N.º 252

EDITORIAL

AINDA CÁ ESTAMOS

“Como vai essa crise?” À pergunta para a qual já poucos têm paciência, a nossa resposta é: “Ainda cá estamos.” Com este número do J–A, completa-se a série de sete números que, como resultado de um concurso aberto aos membros da Ordem, nos foi confiada no final de 2012. Renovámos a estratégia editorial da revista e demonstrámos que, adequando os meios de produção às expectativas, o J–A não é um encargo financeiro relevante para a Ordem, sendo capaz de estimular confrontos saudáveis e de dar corpo a debates necessários. Interrogar a prática da arquitectura, os seus contextos políticos e construtivos, permite alimentar o pensamento sobre os modos como a arquitectura actua na transformação física, económica, social e cultural da nossa sociedade. Uma profissão que pensa corre menos riscos de ser arrastada pela maré tecnocrática e de se tornar irrelevante. Como escreveu um colega estrangeiro, “a redundância é o derradeiro ponto de fuga da arquitectura global”. Hoje, como sempre, a arquitectura está sujeita a pressões complexas. Para operar no campo aberto em que se inscreve, precisa constantemente de renovar a sua própria substância, aprender com os seus erros e compreender as suas virtudes. Foi com esse fito que construímos esta série do J–A, e podemos afirmar: “Ainda cá estamos.”

Perante a escassez de encomenda de projecto, os arquitectos, quando não foram forçados a emigrar, encontraram outras formas de ocupação profissional. Se muitas dessas formas não estão directamente relacionadas com a sua formação de base, outras dão a ver como e quanto este modo de conhecimento pode contribuir para a organização e o progresso da sociedade. A reportagem deste J–A é um retrato dessas profissões e permite compreender melhor a fisionomia de uma cultura disciplinar – como se expande e mobiliza um saber para múltiplas frentes de actuação. Mais do que a enésima apologia do empreendedorismo, este panorama de pessoas e seus respectivos perfis dá conta de um quadro laboral mais amplo e dinâmico em que pode haver lugar para todos. Apesar de tudo, a arquitectura continua a ser um universo de muitas e variadas possibilidades de vida.

Se os arquitectos não se cingem à produção do projecto, os modos como o produzem são determinantes na organização da cadeia produtiva da construção. O ataque ao seu papel como coordenadores de projecto não é uma simples disputa corporativa, é, isso sim, uma forma de desregulação do mercado de trabalho e de eliminação de agentes capazes de garantir a mediação entre os diferentes actores envolvidos na produção do espaço construído. É, também, sintoma de uma progressiva sectorização das lógicas laborais, que questiona a vocação holística da arquitectura. Hoje, entre as novas formas de exercício da profissão e o desgaste mediático do star system, tende a confundir-se a possibilidade de estratégias cuja eficiência a curto prazo preenche os requisitos de uma aparente mobilização social, com a relevância estrutural que a arquitectura pode ter na organização social do trabalho, com ou sem política de autores. São, obviamente, os ossos do ofício. Neste cenário, fracturado e aparentemente confuso, a primeira escolha no percurso profissional é uma escolha pessoal e, por isso mesmo, de natureza moral. A partir dela, as respostas ao problema são as mais diversas.

A redescoberta de estruturas profissionais alternativas, da oficina corporativa à rebeldia interactiva, está a trazer à arquitectura novos caminhos e estratégias que valorizam e consolidam uma profissão mais abrangente, com mais frentes de actuação, mais saídas profissionais e maior capacidade de contribuir para a melhoria das nossas condições de vida e cidadania. Contudo, essa expansão não deve descurar as âncoras culturais que tanto custou conquistar. Se, hoje, a arquitectura é o que é, é-o graças a vários séculos de conflitos nas margens da sua cultura disciplinar e recorte social. Esses conflitos nunca se extinguirão. Sem tomar a parte pelo todo, é necessário construir uma profissão mais plural, e, estando na charneira entre as artes e as ciências, desenvolver uma consciência de classe capaz de nortear uma actuação de inteligência crítica quanto à construção do real. Ou, tão simplesmente, sentido de responsabilidade.

Ao longo dos sete números em que esta equipa editorial conduziu os destinos do J–A, procurámos dar corpo ao debate sobre os caminhos que hoje se estão delinear, construindo uma revista de tendência em que a dimensão autoral, profissional e operativa da arquitectura se consubstancia em acções de arquitectos, com nome próprio e acções responsáveis. A pluralidade da profissão não se pode confundir com a desresponsabilização dos indivíduos em função de forças maiores cuja proveniência se ignora. Afinal, a dimensão colectiva da arquitectura corresponde à dimensão colectiva da nossa vida. Num tempo em que se questiona a sobrevivência da arquitectura tal como a conhecemos, não nos podemos esquecer de que “ainda cá estamos”.

A Direcção do J–A

Este texto foi publicado no J-A 252, Jan–Abr 2015.