Marta Caldeira

As outras práticas da arquitectura

Os dados foram lançados e dobrou-se a aposta na formação teórica: a frente académica da east-coast americana promete reconfigurar o território disciplinar da arquitectura. De Yale ao MIT, passando por Harvard e Columbia, as principais escolas de arquitectura dos Estados Unidos levaram a cabo uma notável consolidação de mestrados orientados para a teoria. Com os programas teóricos emergiu uma nova área de formação em arquitectura, entre os dois extremos clássicos do ensino americano: os MArch – master in architecture, mestrados acreditados que visam o acesso à prática profissional – e os doutoramentos, de cariz essencialmente académico. Com uma grande procura internacional, estes programas reflectem uma fracção cada vez maior de arquitectos que não tencionam praticar arquitectura no seu sentido convencional. Os programas teóricos propõem assim substituir a prática projectual por uma série de outras práticas – de curadoria, crítica, conceptual, ambiental, editorial, etc. – que exploram meios alternativos de produção do discurso arquitectónico.

As práticas propostas não constituem uma novidade no campo da arquitectura. Ao longo do século xx foi notório o papel desempenhado por exposições, publicações e outros eventos como lugares privilegiados de produção e disseminação do discurso disciplinar. Dos livros da Bauhaus, a This is Tomorrow, ou às little magazines dos anos 60 e 70 como Oppositions, os exemplos que na sua época foram alternativos integram hoje o cânone da história disciplinar, muitas vezes assinalando pontos de viragem na sua trajectória. O que os programas teóricos americanos apresentam de novo é o facto de serem as instituições académicas a reclamar um território que até agora se propunha como “outro”, espaços de resistência possível por se situarem fora dos centros institucionais da cultura arquitectónica. Com consequências ainda imprevisíveis, a aposta numa nova configuração dos master teóricos parece assim levar à institucionalização de práticas disciplinares alternativas.

Os programas

Ao colmatarem a lacuna evidente entre os master profissionalizantes e os doutoramentos, os master teóricos distinguem-se por excluir o projecto (os chamados studio, parentes dos ateliers) do seu currículo pedagógico. A base do plano de estudos de quatro semestres é composta por disciplinas opcionais de teoria ou história, onde o objectivo principal é a elaboração de teses individuais de investigação. Nas várias etapas, os programas teóricos promovem uma formação individualizada através da colaboração entre o aluno, um orientador e o coordenador do programa. A tese, por sua vez, não segue as exigências de profundidade e rigor científico extremo das dissertações de doutoramento: os novos investigadores teóricos estão livres da “regra dos trinta anos” que vigora nos doutoramentos americanos em arquitectura, permitindo – ou mesmo encorajando – a abordagem de temas contemporâneos. A forma da tese pode também variar. Da clássica tese de teor histórico ou teórico, ao portfólio de textos críticos, da conceptualização e documentação para uma exposição, publicação ou evento, até formatos mais vagos e abertos a modos inovadores de visualização e interacção da arquitectura, a contribuição ao campo disciplinar é feita através de uma miríade de plataformas operativas. Ao excluir o projecto tradicional, a intenção é interrogar, historizar, criticar e, eventualmente, deslocar o pensar e o fazer arquitectónicos.

Apesar da diversidade e do carácter individual dos trabalhos, todos os programas teóricos estão centrados numa disciplina obrigatória de “Colloquium” ou “Métodos”, um espaço de trabalho semanal onde se debatem os objectivos, os instrumentos, o potencial e também os limites das práticas propostas. É também esta a disciplina que, através do seu conteúdo teórico, revela as diferenças relevantes na missão dos vários programas.

Entre os programas mais antigos encontram-se o MED (Master of Environmental Design) em Yale, e o SMArchS (Master of Science in Architecture Studies) do MIT, fundados nos anos 60 e 70. Coordenado por Eeva-Liisa Pelkonen, ela própria aluna do programa nos anos 90, o MED propõe uma especialização no estudo da arquitectura e do ambiente edificado baseada no princípio do “aprender fazendo”. No MED, “fazer” traduz-se na combinação entre pesquisa, análise e escrita em torno dos temas individuais de investigação. O arquivo de teses do MED regista as oscilações do discurso disciplinar ao longo das últimas décadas, onde se destacam os temas da habitação nos anos 70, as tipologias na década de 80, a cidade nos anos 90, e a orientação ambiental dos trabalhos mais recentes. O SMArchS, por sua vez, desdobra-se em seis áreas de estudo, onde a área de História, Teoria e Crítica (HTC), coordenada por Caroline Jones, se enquadra neste modelo pedagógico de base teórica. Os colloquia de ambos os programas MED e HTC concentram-se na prática da escrita através da análise de precedentes, de géneros literários, e de textos metodológicos sobre crítica e historiografia arquitectónica. O programa de HTC estuda também métodos e conteúdos historiográficos aplicados a “objectos visuais”, na tradição académica da história de arte. Destinados essencialmente a candidatos com formação em arquitectura, o MED e o HTC/SMArchS propõem-se criar condições para a difícil transição entre duas formas de pensar, entre o mundo profissional e um futuro ingresso no mundo académico dos doutoramentos, mantendo a missão original destes programas: o arquitecto transforma-se no scholar, e os temas e métodos de pesquisa enquadram-se nos padrões convencionais da academia americana.

