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Acesso pela cota alta. As coberturas de madeira, plana e inclinada, funcionam como solário orientado a sul



Isabel Barbas (texto) / Valter Vinagre (fotografia)

Na ‘Ilha Negra’


Casa E/C, São Roque, Ilha do Pico.
Projecto de Sami

Pico é a mais bela, a mais extraordinária ilha dos
Açores, duma beleza que só a ele lhe pertence,
duma cor admirável e com um estranho poder de
atracção. É mais do que uma ilha – é uma estátua
erguida até ao céu e amolgada pelo fogo – é
outro Adamastor como o do cabo das Tormentas.
Raul Brandão, As Ilhas Desconhecidas

O concelho de São Roque é o menos populoso da ilha do Pico, que, segundo os últimos sensos, tem 14 806 habitantes. Na ilha destaca-se a imponente montanha do Pico, que, com uma altitude de 2351 metros, é o ponto mais alto de Portugal. São Roque e a Casa E/C ficam por trás de um segundo edifício vulcânico, numa encosta de grande declive, voltada a norte. Dos “mistérios” (solos de basalto formados por erupções vulcânicas ocorridas após o povoamento) às piscinas naturais nas lajes de pedra, passando pelas atafonas erigidas em pedra seca empilhadas ao longo de gerações, ou dos maroiços, muros, currais, adegas e casas primitivas, até às construções de carácter religioso, o basalto negro imprime um valor cromático que, na sua relação com o mar e a vegetação, caracteriza de forma impressiva uma bela atmosfera negra, sóbria e enigmática. No código de cores das ilhas açorianas, o Pico é a “ilha negra”. A Casa E/C foi construída nesta paisagem.

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DE PARIS PARA O PICO

A ilha do Pico encontra-se num conjunto vulcânico que dista 2710 quilómetros de Paris, cidade onde se conheceram Inês Vieira da Silva e Miguel Vieira, quando, em 1999, eram ambos bolseiros Erasmus na École d’Architecture de Paris La Villette. Depois de estágios curriculares em Paris e Évora, integraram a equipa coordenada pelo arquitecto Nuno Ribeiro Lopes no gabinete de gestão da candidatura do Pico a Património da Humanidade. Entre 2002 e 2004 trabalharam juntos na ilha, testando compatibilidades (distintas sensibilidades e formações), e assim se formaram os Sami, antecedendo a criação de um escritório em 2005, na cidade de Setúbal, onde actualmente exercem a profissão.

‘DA PEDRA NASCEM UVAS’

Foi à custa de trabalho árduo que os campos de lava se foram transformando em vinhedos férteis e produtivos. Esta cultura atingiu o auge nos séculos xviii e xix, dando origem a um vinho aperitivo regional – o verdelho – que se desenvolveu no momento em que os baleeiros americanos chegaram ao Pico e implementaram a caça ao cachalote. O ciclo do verdelho terminou abruptamente com o oídio e a filoxera, na segunda metade do século xix, um século antes das proibições internacionais que puseram fim à caça ao cachalote em 1984. O declínio económico da ilha começou a ser ultrapassado no último quartel do século xx, com a pesca do atum e o desenvolvimento da indústria de conservas e, recentemente, com a sua valorização turística. A indústria do turismo tem-se voltado para o mar: observação de cetáceos, mergulho, piscinas naturais, etc., complementando essa oferta com outras actividades de lazer, como a escalada, trilhos pedestres, observação de pássaros, etc.

O turismo e a valorização da paisagem associada desencadearam uma recuperação cuidadosa das vinhas, cuja extensão de currais (cerca de duas voltas ao equador) desenha na ilha um rendilhado de pedra extraordinário. A construção das vinhas é de tal forma expressiva e representativa da acção do homem sobre a terra de lava que foi criado um gabinete técnico para a proteger. Durante dois anos, enquanto se formavam como Sami, os arquitectos participaram na gestão da paisagem da vinha, que culminou com a elevação do conjunto ao estatuto de Património Mundial.

Perante a pressão turística a que o frágil território está a ser sujeito, o trabalho que os Sami desenvolveram e continuam a desenvolver tem contribuído, pelo seu exemplo, para uma tomada de consciência da necessidade de rigor, profissionalismo e relevância da arquitectura. Sobretudo, se for tido em conta que a transformação pretende não descaracterizar a paisagem, uma paisagem “protegida”, onde o exercício da arquitectura, desde o pensar ao fazer (ou não fazer…), é vital para o seu crescimento.

