Sede do Parque Natural Do Fogo, Chã das Caldeiras, ilha do Fogo, Cabo Verde.
Projecto de OTO Arquitectos
Construir na cratera de um vulcão é uma façanha destemida. O poder da paisagem parece ser avassalador e não deixar espaço para qualquer forma de arquitectura. Perante esse cenário, o projecto que venceu um concurso público em 2007 para a sede do Parque Natural do Fogo é uma combinação engenhosa de competência e processo. Inaugurado em Março deste ano, a obra demonstra como a melhor arquitectura se constrói no fio da navalha, entre a ficção e a realidade.
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TENSÃO E COEXISTÊNCIA
A omnipresença do vulcão domina a paisagem física e mental da ilha do Fogo. No edifício da sede do Parque Natural do Fogo há uma tensão latente na relação entre a obra e a natureza. A relação inevitável com o lugar implica a coexistência, o edifício não desaparece na paisagem, não quer desaparecer. Os arquitectos dizem que nunca foi opção enterrar, ou esconder, a arquitectura. O edifício procura apenas mimetizar a sua envolvente para pertencer ali, para ser e resistir, não como um ser estranho àquele mundo mas como um organismo que lhe pertence. Aliás, como as casas da povoação de Chã das Caldeiras, que se envolvem e fundem na paisagem pela materialidade do tecido geológico. A cor e a textura da construção parecem desmaterializar a forma. As volumetrias construídas com pedra de lava agarram-se ao território pela mão de quem o quer habitar e, com o próprio território, procura construir as suas casas e cultivar os seus alimentos. É essa a força visível nos cenários vulcânicos habitados, a força do homem que molda a matéria. O edifício da sede do Parque Natural do Fogo é um artefacto construído, é feito de matéria que não se dissolve, mistura-se e quase desaparece, mas não desaparece. Está lá, no lugar, indica a presença humana e procura tornar-se parte integrante do vulcão.
A CONSTRUÇÃO NO LUGAR
O edifício tem uma textura que sugere ter sido construído com pedra, ou lava. Mas na verdade foi construído com banais tijolos de cimento, feitos in situ e secos ao sol, como se fossem de adobe. A pedra foi descartada por razões políticas e culturais: os habitantes da ilha constroem com pedra (lava) local que está a desaparecer, pondo em risco as características naturais da paisagem. A autoridade administrativa não quis dar maus exemplos no que toca à conservação da paisagem, e o projecto optou por utilizar blocos com a tonalidade da pedra local. Chegaram a fazer-se testes com partículas de lava para se conseguir a mesma tonalidade da ilha, mas os arquitectos confessam que essa estratégia não funcionou. “Acabámos por fazer testes com pigmento da Secil, que deu mais garantias.” A secagem ao sol e a produção in situ, sugerida pelo próprio empreiteiro, foi a solução com melhor relação custo benefício.
A textura irregular das paredes resulta da manualidade do processo, com imperfeições e desfasamentos provocados na colocação das peças. O edifício mimetiza a textura porosa das superfícies de lava escura. A fragilidade do adobe de cimento é contrariada pela imponência das paredes, que chegam a ter uma tripla camada e a atingir 80 centímetros de espessura para garantir a auto-suficiência energética do conjunto. A estrutura é um sistema convencional em pilares e vigas de betão armado. O enchimento da cobertura ajardinada, cultivada com espécies autóctones, chega a atingir dois a quatro metros de profundidade, opção que também traz vantagens no desempenho térmico. A geometria da cobertura é um dos aspectos fundamentais do projecto, as rampas em espiral permitem a incorporação de depósitos de água, e a camada de enchimento é uma forma engenhosa para a filtragem da água.
