Exposição Ano Editorial, Amadora BD 2014 – "25 Anos". Fotografia: Eva Sousa



Joaquim Moreno

METABOLISTAS NA AMADORA

Duas edições do Festival de Banda Desenhada da Amadora

Como tantas outras coisas nestes dias de país cinzento, também a arquitectura do Festival Internacional de Banda Desenhada da Amadora entrou em 2013 no registo low-cost. Para sermos precisos, o custo da obra foi de 38,50 euros por metro quadrado em 2013 e 30,50 euros por metro quadrado em 2014, segundo os dados da nova equipa projectista. O corte radical que o orçamento para a montagem sofreu quebrou o ciclo anterior e implicou uma mudança radical na lógica e na ideia de festival, enfatizando, ao invés de esconder, a reutilização. Foi neste quadro que os Vírgula i foram incluídos numa short-list e depois seleccionados para responder ao novo ciclo de vacas magras. O grande tema do projecto foi a sucessão de transformações que todos os festivais atravessam (este já com 25 anos). Este artigo reporta-se, portanto, aos projectos de 2013 e 2014, uma vez que eles constituem duas encarnações do mesmo metabolismo, ou duas metamorfoses dos muitos materiais que o festival foi acumulando, misturados com o equipamento móvel do Fórum Luís de Camões: bobines de madeira, balizas de futebol de salão, paletes, iluminação de halogéneo, plantas envasadas do horto municipal, cubos de madeira, caixotes, lonas impressas, painéis de revestimento ainda impressos ou com desenhos de um qualquer atelier infantil, mobiliário avulso, bancadas retrácteis, estruturas modulares metálicas, pórticos de barrotes de madeira… A ideia de base do projecto foi, assim, reorganizar os fluxos e os ritmos destes materiais.

As arquitecturas do Festival de Banda Desenhada são dois projectos no sentido literal: são ordenamentos da transformação, não a determinação de uma obra final. Mas também não são efémeros. Na Amadora, as arquitecturas do festival não desaparecem, hibernam, e acordam metamorfoseadas na estação seguinte. O projecto é tanto o desenho da metamorfose como da hibernação, tanto da transformação a partir da acumulação de materiais como da armazenagem, da vida suspensa dos componentes. E a manipulação das lições metabolistas não fica por aqui, também se estende a uma análise rigorosa da escala e complexidade dos componentes, dos seus elementos, dos diferentes ciclos de uso no seu interior, do encapsulamento que são capazes de produzir e das lógicas de conjunto que geram, da permanência, da permutação e da standardização. Mutatis mutandis, são uma espécie de Fumihiko Maki e Kisho Kurokawa na Amadora, mas com materiais baratos e anacrónicos.

A organização dos ciclos dos materiais era incompatível com algumas das formas de gestão do investimento financeiro do festival, mais precisamente o aluguer de um dos elementos fundamentais da arquitectura: o chão. O lugar do festival, o Fórum Luís de Camões, é um lugar emprestado, mas o chão do pavilhão tinha de ser protegido, pelo que todos os anos uma parte significativa do orçamento estava a ser destinada para alugar um material de protecção. Um dos gestos de projecto mais decisivos foi comprar um chão em OSB, ou melhor, comprar um material que pode ser chão, ou pode ser outra coisa: pode ser parede ou dobrar-se em mobiliário. O preço de comprar um chão era quase igual ao de alugar outra vez o chão do costume, mas ser dono do chão em casa emprestada domestica, apropria, reconforta, como um velho tapete que simboliza o limite do doméstico. Assim, o chão comprado é um material e um componente simbólico. As estruturas de madeira em forma de casinha também são um novo componente deste cenário, mas são apenas o contorno simbólico da tal domesticação, ou da sua narrativa gráfica.

Além de comprar o chão, porque o chão do pavilhão desportivo é delicado, foi preciso reorganizar as ligações entre os dois espaços do festival: o pavilhão desportivo e um piso de garagem contíguo. Há dois cenários arquitectónicos: a arquitectura de salão nos 14 metros de altura do pavilhão; e a arquitectura de garagem estacionada num pé-direito exíguo com 2,8 metros, sem contar com a dimensão das infra-estruturas nos tectos. Para ligar estas duas partes tão distintas, nada como misturar componentes de cada uma delas. A lona serigrafada que dantes servia de limitador e cortina no piso de cima foi entrelaçada na horizontal para abrigar uma estrutura que reciclava os tubos metálicos do piso inferior. Além de fazer convergir os materiais, o projecto também fazia convergir as circulações, agora reorganizadas perifericamente nos dois espaços. As estruturas porticadas em forma de casinha dispunham-se transversalmente, e o percurso dependia dos componentes acrescentados, verso e reverso, interior e exterior, organizando uma superfície contínua num lado, dedicada à exposição geral, e gerando as ditas white boxes no outro, repartidas individualmente pelas exposições. Uma das casinhas fazia de cenário ao auditório, instalada em frente de um dos blocos de bancadas móveis. Continuando a lógica de aproveitar a especificidade de cada espaço, a arquitectura da garagem organizava um cenário mais industrial, com as estruturas de tubos metálicos a conformar os espaços dispostos contra os limites, para organizar um jardim central, a tal floresta de vasos do horto municipal, uma natureza emprestada e bem iluminada, destinada a oxigenar o outro metabolismo.

O festival entrou em hibernação no fim de 2013 e, quando chegou a altura de o despertar de novo, em 2014, tornou-se evidente a necessidade de gerar uma continuidade material assente numa metamorfose formal. Era preciso fazer outra coisa com o mesmo, pôr a render os refrescamentos do ano anterior e atender a nova contracção orçamental. O núcleo central da exposição foi resolvido com uma topografia de paletes, com tampos de uma cor para expor quase cem livros, tampos de outra cor para sentar e ler, e paletes sem acabamento para percorrer este espaço. O novo ingrediente da reutilização foi, assim, o catalisador da metamorfose. As estruturas porticadas alinharam-se longitudinalmente, por bandas de diferentes densidades e com circulação em cruz, e o kit voltou a ser cuidadosamente betumado e pintado. A arquitectura da garagem teve de se adaptar às exigências de um festival que é festa mas também é feira, com zona comercial, de autógrafos, boxes temáticas, etc. Aqui, o catalisador, a rede-baliza, não só era o material mais barato disponível no mercado, como era de montagem rápida e de fácil armazenamento (pelo pouco volume).

Pouca matéria para muita área, esticada nas estruturas metálicas, e preparada para hibernar numa caixa. A análise dos diferentes ciclos metabólicos dos materiais disponíveis é afirmada como estratégia de projecto, o que permite o gesto desta crítica: ser crítica de projecto – não simplesmente ser crítica de obra ou crítica de uma determinada solução a um problema –, mas ser crítica do que realmente fazem os arquitectos: projectos. Os metabolistas na Amadora lembram-nos essa lição: reclamar para a arquitectura a organização da transformação contínua do ambiente construído, ainda que seja apenas o cenário de uma festa, ou feira, chamada festival.

Este texto foi publicado no J-A 251, Set — Dez 2014, p. 488 – 491.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

FESTIVAL DE BANDA DESENHADA DA AMADORA 2013 E 2014
Arquitectura
Vírgula i
Equipa
Pedro Guedes, Leonor Macedo, Teresa Aguiar,
JP Pereira
Projecto de Instalações Eléctricas
Rúben Sobral
Consultoria de Estabilidade
Vera Silva
Design e Sinalética
GBNT
Construtor
Interangulo – Construções, Lda.