Guidi & Racco, The Artist and the Stone, instalado no palco do auditório da cooperativa. Fotografia: Nicole Tsangaris



Mariana Pestana

CONTAR O EDIFÍCIO


Um ponto de partida para a manutenção do Edifício da Cooperativa dos Pedreiros

No ano do centenário da Cooperativa dos Operários Pedreiros do Porto, o seu edifício acolheu o Technical Unconscious, um projecto dirigido por Gonçalo Leite Velho, com curadoria de Inês Moreira. O projecto resultou numa exposição que é uma espécie de redundância material: conta o edifício, no edifício, através do edifício. A exposição constituiu uma oportunidade de limpar, pintar, arrumar, reabrir portas há muito fechadas e, sobretudo, de trazer ao edifício um conjunto de autores e artistas que contribuíram para o repensar. A curadoria e a montagem ofereceram à cidade, mais que uma exposição, uma nova perspectiva sobre a instituição e a requalificação pontual do edifício em que teve lugar.

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NO EDIFÍCIO

Os edifícios da Cooperativa dos Pedreiros, no Porto, foram desenhados em 1937 (edifício-sede e oficinas) por David Moreira da Silva e, a partir de 1949 e até aos anos de 1970 (torre residencial, albergaria e academia), por David Moreira da Silva e Maria José Marques da Silva, formando um complexo notável sobre o espaço de uma antiga pedreira. Fundada em 1914 por um grupo de operários especializados, a Sociedade Cooperativa de Produção de Operários Pedreiros Portuenses construiu uma parte muito substancial do Porto ao longo do século xx. Internacionalmente reconhecida pela competência e pela qualidade técnica, confirmadas por prémios como a Medalha de Ouro e o Diploma de Honra, na Exposição Universal e Internacional de Bruxelas, pelo trabalho de colunas polidas em coroa circular, a Cooperativa dos Pedreiros teve intervenções significativas em obras tão surpreendentes como o palácio de Saddam Hussein, em Bagdade, ou o Deutsche Bank, em Frankfurt. Grande parte da história da cooperativa está documentada no seu próprio museu, uma espécie de sala de visitas da cooperativa onde são recebidos clientes e figuras eminentes. A exposição Technical Unconscious abriu esta sala ao público pela primeira vez, um lugar onde se mostra o virtuosismo técnico da cooperativa através de fragmentos e mapas de expansão no mundo, referindo edifícios notáveis e as suas especificidades construtivas sem referência a autores. É um “memorial de troféus”, diz Inês Moreira.

Para além do museu, a exposição distribui-se por outras salas, cujos nomes dão notícia do funcionamento da cooperativa e aludem ao seu propósito social e ao seu empenho na emancipação dos trabalhadores. A exposição estende-se, por exemplo, à sala de desenho onde os pedreiros aprendiam desenho técnico com vista a interpretarem melhor as ferramentas de representação usadas por arquitectos e engenheiros. O percurso proposto configura uma espécie de ubiquidade técnica: uma visita ao edifício-sede da cooperativa e, simultaneamente (através da história da cultura material que ali se produziu), uma visita a tantos outros edifícios e lugares.

ATRAVÉS DO EDIFÍCIO

Os trabalhos artísticos comissariados iniciaram-se com trabalho de campo, através de residências artísticas, explorando técnicas, ferramentas e materiais encontrados no espaço da cooperativa, para os trazer à superfície. A partir do edifício, os diversos artistas desenvolveram reflexões sobre vários temas: edifício/local, pós-industrialidade, material/maquinaria, ciência/conhecimento, high-tech, memória/arquivo, low-tech/manualidade e inconsciente. A predominância de artistas estrangeiros trouxe novos olhares sobre a cooperativa, tornando visível o inconsciente técnico das formas de fazer e dos conhecimentos tecnológicos incorporados na própria história da cidade. As seis salas que compõem a exposição foram organizadas de modo a permitir uma leitura cruzada entre a história da própria cooperativa – através do edifício e de cenografias construídas pelos organizadores da exposição – e os temas explorados pelos artistas.

Na sala de desenho, que foi restaurada para a exposição, justapunham-se narrativas de construção e desocupação. Mostravam-se alvarás de obras simbólicas da cooperativa e “máquinas secretas”, instrumentos que não eram patenteados nem comercializados mas que serviam para assegurar a inovação tecnológica da cooperativa. Estes objectos dialogavam com uma investigação iconográfica sobre a composição dos alçados dos edifícios, das designers Joana e Mariana, e com um trabalho do fotógrafo Daniele Sambo, que documenta a invasão do edifício devoluto por vegetação selvagem, a natureza a reclamar a construção devoluta.

