Dois anos de debate em torno de museologia e arquitectura
Os dedos das mãos não são suficientes para contar as instituições candidatas a assumir um papel de relevo na promoção cultural do património da arquitectura portuguesa contemporânea. Entre Porto e Lisboa, universidades e organismos do Estado, arquivos e museus, entidades privadas e fundações, a arquitectura e o seu legado cultural são constantemente convocadas para legitimar acções, financiamentos, programas de investigação e outras ambições muitas vezes surpreendentes. À excepção da última Trienal de Arquitectura de Lisboa, comissariada por Beatrice Galilee, foram raras as ocasiões em que estas numerosas instituições elevaram a fasquia do debate a um patamar internacional equivalente àquele frequentado pelos arquitectos convocados para as justificar. Essa inoperância, que se reveste de várias formas e para a qual há várias justificações, deve estar na base da notícia de que Álvaro Siza vai preferir entregar o seu valioso arquivo profissional à guarda de uma instituição canadiana e não, como seria eventualmente natural, a uma instituição portuguesa. Também por isso não é surpreendente que tenha sido uma Faculdade de Letras, e não uma escola ou instituição ligada à disciplina, a promover aquele que foi até agora o mais amplo debate em torno das funções e formas institucionais sobre a valorização cultural do património arquitectónico. As conferências Contentor e Conteúdo: intersecções entre museologia e arquitectura, organizadas por Susana Rosmaninho em 2013 e 2014 sob o chapéu-de-chuva institucional do doutoramento e mestrado em Museologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, trouxeram a debate dezenas de participantes portugueses e várias figuras destacadas de importantes instituições internacionais. O debate foi intenso e profícuo, mas continua a haver mais questões em aberto do que possíveis consensos.
DUPLO TRÍPTICO
As conferências Contentor e Conteúdo foram organizadas em tríptico, com sessões subordinadas aos temas “centros e museus de arquitectura”, “programação cultural de arquitectura” e “curadoria em arquitectura”. A maioria dos oradores participou em representação de uma instituição, programação ou exposição à qual esteve ligado, e as suas contribuições foram complementadas com alguns convidados independentes que cruzavam perspectivas sobre os assuntos em debate. A forma do “caso de estudo” permitiu confrontar experiências e, sobretudo, discutir realidades concretas. O modelo usado na primeira edição em 2013 – restrita ao panorama nacional – foi repetido na segunda edição em 2014 – centrada em exemplos estrangeiros –, o que permitiu construir termos de comparação profícuos e estabelecer pontes entre as seis sessões.
O formato do duplo tríptico foi eficiente para cumprir o objectivo da programação, que consistia em debater a “problemática da comunicação da arquitectura” tendo como pano de fundo a “constituição de museus e centros de arquitectura por todo o mundo” e a posição marginal que ocupam no contexto português. Susana Rosmaninho, que organizou o programa, salienta a relevância do assunto:
Esta questão torna-se pertinente se pensarmos que, apesar da crescente mediatização do tema, a arquitectura encontra ainda uma presença residual no mundo dos museus, quando confrontada com o protagonismo de algumas formas de arte contemporânea (mesmo em instituições que não estão vocacionadas para a arte). O objectivo [das conferências] era assim a apresentação, numa perspectiva autocrítica, das diferentes experiências daqueles que se confrontaram com este tema…
Para a organizadora, uma das maiores surpresas dos debates, a que “não [...] chamaria surpresa, mas antes um despertar de consciências”, veio da intervenção de Peter Schmal, director do Deutsches Architekturmuseum (DAM), de Frankfurt, “que confessou viajar por todo o mundo em busca de financiadores e parceiros para as exposições do museu que dirige, uma vez que o orçamento disponível não é suficiente para concretizar os projectos pretendidos”. A sobrevivência e razoabilidade destas instituições foi um assunto que pairou da primeira à última sessão, tendo o seu ponto alto na constatação da queda a pique dos orçamentos disponíveis para a realização de grandes eventos (nas capitais da cultura – de Lisboa 94 à Guimarães 2012, passando pelo momento áureo da Porto 2001). Independentemente da qualidade expositiva, para medir o êxito de uma instituição ou programação de arquitectura – que ajuda a abrir ou a fechar portas a financiamentos –, a angariação e fidelização de públicos é outro ponto crucial. De acordo com a intervenção de Barry Bergdoll – que encerrou o ciclo com a apresentação da sua experiência como curador no Museum of Modern Art (MoMA) de Nova Iorque –, o êxito da programação de arquitectura do MoMA tem residido no facto de o museu não ser um museu de arquitectura. Na sua opinião, uma programação de arquitectura equivalente à do MoMA num museu especializado nunca teria os visitantes e o impacto social que uma exposição num museu de arte como o MoMA por vezes tem. Instituições como o Canadian Centre for Architecture, em Montreal, ou o DAM, activas há mais de vinte anos, dificilmente atingem níveis de público capazes de, por si só, justificarem a sua existência. A dúvida persiste: será que é oportuno e viável um museu de arquitectura? Ou haverá soluções mais eficazes?
