(1)

Azeredo Perdigão e Eusébio com a selecção iraquiana de futebol, Bagdade, Novembro de 1966. Cortesia Fundação Calouste Gulbenkian



Nuno Grande

GULBENKIAN VS. LE CORBUSIER

Estádio de Bagdade: “Mil e uma noites” de diplomacia política e cultural

A aparentemente inusitada fotografia das páginas 418-419 documenta um encontro entre várias personagens: Eusébio, jogador do Benfica (em cima), rodeado por elementos da Selecção de Futebol da República do Iraque, está também acompanhado pelo presidente da Fundação Calouste Gulbenkian, José de Azeredo Perdigão (em baixo), em pose de inesperado “treinador”. Captada em 1966, a imagem marca o corolário de um notável processo de diplomacia institucional, levado a cabo por Azeredo Perdigão, em prol da concretização do complexo do grande Estádio de Bagdade; tão notável que, para o idealizar e edificar, a Fundação Calouste Gulbenkian (FCG) se viu obrigada a ombrear com uma encomenda congénere feita anteriormente pelas autoridades iraquianas a Le Corbusier (LC), uma década antes da sua morte. Um processo de siglas, FCG versus LC, e dois projectos realizados para cumprir um programa simbólico, uma verdadeira história “das mil e uma noites”.

UMA CIDADE DESPORTIVA EM BAGDADE

A evolução da proposta de LC foi descrita pela arquitecta e historiadora Mina Marefat – Baghdad: a Sport City That Might Have Been – na exposição e catálogo Le Corbusier, An Atlas of Modern Landscapes, coordenados por Jean-Louis Cohen e apresentadas no Museum of Modern Art de Nova Iorque em 2013. Marefat explica que a encomenda de uma “Cidade Desportiva” ao mestre franco-suíço resultou da política de grandes obras públicas encetada ao longo da década de 1950 pelo então jovem monarca iraquiano, Faisal II, visando engrandecer Bagdade com edifícios de renomados arquitectos ocidentais, tais como Walter Gropius, Frank Lloyd Wright, Alvar Aalto, Josep Luis Sert e Gio Ponti. Um ano após a sua primeira viagem à capital iraquiana, em 1957, LC apresentou uma proposta para o ambicioso complexo a construir na margem direita do rio Tigre: um estádio para 55 mil espectadores, um pavilhão gimnodesportivo coberto para 3500, um campo de voleibol para 3000, um conjunto de piscinas, para 5000, além de campos de ténis e um restaurante. Estas “peças” eram colocadas num “tabuleiro” rectangular repleto de relvados arborizados e pontuados por canais de água alimentados pelo caudal do Tigre.

A proposta foi aprovada pelo Iraq Development Board a 12 de Julho de 1958, precisamente dois dias antes da eclosão de um golpe revolucionário inesperado que ditou a deposição e o brutal assassínio do rei Faisal II, por um comando de militares pró-republicanos. A partir de então, e tendo em conta não apenas a instabilidade política e económica que se instalou no Iraque, mas também a maior animosidade dos novos governantes em relação à cultura ocidental, muitos dos projectos lançados pela anterior monarquia foram abandonados ou adiados sine die. Esta razão foi determinante para o esmorecimento das relações da nova república iraquiana com o projecto de Le Corbusier e, no sentido contrário, para o reforço da proposta lançada pela Fundação Calouste Gulbenkian – instituição criada com base no legado do milionário arménio, detentor de 5% da Iraq Petroleum Company – para financiar e construir o grande estádio de Bagdade. Na extensa documentação inédita que existe nos arquivos da FCG conseguimos perceber que essa proposta de financiamento foi, na verdade, endereçada por Azeredo Perdigão às autoridades iraquianas, em 1957, destinando-se a presentear o governo de Faisal II como retribuição pelos sucessivos dividendos financeiros que a instituição retirava da exploração petrolífera naquele país.