No auditório, Guidi e Rako problematizavam uma pedra. Hoje, a Palestina está impedida de exportar pedra, apesar do paradoxo de a identidade judaica israelita de Jerusalém ser construída com pedra proveniente da Palestina. O projecto consistiu em deslocar vinte quilos de pedra da Palestina até ao Porto, o que implicou dois meses e cento e quarenta e-mails que constituíram um teste às fronteiras geopolíticas do movimento das pedras. Na mesma sala, talvez em irónica contraposição, estavam expostos drones e submarinos, tecnologia contemporânea recentemente patenteada pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto.

Na carpintaria, onde antigamente se embalavam as peças para transporte, a exposição incorporava trabalhos artísticos numa cenografia que organizava sistematicamente ferramentas encontradas dispersas pela cooperativa. Entre máquinas absurdas produzidas a partir de materiais encontrados na cooperativa (Tomaz Furlan), indagações sobre a brita israelita, cuja mistura é composta por pedras provenientes do Egipto, da Palestina e de Israel (Relli de Vries), observavam-se imagens dos trabalhadores da cooperativa a cantar nas novas instalações de Leça do Balio, em contraposição com trabalhadores que permanecem no edifício-sede (Cora Piantoni), ou ainda o resultado de uma investigação sobre a proveniência das pedras exóticas da cooperativa – Brasil, Angola, Guatemala – e a sua relação com o passado colonial português, materializado em novos instrumentos de desenho para a pedra, com uma escala e um peso que os tornavam absurdos (Linda Brothwell).

Na serração e fundição, onde antes estavam instaladas as grandes máquinas que foram retiradas quando a fábrica se mudou para Leça do Balio em 1977, expunham-se remanescentes da fábrica (arquivos de contas, mobiliário e outros objectos), dispostos em conjunto com antigos moldes de gesso utilizados para replicar elementos decorativos na construção de edifícios, quadros eléctricos e outros objectos. A esta cenografia justapunha-se um vídeo (John Grzinich) que reactivava o som daqueles espaços agora pós-industriais, mostrando imagens e sons de serrações e fundições.

A oficina serviu de cenografia ao coreógrafo Iztok Kovač, que reencenou a mudança de uso daquele espaço, apresentando-o através de um filme documental de João Luz, onde o espaço de produção masculina era reactivado por uma coreografia feminina. Também na oficina, expunha-se uma instalação de Moisés Mañas, uma espécie de arqueologia da tecnologia digital das redes sociais. Da mesma forma, no espaço do museu misturavam-se objectos técnicos do espólio da cooperativa com novos objectos que transportavam para outros lugares, como os propostos por Hiwa K, que estabeleciam uma relação entre o edifício da cooperativa e vários outros edifícios simbólicos espalhados pela cidade, fotografias de quadros eléctricos de outras fábricas devolutas – aquilo que fica quando tudo o resto é esvaziado – e uma interferência multimédia que nos consciencializava da nossa presença enquanto visitantes.

CONTAR O EDIFÍCIO

Podem estabelecer-se inúmeras equivalências entre a curadoria e a escrita. Por exemplo, em ambas existe alguma coisa que se pretende comunicar, coisa essa que é exposta através de uma narrativa. Na escrita, a narrativa acontece no espaço bidimensional do livro, através das palavras e da forma como se organizam. Na curadoria, a narrativa tem lugar num espaço tridimensional e alarga o seu vocabulário e sintaxe: entre outros elementos, fotografias, objectos e sons organizam-se no espaço de acordo com uma determinada estrutura lógica. Este projecto narra uma história no próprio lugar em que aquela aconteceu. Se estivéssemos a falar de uma narrativa escrita, isto não seria nada de especial (quantas vezes lemos sobre edifícios sentados no seu interior), mas quando a narrativa se desenrola no espaço abrem-se inúmeras possibilidades de interpretação – através de justaposições e correspondências –, que têm lugar na imaginação de quem o percorre. Quando se conta um espaço no próprio espaço que se está a contar, estabelecem-se associações, multiplicam-se leituras e ampliam-se significados. A actividade que Inês Moreira tem vindo a desenvolver na área da curadoria explora esta situação. Em detrimento da tabula rasa dos white cubes, ao invés dos espaços assépticos das galerias, prefere trabalhar com espaços sujos e carregados de história: os “brown rooms”, como lhes chama.

O estado fragilizado do edifício é evidente; há água que escorre por paredes já verdes, há vidros por reparar. O que se poderá ler no inconsciente técnico – ou político? – do seu abandono? Há um enorme potencial contido naquele espaço; talvez este tenha sido um primeiro passo no sentido de uma consciencialização colectiva acerca da importância do edifício e da necessidade – crítica – de o reabilitar.

Este texto foi publicado no J-A 251, Set — Dez 2014, p. 484 – 487.

TECHNICAL UNCONSCIOUS

Um projecto da Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto, parte integrante de um programa cultural da União Europeia intitulado “Soft Control”, dirigido por Gonçalo Leite Velho, com curadoria de Inês Moreira.