Rua do Loreto. Fotografia: Fernando Freire



Diogo Seixas Lopes

NO BOSQUE SAGRADO

Um Cinema Ideal às portas do Bairro Alto

O Cinema Ideal fica em Lisboa, junto ao Bairro Alto. É a mais antiga sala de cinema do país, originalmente inaugurada em 1904. As suas instalações foram remodeladas recentemente com um projecto de José Neves, Prémio Secil 2012.

O cinema é uma predilecção declarada deste arquitecto, que também acabou de editar um livro com o título O Lugar dos Ricos e dos Pobres no Cinema e na Arquitectura em Portugal. Assim, o cinema tem sido uma fonte fecunda de referências e ideias para a arquitectura de José Neves. No projecto de remodelação do Cinema Ideal, teve a oportunidade, e o saber, de combinar os seus dois interesses. Como frisou noutras alturas, também aqui o acerto da obra foi fruto de um trabalho colectivo com colaboradores, engenheiros, empreiteiro, etc. E também do proprietário do imóvel, a Casa da Imprensa, que garantiu a continuidade da sala ao celebrar um acordo com a produtora, distribuidora e agora exibidora Midas Filmes. E, por sua vez, da Midas Filmes, que é o cliente do projecto de remodelação do Cinema Ideal.

Foi esta constelação de interesses que garantiu, antes de mais, os meios necessários para realizar boa arquitectura e um bom lugar. Todavia, o êxito deste lugar não depende só da qualidade arquitectónica do projecto, mas do modo como ele participa de um outro projecto maior que releva do seu programa. Sem excepção, as salas de cinema desapareceram do centro da cidade. Em vez delas, apareceram os multíplex nos grandes centros comerciais das periferia. O Cinema Ideal vai no movimento contrário, reclamando a condição de “cinema de bairro”. A programação do cinema subscreve uma certa “política de autor”, que implica também uma certa “política de distribuição e produção”, definindo uma “identidade crítica”. A arquitectura contribui para este esforço, de construir novas e melhores memórias colectivas, dentro e fora da sala.

O Cinema Ideal ocupa o piso térreo de um prédio sito na Rua do Loreto, que desemboca no Largo de Camões. A rua é estreita e movimentada, quer de dia quer de noite, devido à proximidade de zonas como o Bairro Alto, o Chiado e a Baixa. Tem uma forte componente urbana, de que o projecto procura tirar partido. O cinema é aberto para a rua, “faz rua” com o espaço público, que se prolonga para dentro do átrio e foyer da sala. Por outro lado, o uso do lioz nessas áreas retoma a aplicação da mesma pedra na fachada do prédio. É um material “civil” e “lisboeta”. No interior, é rematado por paredes pintadas em tom verde, que acompanham os seus recessos, curvas e contracurvas. Estas formas dão origem a pequenos espaços e outros elementos – bilheteira, bar, escadas e um grande pilar – que pontuam o percurso até à sala, ao longo do qual a luz artificial, própria dos cinemas, foi calibrada para criar efeitos de chiaroscuro. Nas suas modulações de intensidade, ela está mais próxima da fotografia de um film noir do que do último blockbuster. A memória descritiva do projecto contribui para explicar melhor os seus princípios:

1  Recuperar a natureza urbana original do cinema, absolutamente oposta ao carácter da quase totalidade dos cinemas de hoje, integrados em centros comerciais;

2  Recuperar uma identidade própria para o cinema e, particularmente, para a sua sala de projecção, enquanto espaço qualificado arquitectonicamente, recusando a “caixa negra” indistinta;

3  Recuperar a memória do cinema, tornando-a viva para os dias de hoje, [...] integrando as novas tecnologias associadas actualmente à arte cinematográfica.

4  Aceitar todos os elementos estruturais acrescentados à estrutura original pombalina pelos diferentes projectos realizados ao longo da vida do cinema, e conferir-lhes uma nova unidade [...].

