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Equipa Skrei na oficina de Santo Tirso



PEDRO BAÍA (TEXTO) / ANDRÉ CEPEDA (FOTOGRAFIA)

EM BUSCA DE UMA ARQUITECTURA INTEGRADA

Reabilitação de edifício no Largo do Terreiro, Porto
Projecto de Skrei – Oficina de Arquitectura Integrada

Num momento em que os centros históricos se tornaram um território apetecível para promotores imobiliários e fundos de investimento, a proposta de um processo de reabilitação gerido localmente, com tempo e cuidado, por arquitectos atentos aos recursos naturais e aos sistemas construtivos tradicionais constitui um acto de resistência ou um acto diferenciador?

EDIFÍCIO-LABORATÓRIO

Uma viagem por Portugal durante duas semanas, com o objectivo de visitar explorações de pedra e barro, saibreiras, fornos de cal e oficinas cerâmicas, foi o ritual fundador da Skrei – Oficina de Arquitectura Integrada. Para Francisco Adão da Fonseca, arquitecto formado na Universidade de Delft, e Pedro Jervell, arquitecto formado na Architectural Association, foi um marco fundamental para o início do seu percurso, permitindo a ambos uma prospecção única numa realidade material, geológica e industrial complementada pelo contacto com os próprios artesãos, mestres dos fornos e das oficinas. No Porto, a oportunidade de ocupar um edifício na Ribeira para instalação do seu próprio espaço de trabalho permitiu a implementação de um laboratório à escala real, onde os arquitectos puderam experimentar e testar diferentes materiais e técnicas de construção. O edifício é hoje a sede da Skrei, empresa fundada em 2010 pelos dois arquitectos, com Alexandre Magalhães, responsável pelo departamento de gestão.

Somos uma oficina de projecto, construção e produção artística. Reunimos diferentes profissionais da construção – técnicos, artistas, executantes, projectistas, académicos – numa prática profissional integrada. Queremos redefinir o modo e a tradição de abordar a construção. Ao conjugar diferentes áreas numa só prática profissional, estamos a impulsionar novos modos de projectar, novos modos de construir, e a ensaiar modelos para uma construção mais equitativa, mais saudável e tecnicamente mais qualificada.

O projecto de reabilitação do edifício do Largo do Terreiro é um processo em aberto, que se vai consolidando sala a sala, parede a parede, conforme as possibilidades e as circunstâncias. Enquanto espaço de trabalho e laboratório de ensaios, o edifício manifesta a vontade de recuperar a proximidade da arquitectura com a realidade de uma construção sensível à utilização de materiais naturais como a argila, a cera de abelha, a casca de arroz, a concha do mar ou a lã de ovelha. Numa das salas do piso térreo, por exemplo, foi aplicado um pavimento de terra compactada com óleo de linhaça, enquadrado por juntas em madeira que permitem que a caixa-de-ar respire – uma solução de pavimento muito utilizada nas adegas por causa do transporte das pipas, devido à boa elasticidade e capacidade de resistência à compressão. Junto à porta da entrada desta divisão percebe-se na parede uma gradação de experiências na aplicação da argamassa, que permitiu testar a fórmula mais adequada na composição final de um reboco a aplicar numa das obras em curso. Nas escadas, ao subir, encontra-se numa das paredes um outro ensaio de reboco, com base no barro de Santa Catarina vindo do Algarve. Na sala de reuniões, um tecto em gesso existente, recortado segundo uma elipse, deixa a descoberto a estrutura das vigas escuras de madeira. Na sala do lado, ao longo de uma sequência de materiais expostos, destacam-se várias garrafas organizadas num arquivo de amostras de diferentes sedimentos. No último piso do edifício, mais testes, materiais, ferramentas e protótipos à escala real se amontoam num cenário de pendor medieval, onde também tem lugar uma residência artística de acolhimento temporário para artistas plásticos.