DOIS ARQUITECTOS, DOIS ANOS
DOIS TRABALHOS, DOIS PROJECTOS

O gabinete de protecção e candidatura da paisagem da vinha a Património da Humanidade funcionava, e continua a funcionar, como um gabinete de atendimento à população. Na maior parte dos casos, o trabalho dos arquitectos era ajudar pessoas que lidavam pela primeira vez com outros arquitectos, esclarecendo-as acerca de como construir as suas adegas, acrescentos e anexos. “Tínhamos de explicar as coisas taco a taco a uma população para quem o território é tudo, porque é finito. Porquê e para quê construir em pedra.” Se a lei exige, o governo que pague – reclamavam muitos dos habitantes que só queriam fazer uma casa de banho. Outra regra imposta pelo gabinete foi a de que todos os projectos deveriam ser assinados por arquitectos, avaliando as propostas submetidas à luz do regulamento da paisagem da vinha. No desempenho dessas funções, os Sami sentiram ter sido muito importante “serem de fora”. Esse “afastamento” permitiu uma melhor aceitação das novas regras impostas pelo gabinete.

Em paralelo com essa actividade, trabalharam no inventário dos edifícios da área de paisagem de vinha, verificando dissonâncias e o que se poderia fazer para as corrigir. Como o Governo Regional tinha “bens” dentro da paisagem candidata, considerou que essas reformas ou obras deveriam servir de exemplo dentro da lógica de recuperação. O trabalho do gabinete passou a acumular microprojectos de apoio a entidades locais; os dois arquitectos projectaram uma casa de banho, um telheiro paroquial e a recuperação/reconstrução de um moinho na zona protegida. A principal referência desse trabalho acabou por ser o projecto do Centro de Interpretação da Cultura da Vinha, encomendado em 2003 pela Direcção Regional do Ambiente. O trabalho consistiu num acrescento em vidro escurecido que emoldura, em “corte”, o terreno de cultivo da vinha com o Pico, impondo-se no horizonte – uma montra didáctica e explicativa do curral. O paralelepípedo de vidro está volumetricamente integrado na continuidade do edifício solarengo do século xviii, que foi cirurgicamente recuperado para manter as suas características originais e passou a ser exemplo de recuperação e intervenção no edificado “histórico” da ilha. A obra só terminou a sua segunda fase em 2009, e em 2011 foi nomeada para os prémios FAD.

Outro edifício projectado no mesmo contexto, apesar de estar fora da zona classificada, foi o projecto para o Centro de Visitantes da Gruta das Torres. Estava em curso uma obra projectada por um desenhador técnico e, perante os resultados positivos que os arquitectos estavam a demonstrar, o Governo inverteu o curso das obras atribuindo o projecto ao gabinete, valorizando assim a belíssima relíquia geológica. A urgência da intervenção reclamava, do projecto à obra, uma operatividade que ambos já tinham experimentado nos variadíssimos trabalhos do gabinete. O pragmatismo ditou o betão, e a tradição local um rendilhado em pedra. Um muro de basalto em caracol protege o acesso ao interior da gruta e, camuflando com o rendilhado, envolve o edifício de acolhimento em betão, desenhado em função do programa necessário para uma descida segura e informada ao tubo lávico.

Estas duas obras, com especial destaque para o projecto da Gruta das Torres (concluído em 2005 e vencedor em 2009 do prémio Tektónica/OA), proporcionaram aos Sami uma extraordinária repercussão mediática, mas não só. “Estes dois anos foram importantíssimos para nós, porque o trabalho nos obrigou a resumir o que já trazíamos e, de repente, tivemos de o aplicar a um sítio onde a arquitectura estava no seu mais elementar.” Neste contexto não existe o supérfluo e a pedra está intimamente ligada ao Homem. Como comentou Eduardo Souto de Moura no Pico, “a ilha funciona como uma máquina”.

VÁRIAS CASAS, UM PROJECTO

A Casa E/C, uma casa de férias para um casal de Lisboa, foi o primeiro projecto privado da dupla na ilha do Pico. Apesar de a obra só ter sido concluída em 2013, o projecto começou a ser concebido em 2005, quando os arquitectos voltaram para o continente. Graças à sua ligação e presença no Pico, em 2007 projectaram outra casa privada para residentes na ilha, a casa C/Z, cuja obra foi concluída em 2010 (nomeada para o prémio Mies van der Rohe em 2011 e 2.º lugar no Prémio Nacional de Arquitectura em Madeira).

A Casa C/Z é composta por quatro volumes em madeira escurecida, que se protegem ou abrem para as diferentes orientações, ventos e paisagens, tirando partido da pendente do terreno. Um balcão/ miradouro abre-se para o oceano, em contraponto ao encastramento dos volumes no ponto mais alto do terreno. A cobertura é totalmente visível e unifica os quatro volumes, apesar de, em pormenor, os revelar. O tema do balcão, as plataformas que relacionam interior e exterior, o tirar partido da topografia, a possibilidade de estabelecer leituras duplas e a integração de pormenores que podem ou não pôr em causa a leitura daquilo que poderia ser o “conceito inicial do projecto” revelam não só uma preocupação de integração e adequação ao lugar físico e cultural, mas também a procura de “complexidade e qualidade do espaço”. Preocupações, ou formas de projectar, que caracterizam também a Casa E/C, embora esta resulte de um pressuposto completamente diferente: construir uma casa preservando a ruína preexistente.

