Auto Italia LIVE, Double Dip Concession, 2012. Transmissão ao vivo a partir de Londres, integrando a exposição 'Remote Control'. Fotografia: Ryan McNamara



Pedro Castelo

AUTO ITALIA SOUTH EAST

O papel da pesquisa no processo criativo

Hoje, em todas as actividades profissionais, os processos de pesquisa tornaram-se cruciais, mas o seu papel varia substancialmente. Além disso, desde cientistas a políticos, de professores a estudantes, cada um tem uma interpretação distinta do significado de pesquisa e da sua eventual utilidade. Independentemente de a sociedade ser hoje mais diversa ou mais homogénea, podemos afirmar com convicção que o arquitecto contemporâneo tem uma necessidade crescente de defender os seus projectos. Mas, mais do que fazer essa defesa, é necessário uma pesquisa constante de novas ideias, conceitos ou estratégias, que permitam ao seu trabalho destacar-se. Perante este cenário, o colectivo Auto Italia South East, com que tenho colaborado em Londres, tem procurado formas de redefinir e criar modelos de colaboração, produção e apresentação de pesquisa para as indústrias criativas.

Auto Italia South East é um espaço sem fins lucrativos, gerido e composto por artistas, que comissaria e produz trabalho inédito colaborando com um grupo transdisciplinar, que continua em crescimento e que também integra escritores, arquitectos, músicos, videastas, performers, académicos, etc. Um ano após a conclusão dos seus estudos, uma série de artistas decidiu criar as suas oportunidades, e proporcionar oportunidades para os seus colegas, de maneira a ter condições de produzir trabalho próprio. Assegurado o espaço – um antigo showroom de carros italianos no sudeste de Londres, que deu o nome ao colectivo – para levar a cabo o que inicialmente seriam poucas exposições, o grupo continuou a experimentar a ocupação do espaço e a expandir o seu círculo de influência e acção. Com dinamismo e perseverança, criou sinergias e entusiasmo à sua volta, ao ponto de se tornar um foco prolífico de produção cultural independente. Em 2011 passou a integrar o elenco do National Portfolio do Arts Council England, uma lista que enquadra organizações de produção cultural e estrutura o financiamento público dessas organizações.

A recente mudança do espaço original para um hangar vizinho em Old Kent Road foi um momento decisivo para o colectivo. Trata-se de um espaço de grandes dimensões, que, graças a diversos subsídios, tem sido generosamente equipado de modo a permitir a organização de eventos muito diversificados e de grande envergadura ou complexidade técnica. O primeiro a ter lugar no novo espaço intitulou-se EPIC e envolveu o trabalho de 50 artistas. Um outro projecto, realizado em 2010, foi o Auto Italia Live, em colaboração com um colectivo chamado Lucky-PDF, que consistiu na produção de cinco episódios de televisão, de uma hora cada, filmados com uma audiência ao vivo e difundidos em tempo real na Internet. Em 2011, uma segunda série teve como tema a maneira como a televisão afecta expectativas e percepções de cultura em espaços públicos. Entre outras iniciativas, refira-se também o Yes Way!, um festival de música e videoarte, produzido em colaboração com a editora Upset The Rythm.

Pela diversidade da sua programação é difícil definir com clareza o que é, de facto, o Auto Italia South East. Kate Cooper e Amanda Dennis, duas das fundadoras, vêm-no como uma forma de colaborar com artistas ou agentes culturais que elas estejam interessadas em conhecer melhor. Concebem o espaço como um catalisador que facilita diálogos e que ajuda a explorar um dos princípios inovadores deste colectivo: a “auto-educação”. Esta ideia tem sido a força motriz do Auto Italia South East.