Todas estas experiências pressupõem que seja o próprio arquitecto a pôr a mão na massa e a percorrer as várias fases do processo, desde a composição das argamassas, passando pela sua aplicação, até à avaliação da sua eficiência. Nesta aprendizagem, além do espírito autodidacta dos arquitectos, desenvolve-se também uma relação próxima com os artesãos, mestres na arte da construção. A procura da transmissão do conhecimento das técnicas construtivas tradicionais, aliada à experimentação contemporânea dos materiais naturais, é um dos factores mais estimulantes para a prática quotidiana da Skrei: “Temos consciência de que não sabemos muito sobre construção e arquitectura; estamos sempre a experimentar e a aprender.”

CONSTRUÇÃO CIVIL

Na sua essência, a Skrei assume-se como uma empresa de construção civil que, além de reunir na mesma actividade a arquitectura, a engenharia e a investigação de materiais, integra uma oficina de serralharia em Santo Tirso. E, para já, um conjunto de carpinteiros e trolhas que subcontratam pontualmente. O objectivo consiste em assegurar que a equipa, incluindo os próprios estagiários e colaboradores, é capaz de enfrentar as várias fases da obra com uma postura crítica atenta aos recursos locais e às qualidades construtivas e energéticas dos materiais. O encontro entre os vários protagonistas associados à construção é assumidamente inspirado nos agrupamentos de construtores medievais, estando por isso na origem do lema da “arquitectura integrada” que identifica a prática desenvolvida no trabalho da Skrei. Todos os intervenientes são incentivados a transcender as suas funções de base: do serralheiro, que também contribui nos trabalhos de carpintaria, ao arquitecto, que “chapa massa” ou ajuda nos trabalhos de demolição.

A arquitectura integrada é um modelo de actividade baseado na tradição construtiva medieval, em que a empreitada geral era confiada a um colectivo de artesãos, ficando esse mesmo colectivo responsável pela obra na sua totalidade, desde a prospecção de matérias-primas, à concepção, planeamento (projecto) e construção, incluindo partes do desenvolvimento artístico.

Junto ao edifício do Largo do Terreiro, numa das ruas estreitas da Ribeira, localiza-se a Adega São Nicolau, onde os arquitectos foram bem-sucedidos no processo de construção de uma obra complexa, no tempo curto de duas semanas e num espaço de dimensões reduzidas. A aplicação de um revestimento de madeira no tecto, com um reguado longitudinal diferenciado, amplia o espaço da sala de refeições, em contraste com a resolução homogénea do lambrim, ao longo do perímetro da sala, na qual foi aplicada uma argamassa de barro negro de Barcelos, aditivada com estrume de cavalo e cera de abelha. A execução dos restantes detalhes, incluindo a colocação dos perfis de latão nos aros dos vãos interiores, foi partilhada entre arquitectos e artesãos durante a obra.

A reintegração das várias artes da construção dentro da arquitectura permite que os esforços se concentrem na qualidade do edificado e não em tecnicidades legais, como a eficácia dos contratos celebrados entre os vários intervenientes na produção do edifício – projectistas, empreitadas e subempreitadas –, ultrapassando um dos aspectos mais sensíveis da construção corrente. A reaproximação das várias disciplinas reforça o sentido de responsabilidade de grupo, a inventividade e a co-autoria. A Skrei procura diluir as distinções entre técnicos e artistas, projectistas e executantes, mestres e aprendizes, apresentando uma nova coreografia para a arquitectura.

Esta nova coreografia que a Skrei procura desenvolver em obra entre os vários intervenientes pretende reduzir os intermediários envolvidos no processo. A metodologia de intervenção incide então numa acção continuada e persistente de uma estrutura de trabalho onde o topo da pirâmide organizativa está mais próximo da base. Esta relação diminui à partida o risco de trabalhos a mais que se vão acumulando nos processos de reabilitação, baseados em regimes estratificados de subcontratação com quatro ou cinco níveis de intermediação. É com o objectivo de contrariar esta fragmentação do sistema de obra que a Skrei defende a integração da construção civil na prática da arquitectura. O modelo que privilegiam é o de contrato “chave na mão”, em que o valor acordado integra o conjunto de projectos e a construção.

