ARQUITECTURA REBELDE
Rebel Architecture é uma série de seis documentários televisivos de 25 minutos, produzidos pela cadeia de televisão Al Jazeera. Os filmes apresentam práticas “activistas” e “rebeldes” em situação de crise ambiental, económica ou urbana. Acompanham profissionais que utilizam a arquitectura para intervir no seu contexto social e político. Uma das realizadoras e co-produtoras da série foi a jornalista Ana Naomi de Sousa, que respondeu a algumas perguntas do J–A. Qual foi a motivação para a série? A série nasceu do desejo de produzir um documentário sobre arquitectura que reflectisse certos valores. Queríamos olhar para um género de arquitectura que abordasse assuntos relevantes, como a pobreza e a precariedade do habitat, as mudanças climáticas e os desastres naturais, a crise económica e a inércia política, ou a corrupção e os conflitos sociais. Pelo facto de a Al Jazeera ser um canal internacional, e por se constatar a existência de desafios locais específicos, procurámos encontrar “arquitectos rebeldes” numa extensão geográfica global. A filosofia da série foi-se desenvolvendo à medida que o Daniel Davies e eu elaborávamos pesquisas sobre potenciais temas. Sabíamos que não seriam filmes sobre starchitecture. Afinal de contas, estávamos num canal que trata diariamente acontecimentos em contexto de conflito, desastres naturais e desigualdades sociais. Fomos formando uma ideia concreta do que considerávamos “arquitectura rebelde”. Todos os arquitectos trabalham nas suas regiões de origem. Embora essa não tivesse sido uma condição à partida, tornou-se uma das principais características da série. Sentíamo-nos desconfortáveis com as dinâmicas top/down, norte/sul, oeste/este de projectos de ajuda humanitária, sobretudo com o modo como habitualmente abordam as pessoas às quais se destinam – queríamos uma coisa diferente, mais capacitadora. Nenhum dos arquitectos retratados trabalha exclusivamente para garantir lucro financeiro, ou simplesmente para atingir beleza com os seus projectos. Todos acreditam que a arquitectura pode fazer a diferença. Pensam “fora da caixa” relativamente ao modo como usam as ferramentas da sua profissão. A nossa impressão é a de que a série foi muito bem recebida no mundo da arquitectura. Qual terá sido a razão para isso? Rebel Architecture não foi produzida para comunicar entre arquitectos, mas para ser transmitida num canal generalista de televisão com um espectro alargado de audiências não-especialistas. Este é o poder destas formas de prática da arquitectura: por abordarem questões relevantes da sociedade, são em primeira instância acolhidas por essa mesma sociedade. Normalmente, os meios da arquitectura só se interessam por elas a posteriori. Mas é evidente que estas estratégias de actuação geraram debate nos meios disciplinares da arquitectura. Por exemplo, Pedro Gadanho mostrou-se francamente surpreendido com a série, um oásis na aparente calmaria arquitectónica: “A arquitectura europeia parece um paraíso fervilhante de ideias e novas tendências. Mesmo em crise e perante perspectivas de não-crescimento, ainda é aí que emerge alguma rebeldia.” A propósito dessa rebeldia, Justin McGuirk comentou que, “num mundo ideal, arquitectos activistas não deveriam ter de existir; mas, como o mundo está longe de ser ideal, precisamos deles, e de que maneira!”. Acrescentaria que não basta existirem arquitectos “rebeldes”, precisamos de críticos, pensadores e realizadores igualmente rebeldes, que se debrucem sobre eles. Concordas? De certo modo, podemos dizer que nós, a equipa de Rebel Architecture, também somos rebeldes! Este não é o modo como a arquitectura é normalmente mostrada na comunicação social generalista. Basicamente, os media de arquitectura classificam-se num pequeno número de categorias: tens a imprensa arquitectónica, muitos websites e revistas focadas em edifícios de luxo, tens programas que abordam a história da arquitectura, e tens alguns