Pela sua localização, a sala propriamente dita é o “grande final”, o ponto de fuga do horizonte de possibilidades de um filme. Com duzentos lugares, a sala está dividida em dois níveis, balcão e plateia. Apresenta um relevo canelado, que recobre as paredes, e foi pintada a cinzento. É sóbria e evoca, não sem alguma nostalgia, os ambientes de pequenas salas de cinema de meados do século passado. A prioridade, porém, está a montante. Está na qualidade do projector, na ergonomia das cadeiras, nos ângulos de visão dos espectadores. Para que, como vem na memória descritiva, o cinema não seja uma “caixa negra indistinta”, mas sim uma “caixa de milagres”. A famosa expressão de Le Corbusier a respeito da arquitectura encontra uma fraternidade com o cinema enquanto actividade criadora de espaços e memórias.

Em face da situação actual, este lugar é um oásis de cinefilia no meio de um deserto a perder de vista. A construção desse lugar é o resultado da militância das várias partes envolvidas no processo. Apesar da sua escala reduzida, a intervenção encerra dentro de si os universos inteiros de cada filme exibido. A arquitectura contribui desta forma para tomar um partido cultural sobre o cinema, sobre a cidade, sobre a memória. A memória como instância colectiva precisa de uma atenção permanente, para garantir a sua salvaguarda. É um património imaterial, que está nas fundações de qualquer sociedade. Como explicou o sociólogo francês Maurice Halbwachs há setenta e cinco anos:

Uma sociedade precisa primeiro de encontrar pontos notáveis. Dado que se trata de lugares, é necessário que os sítios mais carregados de significado se destaquem em relação a todos os outros. Da mesma forma, na memória colectiva existem certas figuras, datas e períodos de tempo que ganham uma importância extraordinária. Atraem para si outras figuras e acontecimentos que tiveram lugar noutros momentos.

O Cinema Ideal de José Neves é, também, um contributo para este assunto. Chama a atenção para um conceito expandido de património, liberto de dogmas historicistas, mas não prescindindo de rigor narrativo. E resgatando a imaginação e a inteligência como motores necessários ao projecto. Nessa condição, do arquitecto como ser pensante, como intelectual, é possível procurar respostas para novas dúvidas, como a de Halbwachs quando pergunta: “Mas como é que as memórias espaciais podem encontrar o seu lugar quando tudo mudou e já não há mais vestígios nem pontos notáveis?” José Neves, em conversa com uma jornalista após a atribuição do Prémio Secil 2012, avançava com uma possível resposta, citando Antonio Gramsci, o fundador do Partido Comunista Italiano: “Temos de ser pessimistas na inteligência mas optimistas na vontade.” O Cinema Ideal é uma obra com pressupostos semelhantes, que parte de um diagnóstico lúcido da realidade para atingir com naturalidade o seu resultado. Recusando lugares-comuns, não enjeita porém toda uma mitologia da sétima arte para construir a sua antecâmara do “bosque sagrado” (holy wood) do cinema.

Este texto foi publicado no J-A 251, Set — Dez 2014, p. 496 – 499.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

CINEMA IDEAL
Projecto
2013–2014
Construção
2014
Arquitectura e Coordenação
José Neves
Colaboração
Rui Sousa Pinto, Vasco Melo, André Matos, Fernando Freire, arquitectos; João Pernão, Maria Capelo, consultores de cor
Projectos de Especialidades
Fundações e Estruturas (consultoria): Miguel Villar, engenheiro – Betar, Estudos e Projectos de Estabilidade, Lda.
Águas e Esgotos: André Cabrita, engenheiro – Betar, Estudos e Projectos de Estabilidade, Lda.
Segurança Contra Riscos de Incêndio: António Portugal, arquitecto
AVAC, Térmica, Certificação Energética, Condicionamento Acústico, Electricidade, Telecomunicações e Segurança: Natural Works, Projectos de Engenharia Unipessoal Lda.
Promotor
MIDAS II, Cinemas, Lda.
Empreiteiro
Contentor de Ideias, Lda.