Tomando consciência de que existia já uma encomenda para um programa semelhante feita a LC, em Maio de 1958 Azeredo Perdigão escreveu ao embaixador português em Inglaterra (e trustee da FCG), Pedro Teotónio Pereira, pedindo-lhe para abordar o assunto com o ministro do Desenvolvimento do Iraque, Dhia Jafar, então em tratamento médico em Londres. Na carta, o presidente da FCG sugere:

Não há dúvida de que Le Corbusier é um arquitecto excepcional, mas com certeza que os seus serviços serão dispendiosos, porquanto são muito procurados por Governos e Municipalidades. Além disso, não há certeza de que se trate de um perito na construção de estádios. Ocorreu-nos que os técnicos mais qualificados e actualizados para o efeito são alguns dos arquitectos portugueses a quem devemos os magníficos estádios que possuímos em Lisboa e no Porto. [...] Gostaria de saber se V. poderia avistar-se com o Dr. Dhia Jaffar, antes de este ser internado, formulando-lhe um convite, em nome da Fundação, para visitar Lisboa; durante essa visita, teríamos o maior prazer em lhe mostrar o género de excelentes construções que devemos ao talento dos arquitectos nacionais. Poderíamos conseguir uma troca de impressões entre eles e Dhia Jafar, e tenho a certeza de que poderíamos afastar Mr. Le Corbusier e fazer progressos no tocante à efectuação da proposta que apresentámos.

Na sequência da revolução iraquiana, o ex-ministro Dhia Jafar exilou-se em Londres, e a proposta da FCG pareceu então definitivamente condenada. Surpreendentemente, a 6 de Outubro de 1958, Sayed Fu-ad al-Rikabi, o novo ministro do Fomento iraquiano, dirigiu uma missiva a Azeredo Perdigão manifestando o interesse da nova República do Iraque em manter o projecto de um grande estádio em Bagdade, contando, para o efeito, com a anterior proposta de financiamento da FCG.

Azeredo Perdigão retomou o seu entusiasmo pela iniciativa, propondo uma troca de missões entre técnicos iraquianos e portugueses, a realizar em ambos os países, no sentido de concretizar o apoio e, na sua mente, “afastar Mr. Le Corbusier”. Em Dezembro de 1958, deslocaram-se a Lisboa dois técnicos iraquianos para sedimentar o acordo e visitar uma série de estádios construídos em Portugal durante essa década. Embora impressionados com a qualidade dos projectos portugueses, os iraquianos mantiveram a intenção de canalizar o financiamento da FCG para o projecto de LC. Em Janeiro de 1959, Azeredo Perdigão escreveu ao ministro do Fomento do Iraque, afirmando que apenas poderia suportar o custo do estádio de LC (avaliado em 1 milhão e 50 mil libras) e não a totalidade do seu complexo desportivo (estimado em 2 milhões e 400 mil libras). Ao longo desse ano, hábil e paulatinamente, Azeredo Perdigão induziu o governo iraquiano a protelar o grande projecto de LC e a optar por outro menos ambicioso e dispendioso, totalmente financiado pela FCG e conduzido por arquitectos e engenheiros portugueses, reunidos sob os auspícios da sua instituição.

FCG VS. LC

Curiosamente, e segundo Mina Marefat, em Maio de 1959 Le Corbusier deslocou-se a Bagdade no sentido de reencetar negociações para a construção da sua Cidade Desportiva, sendo, a partir de então, informado de que deveria adaptar o estudo a novos terrenos, desta vez na margem esquerda do Tigre. Embora descontente com a situação, durante os cinco anos seguintes LC desenvolveu centenas de desenhos técnicos, reequacionando o programa proposto e aprofundando diferentes soluções construtivas. Isso leva a crer que, ao longo desse período, as autoridades iraquianas mantiveram LC iludido sobre as intenções políticas de construir a sua proposta, como comprovam as cartas que ele enviou para Bagdade entre 1963 e 1964, exigindo os honorários que lhe eram devidos pela revisão e aprofundamento do projecto.