Os desenhos parecem mimetizar um corte geológico. A força destes desenhos revela uma empatia com o lugar e com a sua materialidade que se compreende no conjunto e em cada detalhe. A rocha porosa e leve permite acumular humidade e alimentar o mato bravo (funcho, videira, erva-cidreira e mostardinha, entre outras), e tem o peso formal e a leveza física que justificam o detalhe construtivo inusitado. As paredes dispõem de um sistema de perfuração e de grelhas que garantem a ventilação natural dos espaços. A forma do conjunto também se caracteriza pela permeabilidade dos acessos, pelas rampas que conectam os espaços exteriores interiores, os corredores e acessos cobertos nas áreas de serviços e nas zonas técnicas. Podemos entender o conjunto como uma massa porosa que se foi moldando na erosão do processo de projecto.
A FUNÇÃO DO LUGAR
O processo teve início em 2007, com um concurso de arquitectura integrado no programa de consolidação do Parque Natural do Fogo, promovido pelo governo de Cabo Verde e com financiamento integral da Cooperação Alemã para apoio a países em vias de desenvolvimento. As sucessivas reuniões e debates com os diferentes intervenientes e utilizadores do futuro edifício levaram a uma gradual alteração do programa funcional. O projecto foi-se ajustando ao programa, ao lugar e às exigências das especialidades, particularmente às componentes térmica e mecânica. As simulações dinâmicas das especialidades foram requerendo avanços e recuos relativamente às soluções adoptadas que o desenho da arquitectura foi capaz de receber e integrar. Os autores sublinham que foi exactamente esta característica que motivou a ideia de projecto. A partir de dados concretos procuraram fazer o mínimo para integrar o máximo e tirar partido da real expressão do lugar. Sem artifícios, respeitaram a crueza dos dados, uma metodologia que acabou por caracterizar o edifício, como que sublinhando a ideia de que o funcional é belo.
O programa caracteriza-se por uma área administrativa e técnica de apoio ao Parque Natural com salas para gestão, monitorização das espécies e da actividade vulcânica e integrou um conjunto de valências de apoio à comunidade. Foi acrescentada uma biblioteca, um centro de exposições e dois auditórios, um interior e outro exterior. A infra-estrutura e os serviços prestados pela biblioteca, nomeadamente o acesso à Internet, permitem-lhe receber visitas diárias da população local, nomeadamente de estudantes. Se o primeiro objectivo foi criar um centro de interpretação do vulcão e da paisagem, foi possível ajustar o programa para que o edifício se tornasse uma mais-valia para a população. Discreto mas perceptível no impacto visual, a sua função exprime-se na consolidação de uma nova paisagem física e social.
AUTO-SUFICIÊNCIA
Desde o primeiro momento, a concepção do projecto e a sua estrutura formal procuraram responder ao problema da auto-suficiência. O lugar assim o exigia: auto-suficiência de energia, de comportamento térmico equilibrado e ventilação natural, e de gestão de águas. Esta procura fascinante de independência é um tema recorrente, mas neste contexto específico tornou-se um imperativo e não apenas um desejo ou um argumento teórico. Temas comuns foram elevados à categoria de premissas fundadoras do projecto. O edifício demonstra essa resposta, adapta a sua cércea ao relevo preexistente, no sentido de se agarrar geograficamente ao terreno, tirar o melhor partido da orientação solar e levar a que, através dos acessos e da forma volumétrica, se definam caminhos de recolha de águas pluviais.
A engenheira Maria João Rodrigues, coordenadora dos projectos de especialidades e ideóloga do sistema térmico e de produção de energia, garante que as dificuldades que o projecto apresentava se transformaram numa oportunidade criativa para pensar um edifício capaz de integrar os vários elementos passivos. A especificidade das paredes e dos seus materiais, os ensombramentos dos vãos e a cobertura ajardinada foram sendo afinados através de cálculos dinâmicos e concomitantes com o trabalho dos arquitectos. Em forma de desabafo, a engenheira confirmou: “Não é fácil encontrar arquitectos disponíveis para esta intersecção. Ao longo da minha experiência profissional foram muito poucas as situações em que realmente foi possível fazer e concretizar este tipo de experiência.”
