Eyal Weizman, em The Architecture of Violence, realizado por Ana Naomi de Sousa



Paulo Moreira / Ana Naomi de Sousa

ARQUITECTURA REBELDE

Rebel Architecture é uma série de seis documentários televisivos de 25 minutos, produzidos pela cadeia de televisão Al Jazeera. Os filmes apresentam práticas “activistas” e “rebeldes” em situação de crise ambiental, económica ou urbana. Acompanham profissionais que utilizam a arquitectura para intervir no seu contexto social e político. Uma das realizadoras e co-produtoras da série foi a jornalista Ana Naomi de Sousa, que respondeu a algumas perguntas do J–A. Qual foi a motivação para a série?

A série nasceu do desejo de produzir um documentário sobre arquitectura que reflectisse certos valores. Queríamos olhar para um género de arquitectura que abordasse assuntos relevantes, como a pobreza e a precariedade do habitat, as mudanças climáticas e os desastres naturais, a crise económica e a inércia política, ou a corrupção e os conflitos sociais. Pelo facto de a Al Jazeera ser um canal internacional, e por se constatar a existência de desafios locais específicos, procurámos encontrar “arquitectos rebeldes” numa extensão geográfica global. A filosofia da série foi-se desenvolvendo à medida que o Daniel Davies e eu elaborávamos pesquisas sobre potenciais temas. Sabíamos que não seriam filmes sobre starchitecture. Afinal de contas, estávamos num canal que trata diariamente acontecimentos em contexto de conflito, desastres naturais e desigualdades sociais.

Fomos formando uma ideia concreta do que considerávamos “arquitectura rebelde”. Todos os arquitectos trabalham nas suas regiões de origem. Embora essa não tivesse sido uma condição à partida, tornou-se uma das principais características da série. Sentíamo-nos desconfortáveis com as dinâmicas top/down, norte/sul, oeste/este de projectos de ajuda humanitária, sobretudo com o modo como habitualmente abordam as pessoas às quais se destinam – queríamos uma coisa diferente, mais capacitadora.

Nenhum dos arquitectos retratados trabalha exclusivamente para garantir lucro financeiro, ou simplesmente para atingir beleza com os seus projectos. Todos acreditam que a arquitectura pode fazer a diferença. Pensam “fora da caixa” relativamente ao modo como usam as ferramentas da sua profissão. A nossa impressão é a de que a série foi muito bem recebida no mundo da arquitectura. Qual terá sido a razão para isso?

Rebel Architecture não foi produzida para comunicar entre arquitectos, mas para ser transmitida num canal generalista de televisão com um espectro alargado de audiências não-especialistas. Este é o poder destas formas de prática da arquitectura: por abordarem questões relevantes da sociedade, são em primeira instância acolhidas por essa mesma sociedade. Normalmente, os meios da arquitectura só se interessam por elas a posteriori. Mas é evidente que estas estratégias de actuação geraram debate nos meios disciplinares da arquitectura. Por exemplo, Pedro Gadanho mostrou-se francamente surpreendido com a série, um oásis na aparente calmaria arquitectónica: “A arquitectura europeia parece um paraíso fervilhante de ideias e novas tendências. Mesmo em crise e perante perspectivas de não-crescimento, ainda é aí que emerge alguma rebeldia.” A propósito dessa rebeldia, Justin McGuirk comentou que, “num mundo ideal, arquitectos activistas não deveriam ter de existir; mas, como o mundo está longe de ser ideal, precisamos deles, e de que maneira!”. Acrescentaria que não basta existirem arquitectos “rebeldes”, precisamos de críticos, pensadores e realizadores igualmente rebeldes, que se debrucem sobre eles. Concordas? 

