram-se os desenhos a partir das áreas e da compartimentação existentes. Como é praticamente impossível desenhar todo o edifício nas suas pequenas diferenças, tínhamos os desenhos-base e íamos para a obra confrontar cada situação existente para aí tomar decisões.”

Este princípio serviu como processo de decisão sobre a carga infra-estrutural a adicionar. Casas de banho e cozinhas constituem três núcleos verticais onde se juntam novos prumos de descargas e condutas. A ausência de ar condicionado permitiu manter os soalhos (quase todos impecáveis e com 200 anos de vida) e tectos. A inclusão de um elevador foi a grande transformação ‘invisível’, o que se fez sem massacrar a generosa caixa de escadas, onde prevalece um pequeno átrio, em tudo semelhante aos átrios de acesso aos apartamentos, incólume no seu desenho original. Talvez o mais estimulante nesta obra seja a forma como tudo é calibrado sem destaques. Não existem sobreposições, mas encaixes que se prestam à diluição no tempo, até surgir uma nova camada, numa espécie de obra aberta que estimula novas apropriações.

 

A euforia do “re”

Dentro do hábito de tecer novos enquadramentos para nos posicionarmos perante os dados da contemporaneidade (ora estimulante e desafiadora, ora aniquilante e paralisadora), “construir sobre o construído” é um desígnio que tomou o centro de muitos discursos, disciplinares e de senso comum. A ruína evidente dos centros urbanos levou a que se generalizasse esse mote também em programas políticos e, consequentemente, em domínios administrativos. Perante a crise, essa urgência é cada vez mais óbvia. Se já se fizeram Expos e Pólis, casas “de estilo emigrante” ou “de estilo arquitecto”, agora o “re” parece ser o único prefixo de ordem que resiste: temos de reciclar, reutilizar, restaurar, reprogramar, requalificar, re-significar.

Perante a euforia do “re”, também valerá a pena relembrar e fazer uma pequena revisão da matéria construída. Rodeado de equívocos, o que se foi construindo nas cidades portuguesas engrossou o chamado “sector da construção”, sector económico responsável por uma percentagem significativa do PIB nacional. A dinâmica do sector ajudou a reduzir o território e a arquitectura a uma soma de peças (concebidas à imaginação do freguês), onde a adequação de cada parte ao todo foi encarada como uma mera casualidade tecnocrática. Esta recordação serve para alertar, não vá a euforia do “re” ser tomada de assalto pela lógica sectorial e, se ainda nos sobra a hipótese de demonstrar o valor da arquitectura através da requalificação do património, deixarmos essa hipótese escapar devido à imposição das mesmas lógicas administrativas e políticas que garantiram a ineficácia da arquitectura para obter uma transformação qualificada do território.

O momento de revisão da matéria construída volta a pôr-nos perante as singularidades de uma disciplina de sínteses: intervir no património obriga-nos a enfrentar tipologias e modelos originais, a interpretar evoluções e sobreposições de uso ao longo do tempo, a seleccionar características dissonantes que necessitam de ser clarificadas. O facto de haver um reconhecimento político da necessidade e urgência de requalificar tecidos urbanos degradados e com valor patrimonial não é, por si só, um garante de apoio. Antes pelo contrário, a tendência para a burocratização, a sobre-regulação, a pressão de cumprir ciclos políticos e a permeabilidade às pressões do sector da construção fazem temer que a manta de retalhos de tutelas, actores, ambições e conflitos que caracteriza a paisagem urbana contemporânea se propague, segundo as mesmas lógicas, às práticas de requalificação do património. Vale a pena resgatar a demanda de Nuno Portas em 1969 no livro A Cidade como Arquitectura: “[os arquitectos] se quiserem re-dar qualidade à cidade da era da técnica e dos técnicos e dos fenómenos complexos de cuja solução há que dar conta, terão de abalançar-se a um intenso esforço de estudo, a modificar a sua formação, re-formulando corajosamente o seu lugar na edificação da cidade.”

A julgar pela quantidade de coisas que há para fazer e refazer, entre o que está construído e o que está por construir, o campo volta a abrir-se. Novas tipologias de uso começam a manifestar-se, tomando espaços devolutos como matéria-prima e gerando sentidos de pragmatismo em modos de fazer arquitectura menos reféns da encomenda clássica. É hoje prática comum o trabalho dos arquitectos começar pela escolha do lugar a operar, na procura de hipótese de financiamento, na concepção de candidaturas e parcerias, em sucessivas reuniões para montar operações complexas, e estando mais presentes em cada uma das fases de desenvolvimento do projecto, e cada vez mais a projectar em obra. Os arquitectos estão a reposicionar-se. Perante estes novos contextos de actuação é justo reclamar também a sua maior participação no planeamento e na organização do território, bem como na concepção dos diplomas que regulam a sua actividade, de modo a inverter lógicas que nos deixaram mergulhados no colapso urbano e social.

 

Este artigo foi publicado no J-A 246, Jan — Abr 2013, p. 38-47.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Localização
Rua dos Fanqueiros, 73-85, Lisboa
Projecto
2007
Construção
2010–2011
Cliente
Privado
Área de Construção
1391,70 m²
Arquitectura Coordenação
José Adrião
Fase 1 Chefe de Projecto
Tiago Mota
Luís Valente, Rui Didier
Fase 2 Chefe de Projecto
Carla Gonçalves
João Matos, Margarida Lameiro, Ricardo Aboim Inglez, Rute Ribeiro, Sara Jardim
Especialidades Estabilidade
ARA – Alves Rodrigues e Associados
Especialidades
Acribia – José Andrade, Paulo Rodrigues, Mauro Carvalho
Condições Técnicas Especiais
Nunes-Medem; Paulo Nunes
Fiscalização
Grese – Estudos, Projectos e Gestão de Obras; Ramalho Ortigão; Interseta – Arquitectura, Design e Gestão de Obra; Nelson Rangel
Empreiteiro Geral
Paviana Construções, Lda.
Decoração
UGO – Juan De Mayoralgo & Javier Carrasco