O acesso ao Castelo visto dos milheirais do vale do Mondego



Pedro Baía / Diogo Seixas Lopes (TEXTO) + Jorge Nogueira (FOTOGRAFIA)

As pedras rolantes de Montemor-o-velho

Acessos mecânicos ao Castelo de Montemor-o-Velho. Projecto da divisão de projecto urbano, Miguel Figueira

Everywhere I hear the sound of marching, charging feet, boy,
Cause summer’s here and the time is right for fighting in the street, boy

Rolling Stones, “Street Fighting Man”

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ASSALTO AO CASTELO

Este ano, Montemor-o-Velho voltou a fazer as festas de Santo António no Castelo. Com o projecto do Percurso Pedonal Assistido quase pronto, o Atlético Clube Montemorense decidiu organizar o arraial junto às muralhas, num terreiro abandonado em frente às ruínas da Capela de Santo António e da Torre do Relógio. O Percurso Pedonal Assistido é uma obra do município, inaugurada pouco depois, com escadas rolantes que vencem a encosta sul da colina até ao Castelo. Santo António chegou primeiro, e a população decidiu experimentar o novo caminho ainda sem os degraus a rolar. Foi, para todos, uma reconquista. Miguel Figueira, responsável pela Divisão de Projecto Urbano da Câmara Municipal de Montemor-o-Velho, relatava assim o sucedido:

Devir do lugar. Está quase terminada a empreitada do Ascensor Mecânico – Percurso Pedonal Assistido. Sem pré-aviso, a população apoderou-se da obra, para ocupar o abandonado largo da devoluta Capela de Santo António. Regressou ao seu lugar a festa que há décadas o tinha abandonado.

O êxito do arraial não teria sido possível sem a construção dos novos percursos. Aproveitando o antigo Caminho de Ronda, o alargamento e prolongamento do acesso viário permitiu que a estrutura do palco, as mesas e os equipamentos de apoio fossem transportados numa carrinha até ao local da festa. Por outro lado, os novos acessos pedonais que cruzam os percursos de nível que servem as várias cotas da encosta sul impulsionaram a subida espontânea até ao Castelo. Com a nova intervenção, a população consegue chegar lá acima mais facilmente, num passeio que remata com uma vista panorâmica sobre o vale do Mondego. Alcançado o topo deste percurso, a relação do centro histórico com o território dos campos e do rio fica mais clara. A ligação entre ambas assinala a importância de criar um centro histórico dinâmico, contra o abandono do espaço público e do edificado antigo. A requalificação da rede de acessos, que vai da cota baixa da vila até à cota alta do Castelo, vem reforçar o laço entre os habitantes e o seu lugar. Neste contexto, o assalto ao castelo representa uma estratégia mais ampla de reconquista identitária de um ponto central do vale do Mondego.

O Percurso Pedonal Assistido de Montemor-o-Velho é uma obra simultaneamente exemplar e excepcional. Exemplar na capacidade demonstrada por vários agentes, entre os quais arquitectos, para concretizar esta infra-estrutura. O saldo desta operação é de imediato positivo. Resulta do bem público que produz, ao facilitar o uso de um espaço que é de todos. Para tornar isto possível, também foi preciso ser excepcional. Na sua audácia quase surrealista, “as pedras rolantes” de Montemor-o-Velho galgam por entre o casario antigo da encosta. O traçado dos segmentos da escadaria mecânica, sublinhado por muros brancos, vai desenhando socalcos certeiros até ao promontório do Castelo. O projecto revela um conhecimento minucioso daquele lugar, no seu devir e na sua memória. Assim, aqui se arrisca o balanço entre passado, presente e futuro de um território – e da sua população – com vista à melhoria das condições de vida.