A estratégia adoptada visou, por um lado, eliminar as cargas para climatização (aquecimento e arrefecimento), fazendo uso de uma combinação de massa térmica, isolamento, exposição solar controlada e ventilação natural, e, por outro, reduzir significativamente as cargas de iluminação artificial introduzindo níveis adequados de iluminação natural nos espaços com maior utilização. As temperaturas internas são controladas passivamente – tirando partido da interacção entre a inércia térmica (que permite a acumulação de calor durante o dia) e a ventilação natural nocturna (facilitada por grelhas dispostas estrategicamente ao longo da envolvente dos diferentes blocos). E a ventilação natural beneficia da exposição favorável do edifício aos ventos locais, promovendo, durante a estação de arrefecimento (Verão), o arrefecimento nocturno das várias áreas do edifício, particularmente nas áreas administrativas e de exposições.
Devido à integração dos sistemas construtivos, e com a vantagem de o seu uso ser exclusivamente diurno, o edifício tem um baixo consumo energético, que lhe permite funcionar normalmente em total autonomia. O uso esporádico do auditório, que vai gerar picos de consumo, fez prever um gerador de emergência para o caso de ser consumida a energia acumulada nas baterias. O sistema fotovoltaico está desenhado para ser ligado à rede (ongrid), embora a maior parte da energia produzida seja directamente consumida e o recurso às baterias seja muito reduzido. A gestão das águas, um bem escasso, é feita através de dois tanques de recolha estrategicamente colocados por baixo da cobertura ajardinada. A água pluvial é tratada localmente e está integrada num circuito de consumo que a reutiliza para todos os usos.
O LUGAR DO ENGENHO
A sede do Parque Natural do Fogo é um engenho complexo; simultaneamente austero e racional, é, também, como um pedaço de lava. O trabalho dos arquitectos foi capaz de gerar uma infra-estrutura que pertence ao lugar. O presidente de Cabo Verde, Jorge Carlos Fonseca, considerou este edifício um símbolo da arquitectura contemporânea cabo-verdiana. A referência é legítima porque a obra representa a tensão entre o engenho humano e a inclemência da natureza, entre o Homem e a força esmagadora do Vulcão. Tal como na Casa de Lava, filme de Pedro Costa rodado na ilha do Fogo em 1993, ou em Stromboli, filmado em 1950 por Roberto Rossellini, a paisagem e as tensões das relações sociais que se geram à margem do vulcão caracterizam-se pelas margens ténues entre a ficção e a realidade. Entre o mimetismo e a insinuação, não é claro se neste edifício pertencemos, ou não pertencemos, ao vulcão. Tal como em Stromboli, não vivemos sem ele, não vivemos com ele.
Este texto foi publicado no J-A 250, Mai — Ago 2014, p. 378 – 389.
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De um ponto de vista energético, o edifício tem independência total. A produção de energia é conseguida através de painéis fotovoltaicos integrados na cobertura, a qual, por não ter inclinação, minimiza os desperdícios e favorece a integração dos equipamentos na ideia do projecto. O campo fotovoltaico divide-se em quatro strings de 20 painéis cada, ligados a um inversor de rede trifásico modelo STP17000 da SMA com potência nominal de saída de 17 kW e factor de potência 1. A matriz fotovoltaica tem uma produção anual de 35,2 MWh, a que corresponde uma produtividade de 1870 kWh/kWp, um ráciode desempenho de 78,9% e uma eficiência global anual média de 11,3%. A componente passiva do edifício é de grande eficácia e foi calculada com a plataforma de interface Design Builder (motor de cálculo EnergyPlus), que permite simular o comportamento térmico com modelos de análise dinâmica.
SEDE DO PARQUE NATURAL DA ILHA DO FOGO
Localização
Chã das Caldeiras, ilha do Fogo, Cabo Verde
Projecto
2007-2013
Conclusão da Obra
2013
Cliente
Ministério da Agricultura
Área Total de Intervenção
3200 m2
Valor de Construção
1 200 000 €
Financiamento
KFW | General coordination, GOPA
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