A Clockwork Jerusalem. © FAT Architecture / Sam Jacob



Pedro Baía

FUNDAMENTALMENTE VENEZA

O título “Fundamentos” tem apenas uma razão, que é eu não estar convencido, ao observar as últimas cinco ou seis Bienais de Arquitectura, de que a arquitectura por si só esteja numa situação que desperte interesse suficiente para ser objecto de uma exposição. Quando estava para ser nomeado director da Bienal, pus apenas duas condições: a primeira, que precisaria de mais tempo para preparar a exposição — generosamente, a Bienal concedeu-me dois anos para trabalhar com as várias equipas —; a segunda, que a exposição, mais do que exibir artefactos, deveria apoiar-se em investigação. É com grande prazer que apresento uma Bienal que olha para o passado, olha para a situação actual e, o mais importante, olha para o futuro, sem qualquer ligação com o discurso arquitectónico contemporâneo.
Rem Koolhaas, conferência de imprensa, Março de 2014

ABSORVER A MODERNIDADE

Um ponto fundamental da actual edição da Bienal de Arquitectura de Veneza é a valorização das práticas de investigação em teoria e história da arquitectura. Isto foi desde logo evidente no repto lançado por Rem Koolhaas quando propôs aos curadores dos pavilhões dos países representados uma reflexão sobre as diferentes assimilações da modernidade ao longo do último século, entre 1914 e 2014. Koolhaas lança a pergunta: até que ponto esta perspectiva histórica tem interesse operativo para a actual prática da arquitectura?

Absorbing Modernity foi o mote para confrontar um conjunto de países com a sua própria história. Cada país, através do seu curador, deveria deitar-se num divã psicanalítico para ensaiar a sua interpretação dos processos oblíquos de recepção da modernidade. A circunstância específica de cada contexto passou a ser um aspecto relevante para uma abordagem capaz de dar resposta ao desafio proposto. Ironicamente, estamos longe da postura fuck the context que há algum tempo caracterizava a cidade genérica retratada por Koolhaas. Num evento marcado pela presença de pavilhões nacionais, Koolhaas desafiou cada país a encontrar a sua identidade arquitectónica na confluência de relações culturais, económicas e políticas.

Por vezes, o sentido desses encontros é violento. A representação francesa, Modernity: promise or menace?, comissariada por Jean-Louis Cohen, não se inibiu de expor a dura realidade, mostrando que um dos primeiros grands ensembles modernos construídos em França nos anos 30 foi, durante a Segunda Guerra Mundial, utilizado pelos nazis como campo de concentração.  A República da Coreia, vencedora do Leão de Ouro com a exposição Crow’s Eye View: The Korean Peninsula, fez um ensaio politicamente arriscado sobre as fronteiras de uma península espartilhada pela modernidade. Também neste sentido, de busca e compreensão dos mecanismos de assimilação, o Chile, vencedor do Leão de Prata com a exposição Monolith Controversies, comissariada por Pedro Alonso e Hugo Palmarola, revelou a complexidade da sua história a partir de um painel de betão pré-fabricado, cujo sistema construtivo derivou de inesperados cruzamentos geopolíticos do tempo da Guerra Fria.

JERUSALÉM MECÂNICA

No pavilhão britânico, a exposição A Clockwork Jerusalem – com curadoria conjunta de Sam Jacob (do recentemente extinto atelier FAT Architecture) e Wouter Vanstiphout (do grupo holandês Crimson Architectural Historians) – destaca-se pela forma como apresenta uma narrativa histórica sobre as aspirações e os falhanços da radicalidade do modernismo brutalista e megaestruturalista do pós-guerra. A partir de uma articulação de referências simultaneamente eruditas e populares, a exposição foca o fenómeno das novas cidades, como Cumbernauld ou Milton Keynes, e os projectos de habitação em grande escala, como o Hulme Crescents, em Manchester, ou a expansão de Thamesmead, nos subúrbios de Londres. O título da exposição reflecte de imediato uma abordagem entre cultura pop e cultura erudita, ligando-se não só ao cinema, a partir do filme A Clockwork Orange (Laranja Mecânica, 1971), de Stanley Kubrick, filmado em Thamesmead,  mas também à literatura, através do poema “Jerusalém”, de William Blake, escrito no início do século xix como reacção às profundas transformações provocadas pela Revolução Industrial. Como os curadores explicam no texto introdutório à exposição:

“Jerusalém Mecânica” é uma narrativa sobre o modo como a história, a ficção científica e a reforma social, em resposta à modernidade, se fundiram para imaginar novas visões para a Grã-Bretanha, e o modo como estas novas paisagens se tornaram sítios da imaginação popular. A acção percorre a “Jerusalém” de William Blake, o protomodernismo revolucionário do Arts and Craft’s, o radicalismo das cidades- jardim de Ebenezer Howard, até aos vários idealismos das novas cidades do pós-guerra, e daí em diante. A argumentação defende a continuidade desta narrativa, no sentido em que a arquitectura e o planeamento usem a mesma imaginação para construir as nossas próprias novas Jerusaléns, de acordo com a modernidade contemporânea.