O CAMINHO DE RONDA

O Percurso Pedonal Assistido de Montemor-o-Velho é constituído por três lanços de escadas rolantes que ligam a cota baixa da vila, perto da Praça dos Paços do Concelho, à cota alta do promontório onde passava o Caminho de Ronda do Castelo. As escadas rolantes vencem um desnível de mais de 30 metros e podem ser usadas para subir ou para descer. Ao lado destas, lanços de escadarias de pedra desembocam em vários patamares a cotas intermédias da encosta sul da colina. Esta segunda rede pedonal articula a infra-estrutura mecânica com a malha do edificado em volta, criando uma nova teia de vizinhanças. Mais que uma novidade tecnológica para deslumbrar no “corte da fita”, as escadas rolantes são uma “máquina urbana” para reanimar um tecido que já existe e que continua a ser ocupado por gente. Nas palavras de Miguel Figueira, “é um by-pass”:

… uma intervenção violenta face a um diagnóstico crítico. A vitalidade da vila e do seu centro dependem, em grande medida, do bom relacionamento com o seu castelo, e a viabilidade da habitação na sua encosta depende da qualidade do acesso. Não é só a ligação ao castelo, mas também a integração da encosta degradada que urge resolver.

O projecto, desenvolvido pelo Departamento de Urbanismo da Câmara de Montemor-o-Velho, insere-se num plano estratégico que tem como objectivo melhorar as condições de habitabilidade na encosta sul do Castelo. Mas não só. O projecto procura também, e acima de tudo, resgatar a centralidade do vale na estrutura territorial do vale do Mondego. Neste sentido, ao reposicionar a entrada principal do Castelo na Porta do Sol, junto à Capela de Santo António, o acesso deixará de se fazer unicamente pela estrada que desde os anos de 1970 liga a Estrada Nacional 111 à Porta da Peste do Castelo. Ou seja, com a abertura da Porta do Sol, articulada com a recuperação do Caminho de Ronda e com a ligação mecânica entre a cota alta e a cota baixa, o Castelo deixará de estar de costas voltadas para a vila e para o vale do Mondego. Nesta estratégia, prevê-se ainda um projecto de requalificação, a cargo de Álvaro Siza, da envolvente sul da muralha, na faixa localizada entre o Caminho de Ronda e o Castelo, que contempla os acessos até à Porta do Sol e a recuperação da Capela de Santo António.

Nessa altura, ficará mais completo este novo Caminho de Ronda. O seu raio de alcance vai muito além das muralhas do Castelo. É uma operação total de transformação de Montemor-o-Velho. Dada a sua amplitude, não se faz de um dia para o outro. Requer um sentido de responsabilidade e continuidade de agentes políticos, técnicos e cívicos implicados em processos longos e complexos. Requer também agilidade para identificar momentos oportunos e não paralisar ao primeiro bloqueio burocrático. Requer, enfim, sentido de realidade e perseverança, porque tudo arrancou muito antes das escadas rolantes e do seu “prodígio de progresso”. Começou literalmente no chão do centro histórico da vila, há mais de uma década, com a requalificação viária deste casco através de lajedos, guardas, bancos, escadas e rampas. Muito desse desenho, apurado e aparentemente “invisível”, também se faz sentir nos muros brancos que agora cintam o Caminho de Ronda do Castelo de Montemor-o-Velho. São traços brancos que tanto rasgam como se encostam à topografia da encosta, fazendo brilhar o lugar matricial da vila através das planuras do vale do Mondego. Mais que qualquer valor pitoresco, este efeito visual sublinha um espaço identitário de todos, capaz de imaginar um futuro a partir desse passado.

ISTO NÃO É A SUÍÇA!

Junto ao Castelo de Montemor-o-Velho, com as escadas a rolar em cascata até ao centro da vila, é possível vislumbrar esse futuro que vai surgindo com a nova pista de triatlo, onde antes ficava o terreiro de um mercado temporário, ou, mais longe, com o Centro Náutico. Este equipamento desviou água e canais de modo a fixar naquele lugar um palco internacional para competições de remo. É uma infra-estrutura que expande o hinterland ou território vital da vila muito além do vale do Mondego. Chama até si gente de todo o mundo e vem fixando um novo perfil de habitantes associados àquela actividade desportiva. É este o verdadeiro assalto, ou cerco, ao Castelo. Miguel Figueira explica o plano, posto em prática pelo Departamento de Urbanismo de Montemor-o-Velho:

O cerco ao castelo começou a ser desenhado a partir do centro do vale, com o Centro Náutico. Ainda no âmbito do Centro de Alto Rendimento, avançámos em direcção ao centro da vila com a intervenção até à base da encosta, esclarecida a tutela do desporto das vantagens da instalação da pista de atletismo para o triatlo (associada à pousada da juventude) no parque urbano, que funcionará como charneira no relacionamento urbano do centro histórico com o rio.

