Abertura de caboucos e construção das fundações do centro Futebol para a Esperança, no Tarrafal. Fotografia: Ana Ramos



Ana Reis

Futebol para a esperança

Em Cabo Verde, a iluminação pública é quase inexistente, e a viagem de Toyota Hiace da Cidade da Praia para o Tarrafal, à noite, faz-se emersa na escuridão e no bafo quente do ar húmido da ilha. Na manhã do dia em que se apresentou o projecto “20 Centres for 2010” no Tarrafal, a primeira impressão do percurso entre o hotel e a Delta Cultura Cabo Verde (DCCV), no táxi local que é uma carrinha de caixa aberta, foi a de uma vila sem organização aparente, em construção, inacabada. Os edifícios de habitação, maioritariamente de dois andares em blocos de betão, crescem aqui e ali ao longo de curtas avenidas com expressão de abandono. O cinzento das paredes contrasta com caixilhos e portas pintados com cores primárias fortes, os telhados são lajes de pavimento com o ferro à vista das armações de futuros pilares, indício de que um ou mais pisos poderão vir a ser acrescentados – a generalização deste aspecto inacabado está relacionada com o pagamento, ou, neste caso, com o não pagamento, de um imposto sobre imóveis; não estando a obra “terminada” o imóvel está isento do pagamento. Na rua, há crianças de uniforme escolar, mulheres a vender fruta, adolescentes a vaguear, muitos cães e, à medida que se sobe para a DCCV, o tecido urbano torna-se mais denso e as estradas, agora mais estreitas, deixam de ser em paralelo e passam a terra batida. O centro da vila é organizado em torno de uma praça com um jardim público à volta do qual se distribuem edifícios de arquitectura colonial, a Câmara Municipal, o antigo Mercado Municipal e a Igreja. Os edifícios são pintados de cores fortes, os telhados são em telha de canudo com beirados, e as portadas dos vãos em madeira. No jardim, várias pessoas com laptops estão conectadas a uma rede Wi-Fi gratuita que o município disponibiliza, prática comum noutras praças do país.

A apresentação pública da campanha “20 Centres for 2010” a personalidades locais e a entidades envolvidas no projecto fez-se na DCCV. Foi feita em inglês e traduzida para português e para crioulo. A campanha surgiu no rescaldo do Mundial de Futebol de 2010 na África do Sul e resultou de uma parceria entre diversas entidades (Fédération Internationale de Football Association – FIFA), Streetfootballworld e Architecture for Humanity) em vários locais de África, e foi enquadrada no âmbito do movimento internacional Football for Hope, que reúne associações sem fins lucrativos que usam o futebol como ferramenta para transformar a vida de comunidades. O resultado final da campanha será a construção de 20 centros Football for Hope em quinze países africanos, até Junho de 2013. Cinco dos centros de acolhimento estão a ser construídos na África do Sul, os restantes são espalhados em países como o Botswana, Quénia, Ruanda, Gana ou Tanzânia. O programa para cada uma destas infra-estruturas é simples e idêntico em todas as intervenções, sem excepção: um edifício de um piso, com um máximo de 180 metros quadrados de área construída coberta para apoiar programas relacionados com educação e/ou de saúde pública, um campo de futebol em relva artificial com 20 por 40 metros, a reutilização e integração no projecto de arquitectura de dois contentores marítimos que transportam os materiais necessários para a construção do campo de futebol em locais remotos e, ainda, se o orçamento o permitir, espaços exteriores cobertos. O programa exige que se adoptem técnicas construtivas e mão-de-obra locais e sistemas passivos de eficiência energética.

A expectativa era desenvolver os projectos de arquitectura e especialidades nas fases normais de qualquer processo (estudo prévio, projecto-base e projecto de execução), num prazo máximo de 14 meses, que incluía ainda a elaboração de um concurso para seleccionar um empreiteiro – com a selecção de pelo menos três empresas para a apresentação de propostas, o que contribuiu para a transparência do processo de adjudicação. Neste prazo, deveriam ainda ser envolvidos parceiros locais (engenheiros, arquitecto e medidor-orçamentista), solicitadas aprovações às autoridades, licenciado o projecto e concluída a obra. Até hoje nenhum dos centros cumpriu este prazo, pelas mais variadas razões, mas a principal foi a vontade de responder a aspirações, requisitos e condicionantes de muitas entidades envolvidas e a dificuldade em adaptar um programa genérico às necessidades específicas de cada lugar. Projectar para locais tão diferentes como Cabo Verde, África do Sul ou Ruanda tem implicações distintas e nem todos os centros de acolhimento têm as mesmas necessidades – enquanto uns precisam de um edifício coberto e protegido, outros requerem apenas zonas exteriores cobertas, ou a melhoria de instalações existentes, apesar de o programa não prever esta elasticidade.

No projecto para o Centro n.º 16, que desenvolvi com a Architecture for Humanity, inicialmente na África do Sul e durante dez meses no Tarrafal, os principais desafios passaram pela limitação do programa e pela adaptação, dentro do valor orçamental previsto, às necessidades efectivas do cliente. A DCCV possuía já um centro comunitário (e escola de futebol) em funcionamento, que necessitava de obras de reabilitação e de zonas exteriores cobertas. Após vários workshops e com alguma dificuldade foi definido um programa-base que se resumiu a uma biblioteca, uma sala polivalente com portas de acordeão para ampliar a flexibilidade programática e instalações sanitárias para jovens com acessibilidade limitada. Optámos por reduzir a área coberta e incluir nos 180 metros quadrados um espaço exterior de sombreamento, respondendo assim às aspirações do cliente. O “truque” para este espaço exterior (considerado extra e que estaria sujeito a condicionantes financeiras) ser aprovado pela FIFA passou por considerá-lo como extensão do espaço interior.

A colaboração com parceiros locais foi essencial, quer durante a fase de licenciamento Cabo Verde tem um regime de edificação semelhante ao português, o Regulamento Geral de Construção e Habitação Urbana (RGCHU) é familiar do homólogo português e define as normas de licenciamento, técnicas e competências sancionatórias em vigor , quer no desenvolvimento de pormenores construtivos adequados e na utilização de materiais disponíveis. Nesse processo foi possível minimizar o custo total do projecto e, sobretudo, minimizar os custos de manutenção futura. O centro está agora em construção.

 

Este artigo foi publicado no J-A 247, Mai — Ago 2013, p. 166-167.

Correspondente no Tarrafal