José Vale Machado

O ESPAÇO EXÍGUO

Os dados preliminares do censo que este ano foi feito em Angola apontam para uma população de 24 milhões de habitantes, dos quais 6,5 milhões vivem na província de Luanda. No entanto, algumas fontes não oficiais sugerem que na região, com uma área aproximada de 1550 km2, habita uma população de 8 milhões, resultando numa densidade populacional de 5 mil habitantes por quilómetro quadrado. Para compreender por analogia o que estes números representam, vale a pena recordar que a Área Metropolitana de Lisboa tem uma população de 2 milhões e 800 mil habitantes num território de 2950 km2, ou seja, uma densidade de mil habitantes por quilómetro quadrado. No espaço de um habitante de Lisboa vivem cinco em Luanda. Por absurdo, poderíamos dizer que em cada cama onde dorme um lisboeta dormem cinco luandenses.

Onde o espaço é exíguo, todo o pedaço de espaço é crucial e, logo, ocupado. É particularmente apetecível o espaço que aparentemente não tem dono (ou sobretudo aquele em que o dono são todos), porque não custa dinheiro, custa apenas atrevimento. Isto gera razões para afirmar que o metro quadrado de Luanda não é igual ao metro quadrado da Europa, é maior. E fazem-se no metro quadrado luandense muitas mais e impressionantes coisas, uma afirmação absurda, porque sabemos que metro quadro é metro quadrado.

Onde o espaço é exíguo, o tempo também o é. Vinte e quatro horas na Europa não são iguais a vinte e quatro horas em Luanda, onde cada hora é maior, mais longa, mais disponível. Se em Luanda o espaço é exíguo, o tempo também é exíguo.

Onde o tempo e o espaço são exíguos, simultaneamente, em conjunto e irmanados, tudo sofre com a pressão da exiguidade. Uma pressão densa, intensa, absoluta e dramática, uma vez que, quando rareia o acesso a um e a outro, se luta por um pedaço de espaço e de tempo como se fosse o último da nossa vida, com todas as consequências que daí advêm.

As evidências deste discurso abstracto encontram-se debaixo dos edifícios do tempo colonial, cujas galerias sombreadas permitiam percorrer a cidade confortavelmente. Hoje, esses espaços são ocupados pela expansão das lojas, pela construção de esplanadas ou pelo estacionamento de motorizadas, empurrando os peões para debaixo da inclemência do sol, para a exiguidade do passeio sobrante, ou directamente para a via de circulação automóvel. Encontramos outras evidências na ocupação de espaços verdes – sejam eles verdes, castanhos ou vermelhos de barro, pouco importa –, espaços onde antes se jogava à bola, se corria ou se conversava. Públicos ontem, privados hoje.

O mais dramático deste processo é que ele gera excluídos, somados ou multiplicados conforme aumenta a exiguidade, não registados nos livros ou computadores de qualquer órgão administrativo, passando a fazer parte de uma massa que, parecendo quieta ou imóvel, se mexe com a lentidão dos processos letais, como muitos que podemos encontrar na natureza, com consequências conhecidas: expelir, destruir, dizimar, revoltar, ignorar, negar… Excluir significa rejeitar, pôr de parte, dizer ao outro que não serve nem tem lugar entre nós, que não faz parte do projecto, que a sua opinião não vale e que, no final, nem voto pode ter, porque não tem papel que o identifique. Luanda é a cidade da exiguidade, onde cabem poucos e vivem muitos, ou sobrevivem. É uma cidade produtora de circunstâncias que todos, todos os dias, procuram resolver.

Aos arquitectos cabe, como sempre coube, a tarefa de pensar a ordenação do espaço e, com ela, a ordenação da sociedade. Não basta trazer fórmulas aprendidas, porque basta olhar à volta para ver como as ideias importadas do Brasil, de Portugal, da China ou de tantas outras geografias esbarram numa cultura sedimentada em princípios e valores de tempos imemoriais. Esses princípios e valores, mesmo não tendo sido escritos, ainda hoje prevalecem no momento em que milhões de decisões todos os dias são tomadas em Luanda, e a transformam. Podemos, sem miopia de arquitecto distraído, contribuir para a evolução do paradigma de ordenamento do território angolano e, assim, ser parte activa na melhoria das condições de vida desta população imensa. Para isso, é necessário muito e paciente trabalho.

Pensar esta exiguidade gera distância e permite olhar para a “cidade” dos arquitectos. Tantos em tão pouco espaço. Tantos para tão pouco trabalho. Tantos excluídos da sua esperança de arquitectar. Esses arquitectos excluídos arquitectam outras coisas e tentam ser reconhecidos por isso, numa esperança iludida, réstia de um certo orgulho, vaidade ou honra. Mas o que lhes está reservado é serem outra coisa que não arquitectos – razão para a qual estudaram e para a qual nós, a sociedade, lhes dissemos serem necessários. O que fazer agora que sabem o que não são?

Escondemos a vergonha e pomos parangonas sobre a perda de gente capaz, competente, e da qual se vai precisar um dia mais tarde. Sabe-se lá quando será necessária essa gente, que isso do futuro é coisa de vidente, oculta e misteriosa, que mais vale consultar em outras cartas que não as da topografia da profissão. Estas dizem-nos que não somos necessários, que estamos a mais, que valemos tanto como pouco ou nada. Valem-nos os prémios que recebemos orgulhosamente, fruto de actuações singulares. E nem isso sabemos usar.

A exiguidade a que estamos sujeitos atrofia, reduz e remete-nos para uma condição com que nunca sonhámos. Nós, arquitectos que fomos, ensinados a incluir, a juntar, a reunir, a sintetizar, a ordenar, somos hoje como as ruas de Luanda: confusos, tensos, fechados, emparedados na nossa miopia, na negação das circunstâncias. Dizemos que não fazemos, sem ouvir de facto, e assim nos excluímos do nosso maior desafio, da nossa maior realização que é a de servir (e não a de sermos servidos), de ouvir (e não a de sermos ouvidos), de pensar (e não a de sermos pensados) e, por fim, o desafio de sermos inclusivos, e não exclusivos, recuperando a esperança original e que nos faz sonhar.

Somos muitos e demasiados, mas somos o que somos porque assim nos fizemos e, por isso, somos responsáveis. Não nos podemos excluir da obrigação fundamental de arquitectos, a de incluir, para que sejam menos os arquitectos expelidos, destruídos, dizimados, revoltados, ignorados ou negados, num mundo que já não tem o tamanho que tinha. É exíguo. Será essa a nossa esperança?

 

Este texto foi publicado no J-A 251, Set — Dez 2014, p. 506 – 507.

Correspondente em Luanda