De certo modo, podemos dizer que nós, a equipa de Rebel Architecture, também somos rebeldes! Este não é o modo como a arquitectura é normalmente mostrada na comunicação social generalista. Basicamente, os media de arquitectura classificam-se num pequeno número de categorias: tens a imprensa arquitectónica, muitos websites e revistas focadas em edifícios de luxo, tens programas que abordam a história da arquitectura, e tens alguns programas de televisão “faça-você-mesmo”, do género “Querida Mudei a Casa”. Na maior parte dos casos, há um apresentador (normalmente um homem branco de meia-idade), e são raras as menções às pessoas envolvidas ou afectadas por uma determinada obra de arquitectura. No Rebel Architecture, tal como em muitos documentários da Al Jazeera, decidimos não usar voz-off, deixando os arquitectos e as pessoas à sua volta falarem das suas condições, dos seus desafios, dos seus pensamentos.

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Guerrilla Architect (realizado por Ana Naomi de Sousa) caracteriza o arquitecto sevilhano Santiago Cirugeda. Este é o “rebelde” geograficamente mais próximo de nós, actuando em várias zonas do país vizinho. A sua prática colaborativa explora técnicas de autoconstrução no limite da legalidade. No decorrer do filme, Santi, como é conhecido entre os mais próximos, procura descrever as suas obras: “Às vezes as pessoas dizem que a minha arquitectura é feia. Dizem que é interessante, mas um pouco feia. Eu digo: Certo, mas quem não tem um amigo feio? Na arquitectura contemporânea diz-se sempre ‘que edifício bonito’, ‘que bonito este projecto’ – merda! A arquitectura é mais do que isso, é algo económico, funcional, que serve para criar redes, e é isso que temos feito.” Santi visita projectos de ocupação de espaços “expectantes” em Sevilha; acompanha os trabalhos de activação de uma fábrica abandonada junto à fronteira com Portugal; desloca-se à Catalunha, onde faz parte da equipa que pretende reformar uma escola alternativa com poucos recursos e sem licença de construção. Estes projectos funcionam através da plataforma Arquitecturas Colectivas, na qual grupos de diferentes regiões partilham recursos, mão-de-obra e saber. Neste processo de partilha de conhecimento, a Internet tem um papel fundamental, “ter um sistema online é uma arma pública poderosa para estar em contacto com outros colectivos”.

A Traditional Future (realizado por Faiza Ahmad Khan) apresenta-nos uma “rebelde” feminina, a paquistanesa Yasmeen Lari. O filme foca-se na sua dupla missão para preservar o património edificado local e responder às catástrofes naturais que têm assolado o Paquistão. A arquitecta é directa e crítica em relação aos efeitos do auxílio pós-desastre fornecido por organizações internacionais: “Os doadores estrangeiros secaram… o que é bom. É tempo de fazermos nós próprios as coisas”, diz a um grupo de estudantes de arquitectura estupefactos, numa acção de formação. Numa outra cena, viaja para uma aldeia que recuperara recentemente de cheias: ao lado dos projectos que ajudou a implementar, mostra as ruínas de uma casa construída com blocos de cimento, desadequados para suster as águas. Em sentido contrário, Yasmeen oferece uma lição sobre a utilização de técnicas construtivas intemporais, como os blocos compostos resistentes à água, ou as estruturas de bambu, que permitem elevar os edifícios do solo. São soluções inteligentes, pela sua adaptação às condições locais, resistentes ao clima, económicas e facilmente aplicáveis em regime de autoconstrução. Yasmeen assume o papel de “facilitadora” de soluções, em vez de “deusa-criadora”.

The Architecture of Violence (realizado por Ana Naomi de Sousa) é apresentado pelo arquitecto dissidente israelita Eyal Weizman. A cena inicial do filme resume a sua postura provocatória e destemida: Eyal caminha em direcção à torre de vigia de uma base militar israelita, insistindo em aproximar-se perante o soldado. Em face da resposta negativa, o arquitecto recua e goza com aquela personagem “ridícula”, metida numa “casota cilíndrica, como se fosse o rei da colina”. É esse o tom do filme sobre a intersecção entre arquitectura e violência. Apresentando-nos as características maquiavélicas da ocupação israelita dos territórios palestinianos, Eyal Weizman tem uma prática de investigação cujo objectivo é a elaboração de propostas operativas – dirige o Forensic Architecture, sediado na Goldsmiths College, University of London, que faz uso das ferramentas da arquitectura para procurar resolver conflitos políticos e legais. Eyal, radicado em Londres, confessa que teria preferido praticar arquitectura livremente na sua terra, mas apercebeu-se de que “ser arquitecto não é só construir e contribuir para a destruição do lugar que mais ama”. Prefere, portanto, servir-se da sua profissão para interpretar, protestar e resistir.

