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Ivo Poças Martins (Texto) / Nuno Cera (Fotografia)

ESTALEIRO PARA UMA BARCA BRANCA

Nova sede da EDP. Avenida 24 de Julho, Lisboa.
Projecto de Aires Mateus

Num momento em que em Portugal rareiam os grandes estaleiros de obra, a construção da nova sede da EDP na frente ribeirinha de Lisboa é uma excepção. Nos últimos anos, entre Santa Apolónia e Belém tem-se fixado um conjunto de programas de cultura e lazer que propiciam uma nova fruição da Avenida Marginal. Mas nem só de lazer vive o Homem: este edifício torna-se também excepcional por instalar na proximidade do Cais do Sodré novas funções de trabalho e escritórios que prometem uma outra vitalidade para a zona. Por enquanto, a evidência da estrutura metálica em construção põe a nu a natureza de práticas construtivas alternativas ao betão armado que se estão a tornar cada vez mais frequentes.

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COM QUANTOS FERROS SE CONSTRÓI UMA CANOA

É grande a tentação de comparar o estaleiro de construção do novo edifício da EDP com um estaleiro naval. Pela forma e pela velocidade de construção, a expressão da estrutura dos dois volumes de escritórios lembra o esqueleto de um barco. De um modo funcional e construtivo, o conjunto separa- -se em dois: dois terços do volume da obra são enterrados e executados em betão branco (estacionamento e áreas comuns); o restante terço é construído em estrutura metálica e composto por dois volumes (escritórios) e uma praça coberta ao nível térreo. As lógicas são distintas: a obra de betão armado é fundamentalmente executada in situ (tratando-se de uma construção em aterro conquistado ao rio, as paredes e a laje de fundo são totalmente estanques de modo a atenuar infiltrações e a acção da água – em rigor, o betão será a barca); a estrutura metálica é pré-fabricada em Oliveira de Frades, a 300 km de Lisboa (os elementos metálicos chegam à obra numerados para montagem por aparafusamento, de modo a reduzir ao mínimo a necessidade de soldaduras em obra).

A operação logística é complexa – desde a preparação e fabricação de elementos com um grau elevado de variações, até ao seu transporte e recepção no estaleiro, passando pela especificidade do local e pelo modo de montagem de cada peça. Em Portugal, o uso destes sistemas de pré-fabricação é cada vez mais recorrente (o novo Museu dos Coches, cujo projecto de especialidades também é da autoria da AFA Consult, foi executado de um modo semelhante). A Martifer, responsável pela construção da estrutura metálica, executou também em Oliveira de Frades a cobertura do estádio Arena da Amazónia, em Manaus, com um volume de construção muito superior e distando mais de 7000 km do local da obra. A pré-fabricação “à medida” e deslocada do estaleiro de obra está a tornar-se cada vez mais uma opção economicamente viável no contexto da construção em Portugal e, perante isso, as lógicas de projecto e coordenação de obra estão também a adaptar-se.

A expressão exterior do edifício resulta da trama de pilares metálicos (afastados 1,20 m entre si e dispostos diagonalmente em relação aos planos de fachada), que será revestida com painéis pré-fabricados de betão branco armado com fibra de vidro (GRC). A orientação dos pilares da fachada, comum a todo o edifício, permite equilibrar o desejo de transparência na relação com a envolvente exterior e controlar da incidência do sol, funcionando como palas de sombreamento com profundidade variável. Ao nível da rua, entre os dois corpos do edifício, existe uma praça coberta para uso público. Aqui, o sistema de lâminas da fachada dobra para o plano horizontal e, com a mesma orientação diagonal, transforma-se numa cobertura suspensa. A praça sombreada é complementada com espaços comerciais e dá acesso quer aos escritórios quer às funções instaladas nos níveis inferiores. Nos seis pisos de cave, além do estacionamento, existem um auditório, uma cafetaria e uma sala de reuniões, que são iluminados e ventilados naturalmente através de pátios.