Apesar das diferenças, as duas casas no Pico revelam um conjunto constante de preocupações arquitectónicas. Podemos encontrar os mesmos pressupostos num projecto que realizaram para Ordos, na China. Nessa casa arriscaram trabalhar uma linha curva que desenha todo o projecto. Ou também num projecto para a Casa Wallpaper, em que a água funcionou como elemento (re)definidor de limites e espacialidades. São as diferenças dos contextos que geram diferentes abordagens – não obstante os Sami afirmarem que a atitude ao projectarem uma casa em Ordos é semelhante à atitude que têm ao projectar no Pico. O que se aplica na China também se poderá aplicar para uma casa que neste momento projectam para Bali, ou para uma intervenção que estão a ultimar na ilha do Pico, a Casa do Granel.

A interpretação do lugar ou programa, aliada a uma relação estruturada entre o “conceito” e a matéria ou materiais construtivos, revela uma atitude que se afasta da maioria dos arquitectos da sua geração, e que contribui para os definir como os mais novos dos velhos. O seu processo de trabalho resulta de um tempo longo que tem dificuldade em coadunar-se com a dinâmica dos concursos ou com a possibilidade de se dedicarem a outras actividades como o ensino: “A concentração no escritório é total.” Nunca ficam deslumbrados com um desenho e desconfiam dos projectos que perseguem o “conceito”: “É importante o ‘conceito’ do projecto, mas isso não é uma história que se conta; não andamos à procura do enredo que conta a história do início ao fim.” No seu processo de trabalho não existe o “esquiço emblemático” nem a construção de maquetas conceptuais. Trabalham o projecto em modelos digitais tridimensionais e só experimentam em maqueta perante uma questão importante. Perseguem o desenho até à exaustão, em busca de equilíbrio e complexidades caracterizadoras de “profundidade na arquitectura”, tema que consideram fundamental e que temem estar a perder-se no exercício contemporâneo da arquitectura: “Não há nada, por mais pequeno que seja, que não tenha intensidade e qualidade.”

UMA CASA

O fascínio exercido pela “ruína” levou os clientes a desejar uma casa de férias “típica”. Compraram um terreno com uma ruína que preservava a estrutura de uma casa: o piso inferior para os animais e o superior para habitação, com cisterna e forno alto. Sem laje e cobertura, as paredes que a definem, com aberturas magníficas para a paisagem, são de basalto em junta seca, sem qualquer argamassa, de acordo com a tradição da ilha. O terreno em forte pendente é cultivado com milho e tem na zona inferior escadas de acesso à casa. O desejo dos clientes era recuperar a bela ruína. Valorizando esta premissa, os Sami fizeram outro exercício: construir uma casa totalmente nova dentro da ruína, conseguindo assim manter a sua integridade. A beleza que emana da memória histórica, a delicadeza dos processos construtivos, as tonalidades e o tempo continuarão a afirmar-se na paisagem com a elementaridade e força expressiva da adaptação do homem à ilha vulcânica. A ruína é assumida como um “cenário” a preservar para desfrute estético e afirmação da sua presença simbólica. A casa nova, de betão aparente e coberturas em deck de madeira, adapta-se à preexistência, tirando partido das possibilidades oferecidas pela dupla fachada: “O projecto começou por preencher todos os limites da ruína, e depois percebemos que, se nos afastássemos das paredes, os vãos poderiam ter outra dimensão e alinhamento.” A ideia de a “fachada olhar para si própria” teve origem neste processo de desenho e os (des)alinhamentos, encontros e desencontros originaram um espaço complexo, inusitado e muito qualificado.

A relação entre o novo e o velho afirma-se através da integridade de cada elemento e do respeito pela identidade de cada tempo. O par movimenta-se suavemente entre o contacto e o afastamento dos corpos. Essa afinação gera uma nova identidade singular. Entre o tempo lento do escritório em Setúbal, o calor de uma casa de férias e o rigor do clima na “ilha negra”, o encontro refinado e subtil entre a construção contemporânea e as capacidades “simbólicas” da ruína pode ser entendido como um manifesto acerca das funções da arquitectura.

Este será publicado no J-A 249, Jan — Abr 2014, p. 298-309.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

CASA E/C
Localização
São Miguel Arcanjo,
Ilha do Pico, Açores
Projecto
2005–2007
Construção
2010–2013
Área de Construção
218 m2
Arquitectura
SAMI-arquitectos:
Inês Vieira da Silva,
Miguel Vieira
Colaboradores
Bruna Silva,
Rita Maria Pinto e
Daniel Mentech
(estágio)
Projecto de Estabilidade
Ricardo Ferro Antunes
Projecto de Água e Saneamento
Paulo Jorge Almeida Oliveira
Projecto Electrotécnico
Hugo Mendonça
Construtor
José Artur Cruz Leal