CONSENSOS E DISSENSOS
Um aspecto consensual das intervenções foi a expansão da prática arquitectónica para o campo da curadoria e programação. Com mais ou menos exclusividade disciplinar, com maiores ou menores ambições políticas ou interventivas, mais ou menos direccionadas para a legitimação da prática, o exercício do projecto de arquitectura é hoje acompanhado por um campo cultural vasto, com agentes especializados capazes de construírem pontes e diálogos com outros sectores sociais. É justamente esse reforço da disciplina enquanto forma de conhecimento que legitima e justifica a capacidade de a arquitectura poder desempenhar um papel social mais amplo, ao nível da educação para a cidadania e, no limite, ao nível da educação para a própria arquitectura. As intervenções do painel português de curadoria e no painel internacional de programação cultural tornaram esses aspectos bem explícitos. A partir dos discursos expositivos e curatoriais, a prática profissional da disciplina pode reforçar-se nas suas articulações sociais, embora para isso seja imprescindível um esforço de comunicação não especializada e uma consciência acutilante das articulações extradisciplinares da arquitectura. Ou seja, para reforçar o campo da arquitectura é necessário sair da zona de conforto dos arquitectos, mas o risco é grande, e não são poucas as vezes em que essa saída corresponde a uma perda de vínculo que esvazia o sentido da comunicação. Não são poucas as vezes em que a comunicação da arquitectura não interessa nem aos arquitectos (porque sem nexo com a prática profissional ou disciplinar) nem ao público não especializado (porque sem nexo com a arquitectura). Os dissensos começam nessa franja.
Este texto foi publicado no J-A 250, Mai — Ago 2014, p. 408 – 411.
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CONTENTOR
E CONTEÚDO
Organização e Produção
Susana Rosmaninho
Faculdade de Letras da Universidade do Porto
Comissão Científica
Rui Centeno
Alice Semedo
Paula Menino Homem
Miguel Tomé
Parceiros
Fundação Marques da Silva
Direcção Regional
de Cultura do Norte / Casa das Artes
Casa da Arquitectura
Sponsors
Infor
Graphisoft Archicad
Nautilus
Sanitana
Apoio Institucional
Embaixada dos Estados Unidos da América / American Corners Portugal
Embaixada da Noruega
Goethe-Institut Portugal
Institut Français Portugal
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CENTROS E MUSEUS DE ARQUITECTURA
10 de Maio de 2013: Faculdade de Letras da Universidade do Porto
Manuel Graça Dias
Carla Barros, Nuno Higino: Casa da Arquitectura
Rui J. G. Ramos: Fundação Marques da Silva
José Fernando Gonçalves: Norte 41o
Maria Luís Neiva: Centro para os Assuntos da Arte e Arquitectura
Manuel Mendes: Centro de Documentação de Urbanismo e Arquitectura FAUP
André Tavares
PROGRAMAÇÃO CULTURAL DE ARQUITECTURA
24 de Maio de 2013: Faculdade de Letras da Universidade do Porto
Gonçalo Couceiro: Lisboa 94, Capital Europeia da Cultura
Nuno Grande: Porto 2001, Capital Europeia da Cultura
Gabriela Vaz Pinheiro: Guimarães 2012, Capital Europeia da Cultura
Guta Moura Guedes: Experimentadesign
Beatrice Galilee, Manuel Henriques: Trienal de Arquitectura de Lisboa
Jorge Figueira
CURADORIA EM ARQUITECTURA
7 de Junho de 2013: Faculdade de Letras da Universidade do Porto
Luís Tavares Pereira: Influx/Metafluz
Inês Moreira: Devir Menor
Pedro Jordão: Archigram
José António Bandeirinha: Fernando Távora
Luís Santiago Baptista
Delfim Sardo
Diogo Seixas Lopes
CENTROS E MUSEUS DE ARQUITECTURA
16 de Maio de 2014: Faculdade de Letras da Universidade do Porto
Peter Cachola Schmal: Deutsches Architekturmuseum Frankfurt
Camilo Rebelo
CENTROS E MUSEUS DE ARQUITECTURA
23 de Maio de 2014: Fundação Marques da Silva
Michel Richard: Fondation Le Corbusier
Tommi Lindh: The Alvar Aalto Foundation
Helena Barranha
PROGRAMAÇÃO CULTURAL DE ARQUITECTURA
30 de Maio de 2014: Casa das Artes
Hege Maria Eriksson: Oslo Architecture Triennale
Paul Finch: World Architecture Festival
Luís Serpa
CURADORIA DE ARQUITECTURA
11 de Junho de 2014: Biblioteca de Serralves
Barry Bergdoll: MoMA, Museum of Modern Art
João Ribas
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