A morte de LC, em Agosto de 1965, pôs fim à sua relação com este processo, do qual apenas resultou a construção tardia, em 1980, de um pavilhão gimnodesportivo coberto, respeitando o seu desenho, edificado na vizinhança do último terreno onde em 1964 ensaiou a distribuição da sua Cidade Desportiva. No sentido contrário, a proposta da FCG começou a consolidar-se a partir de Novembro de 1959, após a visita a Bagdade de dois técnicos do Serviço de Projectos e Obras da FCG: o arquitecto Sommer Ribeiro e o engenheiro Vaz Raposo. Desfeitas as dúvidas in loco,

os dois técnicos conheceram o terreno designado para a construção, numa área de expansão da cidade – a mesma onde Le Corbusier ensaiou a sua última proposta –, convencendo as autoridades locais sobre a inevitabilidade de ser a FCG a controlar os projectos e os concursos de empreitadas a realizar até à conclusão do empreendimento (“chave na mão”), dada a inexperiência dos técnicos iraquianos na gestão deste género de obra.

O programa final, acordado com a missão portuguesa, passou então a conter muitas das valências requeridas a LC – piscina olímpica com bancadas cobertas (agora com 2 mil lugares), campo de voleibol também com bancadas cobertas (mil lugares), e três cortes de ténis –, reduzindo a capacidade do estádio para 30 mil lugares. A redução permitia manter um tecto financeiro próximo do apontado por Azeredo Perdigão. No início de 1960, a FCG reuniu uma equipa coesa de técnicos de várias especialidades, dos quais importa destacar os arquitectos Francisco Keil do Amaral (consultor da Fundação) e o seu colaborador Carlos Manuel Ramos (co-autor do Estádio do Restelo, um dos mais apreciados pelos técnicos iraquianos), e os engenheiros João Vaz Raposo e Alderico Machado (então envolvidos no projecto da Sede e Museu Calouste Gulbenkian).

Após os primeiros trabalhos de terraplenagem e implantação das fundações em estacaria, a primeira pedra foi colocada a 14 de Julho de 1962, evocando o 4.o aniversário da implementação da República do Iraque. A obra decorreu ao longo de quatro anos, acompanhada pelos técnicos portugueses com apoio de técnicos locais, sendo as principais empreitadas realizadas por empresas iraquianas. Quando, em meados de 1966, Keil do Amaral e Carlos Ramos visitaram a obra, as premissas do projecto já estavam concretizadas e perfeitamente interligadas: a bancada nascente do estádio emergia, solta do terreno, em ferradura aberta – solução ensaiada por Ramos no Estádio do Restelo (1952-1956) –, e a bancada poente, coberta, expunha a sua ossatura estrutural em elegantes vigas curvas de betão – já experimentadas por Keil em obras precedentes. Também as opções encontradas para as coberturas das bancadas do campo de voleibol e da piscina olímpica, assim como dos balneários, em sucessivas calotes semicilíndricas, retomavam princípios apontados no projecto de Keil para a Feira das Indústrias de Lisboa (1952-1957).

O complexo desportivo foi inaugurado a 6 de Novembro de 1966, com a presença das mais altas autoridades iraquianas e tendo como momento-chave uma partida de futebol entre a Selecção do Iraque e a equipa do Sport Lisboa e Benfica, cuja deslocação fora inteiramente custeada pela FCG. Azeredo Perdigão marcou presença, acompanhado por uma extensa comitiva, regozijando-se então com a forte adesão política e popular ao recinto, entretanto denominado “Estádio do Povo” (Al-Shaab). No dia seguinte, os jornais anunciavam o resultado, Benfica 2 – Iraque 1, com base numa boa exibição de Eusébio. Mas a vitória portuguesa não acontecia apenas no plano desportivo; estendia-se ao plano da diplomacia política e cultural, partindo da táctica desse arguto “treinador” que encontramos na fotografia de dupla página: José de Azeredo Perdigão.

Este texto foi publicado no J-A 250, Mai — Ago 2014, p. 414 – 417.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O J–A agradece aos Serviços Administrativos da FCG, na pessoa do Dr. António Repolho Correia, e em especial ao técnico da instituição, Jorge Lopes, o entusiástico e qualificado apoio na consulta e reprodução dos documentos escritos e iconográficos necessários à realização do artigo “Gulbenkian vs. Le Corbusier”.