Greening the City (realizado por Nick Ahlmark) é o título do documentário sobre o trabalho de Vo Trong Nghia, arquitecto vietnamita que trabalha na cidade de Ho Chi Minh. Num contexto de transformação urbana rápida e descontrolada, que resulta do movimento migratório e do crescimento económico na região, Vo Trong invoca a necessidade de uma postura “enraizada”. Propõe uma arquitectura despojada, bela e ecológica, que responde à falta de espaços verdes na cidade. As suas obras ganham forma através da conjugação simples de materiais de baixo custo. Mas nem sempre é fácil aliar esta ambição às implicações urbanísticas da “selva imobiliária”. Num dos episódios do documentário, o arquitecto procura convencer um grupo de promotores sobre as vantagens de um projecto. Ao que um deles responde: “O nosso trabalho é dizer-te quais as necessidades do mercado; não podemos vender estas casas. Nós queremos o máximo de lucro.”

Working on Water (realizado por Riaan Hendricks) acompanha o trabalho do arquitecto nigeriano Kunlé Adeyemi na cidade de Lagos. O trabalho do seu estúdio, NLÉ, está fortemente enraizado nos locais onde intervém, em estreita colaboração com organizações não-governamentais e moradores. A sua obra mais paradigmática é uma estrutura flutuante na comunidade de Makoko, que, apesar do enorme impacto local e internacional, foi construída ilegalmente. Num segundo projecto, na região de Port Harcourt, o governo local ameaçava destruir um bairro literalmente construído sobre a água, e os moradores tomaram a iniciativa de convidar Kunlé para projectar as instalações de uma rádio comunitária que dê voz à população. A intervenção apresenta uma forma de resistência à estratégia segregadora do deslocamento da população, e mostra que é possível consolidar aquele lugar. Estas tácticas levaram à formação do movimento People Live Here, através do qual os moradores lutam contra a demolição da sua comunidade.

The Pedreiro and the Master Planner (realizado por May Abdalla) tem a virtude de dar igual destaque a um urbanista oficial e a um construtor informal, ou pedreiro. Ambos têm contribuído para a conformação da Rocinha, no Rio de Janeiro. Luís Carlos Toledo é o arquitecto responsável pelo plano urbanístico governamental para a regeneração daquela favela. Ricardo de Oliveira considera-se arquitecto, engenheiro e decorador. Tem construído diversos edifícios, por exemplo um supermercado com apartamentos, um parque de estacionamento, escadarias numa rua estreita e inclinada, a casa da irmã, etc. Ao intercalar os testemunhos dos dois profissionais, o filme faz um retrato realista sobre o modo como a favela tem sido pensada e construída. Apresenta uma cidade onde os habituais contrastes entre “ricos” e “pobres” se esbatem, e permite verificar que a matriz precária e espontânea da Rocinha amadureceu, tornando-se uma circunstância permanente, onde até a decoração das habitações é idêntica às casas da “cidade de asfalto”. O documentário tem a capacidade de apontar um futuro para a Rocinha, que passa tanto pelas acções regenerativas do governo, como pelos próprios moradores.

Este texto foi publicado no J-A 252, Jan–Abr 2015, p. 574–577.

REBEL ARCHITECTURE
Produtor Executivo: Flora Gregory
Produtores: Daniel Davies & Ana Naomi de Sousa
Design Gráfico: Pierangelo Pirak


Greening the City
realizado por
Nick Ahlmark

Guerrilla Architect
realizado por Ana Naomi de Sousa

The Pedreiro and the Master Planner
realizado por
May Abdalla

The Architecture of Violence
realizado por
Ana Naomi de Sousa

A Traditional Future
realizado por
Faiza Ahmad Khan

Working on Water
realizado por
Riaan Hendricks