O conhecimento desta realidade, adquirido ao longo dos anos, permite enquadrar o projecto do Percurso Pedonal Assistido numa intervenção mais vasta de construção do território, com implicações longitudinais nos extremos do eixo do vale do Mondego, Coimbra e Figueira da Foz, e transversais, nas suas duas margens. Foi assim que um conjunto de técnicos acreditou que a transformação de maior impacto em Montemor-o-Velho iria acontecer com a obra do Centro Náutico de Alto Rendimento. No caso concreto de Miguel Figueira, o compromisso para com o território que o acolheu e onde decidiu viver, bem como o alcance das suas propostas desenvolvidas no âmbito da administração local, explica o reconhecimento público das suas intervenções. No ano passado, foi distinguido com o Prémio AICA/SEC/Millennium BCP 2011 de Artes Visuais e Arquitectura. O seu trabalho enquanto arquitecto da Câmara Municipal de Montemor-o-Velho foi premiado por ser considerado “exemplar tanto na reabilitação do espaço público como na criação de novos programas capazes de relançar este pequeno aglomerado de tantas potencialidades, agora realçadas”.

Esta forma de entender o trabalho do arquitecto, em particular o de Miguel Figueira, representa uma resposta possível para o aparente beco sem saída em que a profissão se encontra. Assumindo o papel de actor interventivo e propositivo, em prol de uma comunidade, Figueira também não tem problemas em sujar as mãos no confronto com o real. É nesse espírito de mediação comprometida que intervém em processos participativos com vários actores, desde o agricultor até à presidente da Federação Internacional de Remo; em movimentos de cidadania, como o Movimento Cívico SOS Cabedelo na defesa da Onda da Figueira da Foz; ou na elaboração de projectos de financiamento do QREN. É uma forma de militância, que cabe a cada cidadão fazer. Construir, com responsabilidade, o espaço da vida social. Para tal, é preciso antes de mais criar condições para que vários indivíduos possam entender essa causa como sua.

Os processos participativos servem para ter a cidade que queremos, ou então teremos a que merecemos, e é assim que as coisas devem ser.

Mas nada disto pode acontecer apenas com palavras, por bem intencionadas que sejam. É preciso perceber, sem rodeios, em que lugar estamos. “Isto não é a Suíça”, como exclamou Miguel Figueira a respeito do Centro Náutico.

A arquitectura sempre trabalhou na resolução de equações. Cabe no entanto ao arquitecto decidir com que variáveis pretende trabalhar. “Ou estamos disponíveis para jogar, ou não.” A equação complexa da gestão municipal e do ordenamento encontra uma solução possível no Percurso Pedonal Assistido de Montemor-o-Velho. O projecto faz parte de um plano maior de construção do território. Avança desde o Centro Náutico até à base da encosta da vila, com o desenho de ciclovias, pequenas pontes e uma pista de atletismo para o triatlo que articula a relação do parque urbano e do rio com o centro histórico. No fundo, a estratégia que orienta todas estas intervenções urbanas procura consolidar um novo ecossistema para a região. O Percurso Pedonal Assistido de Montemor-o-Velho, na sua relação visual com o vale do Mondego, vem fortalecer a relação histórica entre os campos e o Castelo. Hoje já é possível traçar um corte longitudinal entre o Castelo e o Centro Náutico, ao longo de uma linha que revela a continuidade de um conjunto de novas relações, usos e lugares.

Hey! think the time is right for a palace revolution,
but where I live the game to play is compromise solution.

Rolling Stones, “Street Fighting Man”

 

Este artigo foi publicado no J-A 248, Set — Dez 2013, p. 212-223.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Localização
Montemor-o-Velho
Projecto
2009
Conclusão da Obra
2013
Área Total de
Intervenção
1235 m² / Desnível de 35,25 m
Valor de construção
1 154 831,19 euros
Financiamento Comunitário
Programa Mais Centro (85% da obra)
Arquitectura
Miguel Figueira
Colaboração
Gonçalo Cristo, João Alves, Ana Buco, e Carina Carmo (estágio)
Divisão de Projecto Urbano
CMMV
Estabilidade, Águas e Esgotos
Bruno Graça
Electricidade
José Buco
Construção
Liftech + Kone / GGCorreia