MÃO NA MASSA

A Skrei está hoje mais interessada na reconstrução, na possibilidade de recuperar estruturas consolidadas, do que na construção dita de raiz. Neste âmbito, tiveram oportunidade de intervir na reabilitação de casas, adegas, lojas e oficinas. Se se comparar com o custo da construção corrente, o custo médio da construção por metro quadrado das reabilitações que realizaram é mais elevado. Utilizando madeira revestida no exterior pela cal e no interior pela argila, conseguem fazer casas a 2500 euros por metro quadrado. No entanto, por vezes algumas das intervenções executadas podem rondar os cinco a seis mil euros por metro quadrado. Nestes casos, o arquitecto Francisco Adão da Fonseca compara-as a pequenas obras de joalharia.

Nestas intervenções específicas, imbuídas de um espírito localizado que procura integrar os recursos naturais do território envolvente, detectam-se semelhanças de processo e de pensamento com o universo vinícola, pela simbiose que ambas estabelecem com a terra e pelo tempo muito próprio que exigem. Esta ligação ao terroir traduz-se também numa preocupação de ordem ecológica relativamente ao modo como as paredes respiram, as casas ventilam e os materiais se comportam perante a acumulação de humidades e fungos. Daí que, na composição de um vinho, tal como na composição de uma argamassa, a investigação, o cuidado e uma sensibilidade particular sejam semelhantes. É neste contexto de procura diferenciadora de um produto que o trabalho desenvolvido pela Skrei é mais valorizado.

A Skrei tem conquistado terreno na área dos vinhos com clientes como a Ramos Pinto, para quem estamos a fazer o novo laboratório; a Muxagata, na investigação e desenvolvimento de soluções construtivas; o Vale Meão, na reabilitação das adegas; e a Herdade do Esporão, onde estamos a trabalhar na caracterização do complexo industrial. Estamos prestes a terminar a nova adega para produção de vinhos experimentais – Adega de Lagares – e temos a decorrer projectos relevantes no enoturismo.

Além da concepção de projectos de arquitectura e construção, a Skrei tem colaborado com projectos como o “Mão na Massa”, promovido pelo grupo Fortifeio – Arquitectura e Derivados, através da orientação de uma oficina prática em torno dos revestimentos naturais em argila, numa iniciativa que se propunha recuperar o conhecimento das técnicas construtivas tradicionais através da interacção e do contacto directo com os materiais, utensílios e ferramentas da construção. Num outro enquadramento, numa acção de formação promovida pelo Centro de Formação Profissional da Indústria da Construção Civil e Obras Públicas do Norte, o arquitecto Francisco Adão da Fonseca colaborou numa oficina sobre construção com terra, que tinha como objectivo a promoção da reabilitação através da utilização do tabique com acabamento em terra argilosa.

Numa vertente mais institucional, a Skrei tem desenvolvido um conjunto de contactos com os laboratórios de engenharia civil da Universidade do Minho, de Aveiro e do Porto, no sentido de estudar as propriedades e potencialidades dos materiais construtivos. No caso da Universidade do Minho, com base no projecto em curso para o Hotel do Esporão, estabeleceu-se uma parceria para investigar o desempenho da taipa e do bloco de terra compactado. Num plano internacional, devido à formação do arquitecto Pedro Jervell em Londres, a Skrei organiza no Verão, na aldeia de Muxagata, uma oficina com os alunos da Architectural Association, com o objectivo de explorar estratégias na área da arquitectura e das artes que resgatem uma outra identidade para além da indústria turística e da agricultura tradicional.

O colectivo, com apenas cinco anos de actividade, tem pela frente um percurso que desperta expectativas no domínio da reabilitação, em busca de uma arquitectura integrada capaz de se impor no mercado enquanto solução pertinente, equilibrada e qualificada. Entretanto, deixam-nos com o mote de “recuperar a aura do arquitecto enquanto zelador da comunidade” e com a dúvida ainda por responder: trata-se de acto de resistência cultural perante o avanço da economia de mercado, ou um de acto diferenciador perfeitamente integrado nessa dinâmica económica?

Este texto foi publicado no J-A 252, Jan–Abr 2015, p. 536–545.