UM ESQUELETO MUSCULADO

A linguagem do edifício, com a estrutura praticamente exposta, representa um desafio à elevada performance de comportamento ambiental e consumo energético que se espera numa sede de uma empresa do sector. A estratégia para compatibilizar as diferentes necessidades do edifício passou pela multifuncionalidade dos seus componentes. A estrutura vertical, em conjunto com o revestimento a GRC, desempenha não apenas a função de suporte, mas também um papel de controlo solar, e permite regrar a instalação de painéis fotovoltaicos entre as lâminas exteriores (que também desenham a cobertura), minimizando o impacto do “quinto alçado”, muito visível do Miradouro de Santa Catarina. A solução construtiva dos pavimentos com um vão de 12 metros sem apoios intermédios permite uma grande liberdade de organização interior dos espaços de trabalho. O sistema resulta de uma solução mista de lajes colaborantes apoiadas em treliças metálicas. Deste modo, e numa espessura de 85 cm (quase idêntica à altura das treliças) é possível compatibilizar a estrutura com a instalação dos sistemas de climatização e ventilação, redes de águas, iluminação e extinção de incêndios nos tectos e pisos técnicos. Na execução das fundações, 100 furos com 100 metros de profundidade permitem o aproveitamento da energia geotérmica para a produção de água quente e fria, logrando assim reduzir as necessidades de consumo eléctrico do edifício. O somatório destas medidas confere à futura sede a classificação máxima, A+, no que respeita à eficiência energética. As preocupações económicas e ambientais estendem-se ainda à recolha e tratamento de águas pluviais para consumo sanitário e de rega.

UMA PEDRADA NO MAR DA PALHA

A reabilitação do Terreiro do Paço, a construção do novo Museu dos Coches, a Casa dos Bicos, a Fundação Oriente, o Museu da Electricidade e a reabilitação da Ribeira das Naus são as realizações mais recentes, ou em fase de conclusão, que assinalam a transformação da faixa ribeirinha como prioridade dos últimos anos das políticas municipais. Pelo caminho ficaram outros tantos projectos amplamente mediatizados e muitas vezes polémicos, como as torres de Alcântara de Álvaro Siza, a torre para o Aterro da Boavista de Norman Foster, os quarteirões de Jean Nouvel para Alcântara-Mar, ou o Centro Cultural Africano de David Adjaye. Este foco na Marginal tem vido a demonstrar consequências práticas, e é notório o aumento da afluência de habitantes e visitantes. Os novos equipamentos culturais reforçam a fileira dos museus aqui existentes e têm influência na quantidade e características da oferta de restauração à beira-rio. Os estabelecimentos de diversão nocturna e, mais recentemente, a reabilitação do Mercado da Ribeira (também da autoria do atelier Aires Mateus) são exemplos que representam a revitalização de usos e de estruturas existentes numa perspectiva recreativa.

Neste contexto, a futura sede da EDP – que faz parte de uma estratégia de reorganização dos espaços de trabalho da empresa – constitui uma novidade funcional no Aterro da Boavista. Para a EDP, o objectivo é concentrar para reduzir custos operacionais (actualmente existem sete instalações espalhadas por Lisboa; a actual sede no Marquês de Pombal ocupa 28 mil metros quadrados, enquanto as novas instalações terão apenas 14 mil para uso de escritórios). No total, as novas instalações vão acolher 750 funcionários. A reestruturação funcional representará uma redução das despesas anuais de funcionamento de cerca de 1,3 milhões para 600 mil euros. A diminuição de tamanho, mas também a escolha do local (a actual sede ocupa uma das zonas de maior valor imobiliário para serviços), justificam a poupança.

Com os trabalhos de modernização do porto nos finais do século XIX, o Aterro da Boavista (entre o Cais do Sodré e Alcântara) deixou para trás a antiga fachada da cidade e, entre as ruas de São Paulo e a Calçada do Marquês de Abrantes, os antigos boqueirões foram secos e convertidos em ruas. Exceptuando as memórias gravadas na toponímia, como as Escadinhas da Praia, as construções e os arruamentos que se sucederam nunca conseguiram prolongar a malha urbana para a porção de terreno conquistado ao rio. As Tercenas do Marquês, entaladas entre as traseiras da Rua das Janelas Verdes e as traseiras da Avenida 24 de Julho, são testemunhas construídas dessa disfuncionalidade que ainda hoje se sente.