O fenómeno da auto-educação é, hoje em dia, frequentemente debatido, e são já várias as instituições culturais de grandes centros urbanos – como a School of Life, a actuar em Londres – com iniciativas neste âmbito. O Auto Italia South East iniciou-se este ano nesta esfera de intervenção, organizando um grupo de pesquisa, denominado The Associates Program, consagrado ao desenvolvimento de acções centradas na auto-educação. Incluindo workshops, sessões de crítica, conferências, exibição de filmes, visitas guiadas, grupos de leitura, concertos, etc., trata-se de um projecto-piloto que tem já a ambição de se tornar um modelo a repetir. Um dos seus objectivos é tentar perceber a componente autodidacta e o significado da produção cultural da comunidade de artistas em que o grupo de participantes se insere. O método consiste em desconstruir e analisar o trabalho produzido, não só a nível colectivo mas também individual. Trata-se, pois, de uma plataforma de debate aberta a quem esteja interessado em discutir o seu trabalho ou em expandir o seu entendimento da produção criativa, através da análise dos temas que cada agente aborda no seu trabalho, dos meios e suportes que utiliza, bem como dos mecanismos de recepção ou das relações que estabelece com públicos específicos.

Tal como o programa geral do Auto Italia South East, que não segue necessariamente uma agenda curatorial predefinida, este novo grupo desenvolve-se organicamente, baseando-se nos interesses pessoais dos vários agentes que nele participam. Apesar dessa dinâmica orgânica, um dos temas que parece ser transversal às várias disciplinas é o dos métodos de pesquisa. No primeiro workshop que o grupo organizou, em Fevereiro deste ano, discutiu-se o tema da pesquisa no processo criativo, nomeadamente em arquitectura e design. O debate desenrolou-se em volta das seguintes questões: É a diversidade social que exige aos designers e arquitectos estarem constantemente a par das necessidades específicas de cada indivíduo? É esta diversidade que exige cada vez mais soluções específicas? Isto desafia os processos de pesquisa e criatividade, ou, pelo contrário, está a sociedade a tornar-se cada vez mais homogénea? Estará a sociedade a ficar tão saturada de produtos, tão idênticos entre si, que tende a criar necessidades cada vez mais sofisticadas nas estratégias de venda? Onde está a ser aplicada a pesquisa? E para que fins?

Neste debate estiveram na ribalta as práticas da arquitectura e do design, no âmbito das quais a pesquisa é muitas vezes tida como uma forma de evasão ao medo gerado pela página em branco, o medo de criar algo a partir do nada. Por outro lado, se a pesquisa é muitas vezes usada para gerar conteúdos e, inclusivamente, para produzir contextos, em arquitectura ela continua a ser sobretudo utilizada como método aplicado, ou seja, como defesa ou suporte das ideias de um projecto. Apesar de útil, a pesquisa aplicada tende a ser superficial. A par dela, existem modosde pesquisa no processo criativo que parecem ser relevantes, independentemente da sua utilidade ou aplicação prática e imediata. Trata-se de dar espaço a formas de pesquisa independentes, que não sejam compulsórias nem tenham de ser legitimadas pela prática ou pelo enquadramento disciplinar. Reconheceu-se o valor de pensar out of the box, a proliferação de práticas híbridas e, em paralelo, o valor de um conhecimento profundo que só a especificidade de uma disciplina pode proporcionar.

No contexto de uma prática de pesquisa independente e prospectiva, disciplinas como a arquitectura podem ser muito úteis, funcionando como instrumentos de edição, já que permitem enquadrar e perspectivar processos e ajudam a definir públicos e objectivos. Arquitectura e pesquisa têm uma relação simbiótica que, por vezes, não é evidente nem precisa de o ser.

No rescaldo do debate, concluiu-se que a pesquisa exige pensamento e inovação, exige que se apresentem desafios polémicos e questões pertinentes. Se hoje a noção de pesquisa está associada à ideia de rigor, a questão de fundo que emerge do trabalho do Auto Italia South East tem a forma de um dilema: Será que a procura de rigor nos tem permitido alcançar maior criatividade nos processos de pesquisa, ou, pelo contrário, a tem restringido?

Este artigo foi publicado no J-A 248, Set — Dez 2013, p. 252-253.

Correspondente em Londres