Com estes dois níveis, o pavilhão britânico apresenta-se segundo uma perspectiva, à partida, pouco evidente. No início da exposição, ainda no exterior, duas vacas de betão pontuam a escadaria, uma de cada lado, em contraponto irónico aos leões de Veneza. Da autoria da artista Liz Leyh, no âmbito de uma instalação que teve lugar em Milton Keynes em 1978, as vacas, consideradas mascotes da new town, viajaram até Veneza. Ao entrarmos no edifício neoclássico da Grã-Bretanha, somos surpreendidos por uma instalação de um monte cónico de terra suportado por um molde metálico magenta, que remete para os empilhamentos das ruínas e destroços da demolição dos slums do início do século xx, que deram origem a pequenos montes ajardinados no meio da cidade, como o Arnold Circus. A estranheza do título, juntamente com as vacas e o cone de terra, dificulta a compreensão da exposição numa Bienal marcada pelo excesso de conteúdos. Entre tantos acontecimentos, parece não haver tempo para leituras pausadas e atentas. É por isso fundamental ultrapassar a imediatez desse primeiro impacto, enigmático, para poder aprender com algumas exposições da Bienal de Veneza.

A investigação que deu corpo à representação britânica assume também a sua vertente pop nos subtítulos ondulantes e intrigantes dos momentos expositivos, assinalados com letras psicadélicas de inspiração Archigram: “Utopia of Ruins”, “Historico Futurism”, “Welfare State Baroque”, “Concrete Picturesque” ou “Electric Pastoral”. Ao longo do trajecto, a história do modernismo britânico é ilustrada em gravuras, fotografias, livros, objectos, cartazes, desenhos, onde se exibem coisas tão díspares como imagens de Stonehenge, videoclips e álbuns de Cliff Richard, o plano da cidade-jardim de Ebenezer Howard, de 1898, o projecto de Golden Lane dos Smithsons, de 1952, ou os inesperados e violentos motins londrinos de 2011. Um dos momentos mais desconcertantes da exposição relata a história trágica e fascinante do complexo habitacional Hulme Crescents, em Manchester, desde a sua construção no início dos anos 70, com todo o optimismo e crença no futuro, até ao processo de degradação que originou a sua demolição vinte anos mais tarde, no início dos anos 90. Sam Jacob e Wouter Vanstiphout dizem-nos:

Esta tradição ainda é relevante agora, num momento em que as nossas cidades e regiões enfrentam problemas desiguais de desenvolvimento e acesso à habitação, tensões sociais, enquanto o planeamento público e a arquitectura parecem incapazes de lidar com estes desafios de forma convincente. Não precisamos de soluções vulgares, mas sim de novas visões, novos sonhos, uma nova Jerusalém que mobilize arquitectos, políticos, activistas e promotores. A atitude e a imaginação que caracterizam a arquitectura e o planeamento apresentados na “Jerusalém Mecânica” pode ser o ponto de partida para que novas visões da Grã-Bretanha enfrentem os desafios da modernidade do século xxi, como tentativa de resposta, mais uma vez, à questão central de Howard: “As pessoas: para onde irão?”

A mensagem da exposição britânica, à semelhança das contradições do século xx, é assumidamente ingénua e determinada, reivindicando uma nova utopia, capaz de enfrentar e de ultrapassar a crise económica, política e ideológica que se vem instalando e disseminando pelo mundo nos últimos anos. Na resposta ao desafio de Koolhaas, esta exposição construiu uma narrativa que explora as contradições complexas que marcaram o século passado, com as suas ansiedades e expectativas, sonhos e utopias, desilusões e fracassos. Com esta estratégia, a representação britânica conseguiu traduzir a forma como a ideia de modernidade arquitectónica foi apropriada pela imaginação popular e integrou um vasto fenómeno cultural, com repercussões no cinema, na literatura ou na música. Um século mais tarde, nos canais de Veneza, a pergunta insinua-se: será que a Arquitectura ainda é capaz de acreditar que tem capacidade de mudar o mundo?

Este texto foi publicado no J-A 250, Mai — Ago 2014, p. 404 – 407.