São, contudo, os programas mais jovens como o CCCP (Critical, Curatorial, and Conceptual Practices) da Columbia, fundado em 2009, ou programas existentes mas recentemente reestruturados como o MDesS (Master in Design Studies) em Harvard, que investem mais na reconfiguração das práticas discursivas em arquitectura. Estes programas não excluem a eventual transição dos alunos para doutoramentos, mas o objectivo principal é orientar a preparação intelectual para as actividades de curadoria, crítica e media, praticadas tanto pelas instituições de poder como pelas fronteiras resistentes, ambas quase sempre exteriores à academia. Os colloquia do MDesS e do CCCP reflectem esta diferença de objectivos, que os distingue de modo radical dos programas anteriores.

Das oito áreas de estudo do MDesS, a área de “History and Philosophy in Design” coordenada por Timothy Hide e Sanford Kwinter é a que mais se concentra no conteúdo teórico da arquitectura. O colloquium “Buildings, Texts, Contexts” é leccionado ao longo de dois semestres e valoriza o enquadramento histórico da modernidade arquitectónica do século xviii até ao presente. As várias práticas que compõem o discurso disciplinar são estudadas nas suas intersecções com as condições sociopolíticas, os desenvolvimentos tecnológicos, e as expressões culturais de cada momento histórico. Em paralelo à formação histórica e ao recurso a instituições existentes – tais como museus, arquivos, galerias, etc. –, os alunos do MDesS são incentivados a explorar formas contemporâneas de práticas críticas e curatoriais no desenvolvimento do seu trabalho.

O CCCP, fundado e coordenado por Felicity Scott, é talvez o programa que mais radicaliza a relação entre consciência histórica e práticas alternativas em arquitectura. Scott propõe três “plataformas” operativas – editoriais, expositivas e experimentais – como chave de leitura da história. Desta forma as práticas disciplinares não são vistas como produtos históricos (determinadas), mas sim como agentes históricos (determinantes), tornando-se imperativa a avaliação constante do seu conteúdo ideológico. Com esse fim, o estudo de casos concretos de “plataformas” operativas é complementado por outro colloquium, conduzido por Mark Wasiuta, dedicado a teorias que informaram o discurso crítico contemporâneo em arquitectura. Os alunos do CCCP são treinados a avaliar o modo como as várias práticas arquitectónicas contribuem para a consolidação ou para a crítica do statu quo. Esta actividade crítica é ensaiada pelos alunos na “esfera pública”, uma frente do CCCP dedicada à promoção do debate público através da organização de exposições e conferências.

A missão destes programas é clara. Em vez de preparar scholars para uma futura integração na elite académica, o CCCP e o MDesS apostam na formação de agentes de arquitectura, cuja missão é ocupar espaços discursivos alternativos, por norma exteriores à academia. Esta nova ocupação é intencionalmente inclusiva e indiscriminada, tendo em vista não apenas os centros institucionais mas também as fronteiras emergentes do território disciplinar. A aceitação destes novos agentes está a ser imediata e abrangente. Em Portugal, José Esparza, recém-formado pelo CCCP, faz parte da equipa curatorial da edição de 2013 da Trienal de Arquitectura de Lisboa.

Problema em aberto

Qual a natureza deste novo agente de arquitectura? Ao posicionar a actividade crítica no centro da prática disciplinar, estes programas de ensino reclamam uma herança disciplinar fundada em formas de acção alternativas. Mas, ao contrário dos seus antecedentes, o novo agente é um especialista: mais do que recorrer a outras práticas para eventualmente redireccionar a arquitectura com uma nova teleologia, o novo agente não tenciona apresentar novas direcções, e ainda menos regressar à prática projectual. A sua função é interrogar, criticar, expor, promover o debate, tornando-se assim um instrumento vital para a disseminação da pesquisa académica perante um público (mais) geral, de arquitectos e não só – um público que era, até agora, praticamente inalcançável para o corpo académico. Para a classe arquitectónica “praticante” (entenda-se, dedicada à prática projectual), fica a incerteza desta aposta. Com a especialização destes novos agentes acentua-se certamente a distância entre a prática de projecto e as outras práticas de arquitectura. Isto porque é quase natural a cedência da instrumentalização cúmplice que no passado marcou a relação entre o projecto e as outras práticas disciplinares. Simultaneamente ganha-se a possibilidade de ter uma maior consciência histórica, não só do passado, mas acima de tudo do presente. Fica em aberto o problema da sua operatividade.

Correspondente em Nova Iorque