Na sequência do anúncio dos resultados do concurso, em Outubro de 2008, com a classificação ex-aequo dos ateliers Aires Mateus e Carrilho da Graça, foi decidida a atribuição do projecto do edifício a uns e o Plano de Pormenor da área envolvente (Aterro da Boavista Nascente) ao outro. Na qualidade de maior proprietário da área em questão, a EDP foi encarregada, em acordo com a Câmara, de seleccionar a equipa projectista e financiar o Plano de Pormenor (aprovado pela Assembleia Municipal em reunião em Novembro de 2011). Este Plano prevê o reperfilamento da Avenida 24 de Julho em coordenação com os restantes Planos que lhe são contíguos. As zonas destinadas a peões e bicicletas serão generosamente aumentadas, e o trânsito automóvel será reduzido a duas faixas em cada sentido. Esta alteração de uso das vias para uma velocidade mais lenta, que se prolongará até à Ribeira das Naus e ao Terreiro do Paço, torna-se possível pela pesada operação de reorganização dos transportes previsto no Plano de Urbanização de Alcântara, da autoria do arquitecto Manuel Fernandes de Sá. Neste último, inclui-se o prolongamento do Parque de Monsanto até ao Tejo, o desvio de trânsito e a criação de um terminal multimodal para automóveis, comboio e metro. Sendo um edifício privado e de serviços, a nova sede da EDP enquadra-se no espírito de reformulação da Marginal e oferece uma praça de fruição pública em articulação com o futuro alargamento dos passeios da Avenida 24 de Julho.

50 METROS

A construção de um edifício não vai resolver todos os problemas urbanos do Aterro da Boavista, muito menos de toda a extensão da frente de rio. No entanto, e porque não estamos em tempo de materialização instantânea de grandes planos urbanos, as realizações pontuais permitem aferir o rumo traçado e apontar ajustes necessários. Um caso que faz parelha com a nova sede da EDP é a reabilitação do Mercado da Ribeira, que não só é geograficamente próximo, como foi projectado pelos mesmos arquitectos. Em ambas as obras optou-se pela permanência e qualificação de usos existentes em detrimento da experimentação ou introdução exclusiva de novos programas. De um ponto de vista formal, com níveis diferentes de intervenção (mínima e parcial num caso, total e icónica no outro), as duas experiências aproximam-se pela procura de continuidade com os modelos tipológicos existentes. Progressivamente, a frente ribeirinha vai descobrindo uma nova forma de articulação com a cidade. A questão em aberto prende-se com a ligação e acesso franco ao rio. Reduzido o trânsito na Avenida 24 de Julho, a última barreira a ultrapassar será a linha de Cascais. A proposta definida no Plano de Pormenor assinala uma passagem pedonal aérea como solução mínima, problema que também foi identificado por Paulo Mendes da Rocha na ligação do novo Museu dos Coches ao “outro lado” da Avenida Marginal e da via-férrea. Eventualmente, será agora o tempo de pensar o “lado de lá” como uma extensão funcional dos programas do “lado de terra”. Já só faltam 50 metros.

Este texto foi publicado no J-A 250, Mai — Ago 2014, p. 366 – 377.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

SEDE CORPORATIVA DO GRUPO EDP
Localização
Avenida 24 de Julho, Lisboa
Projecto
2008
Construção
2012–
Cliente
Grupo EDP
Área de Implantação
5550 m2
Área de Construção
13 356 m2
Custo Total da Obra
57 milhões de euros
Arquitectura
Aires Mateus
Coordenação
Francisco Caseiro, Ana Rita Rosa, 
Pedro Ribeiro
Colaboração
Mariana Barbosa Mateus, Vânia Fernandes, Paolo Agostini, Francesca Lupo, Marco Campolongo, João Ortigão Ramos, Tereza Mascarenhas, Patrícia Marques, Neus Beneyto, Olga Sanina, Luísa Sol, Sara Coelho, Rita Conceição Silva, Filipa Ferreira, Diana Mira, André Passos, Catarina Bello, João Caria, Carlotta Fantoni, Valentina Del Motto, Francesca Gagliardi, Martina Palocci, Borja Fernández, Humberto Silva, João Esteves, Humberto Fonseca, Duarte Madrugo, João Pedro Miguel
Coordenação do Concurso
Jorge P. Silva
Estruturas
Rui Furtado –
 AFA Consult
Engenharia Mecânica
Isabel Sarmento –
 AFA Consult
Electricidade
Raul Serafim – 
AFA Consult
Águas e esgotos
Paulo Silva –
 AFA Consult
Construção
Mota-Engil / HCI
Fiscalização
Pengest
Certificação de Mérito Ambiental
Edifícios Saudáveis, Consultores