programas de televisão “faça-você-mesmo”, do género “Querida Mudei a Casa”. Na maior parte dos casos, há um apresentador (normalmente um homem branco de meia-idade), e são raras as menções às pessoas envolvidas ou afectadas por uma determinada obra de arquitectura. No Rebel Architecture, tal como em muitos documentários da Al Jazeera, decidimos não usar voz-off, deixando os arquitectos e as pessoas à sua volta falarem das suas condições, dos seus desafios, dos seus pensamentos. *** Guerrilla Architect (realizado por Ana Naomi de Sousa) caracteriza o arquitecto sevilhano Santiago Cirugeda. Este é o “rebelde” geograficamente mais próximo de nós, actuando em várias zonas do país vizinho. A sua prática colaborativa explora técnicas de autoconstrução no limite da legalidade. No decorrer do filme, Santi, como é conhecido entre os mais próximos, procura descrever as suas obras: “Às vezes as pessoas dizem que a minha arquitectura é feia. Dizem que é interessante, mas um pouco feia. Eu digo: Certo, mas quem não tem um amigo feio? Na arquitectura contemporânea diz-se sempre ‘que edifício bonito’, ‘que bonito este projecto’ – merda! A arquitectura é mais do que isso, é algo económico, funcional, que serve para criar redes, e é isso que temos feito.” Santi visita projectos de ocupação de espaços “expectantes” em Sevilha; acompanha os trabalhos de activação de uma fábrica abandonada junto à fronteira com Portugal; desloca-se à Catalunha, onde faz parte da equipa que pretende reformar uma escola alternativa com poucos recursos e sem licença de construção. Estes projectos funcionam através da plataforma Arquitecturas Colectivas, na qual grupos de diferentes regiões partilham recursos, mão-de-obra e saber. Neste processo de partilha de conhecimento, a Internet tem um papel fundamental, “ter um sistema online é uma arma pública poderosa para estar em contacto com outros colectivos”. A Traditional Future (realizado por Faiza Ahmad Khan) apresenta-nos uma “rebelde” feminina, a paquistanesa Yasmeen Lari. O filme foca-se na sua dupla missão para preservar o património edificado local e responder às catástrofes naturais que têm assolado o Paquistão. A arquitecta é directa e crítica em relação aos efeitos do auxílio pós-desastre fornecido por organizações internacionais: “Os doadores estrangeiros secaram… o que é bom. É tempo de fazermos nós próprios as coisas”, diz a um grupo de estudantes de arquitectura estupefactos, numa acção de formação. Numa outra cena, viaja para uma aldeia que recuperara recentemente de cheias: ao lado dos projectos que ajudou a implementar, mostra as ruínas de uma casa construída com blocos de cimento, desadequados para suster as águas. Em sentido contrário, Yasmeen oferece uma lição sobre a utilização de técnicas construtivas intemporais, como os blocos compostos resistentes à água, ou as estruturas de bambu, que permitem elevar os edifícios do solo. São soluções inteligentes, pela sua adaptação às condições locais, resistentes ao clima, económicas e facilmente aplicáveis em regime de autoconstrução. Yasmeen assume o papel de “facilitadora” de soluções, em vez de “deusa-criadora”. The Architecture of Violence (realizado por Ana Naomi de Sousa) é apresentado pelo arquitecto dissidente israelita Eyal Weizman. A cena inicial do filme resume a sua postura provocatória e destemida: Eyal caminha em direcção à torre de vigia de uma base militar israelita, insistindo em aproximar-se perante o soldado. Em face da resposta negativa, o arquitecto recua e goza com aquela personagem “ridícula”, metida numa “casota cilíndrica, como se fosse o rei da colina”. É esse o tom do filme sobre a intersecção entre arquitectura e violência. Apresentando-nos as características maquiavélicas da ocupação israelita dos territórios palestinianos, Eyal Weizman tem uma prática de investigação cujo objectivo é a elaboração de propostas operativas – dirige o Forensic Architecture, sediado na Goldsmiths College, University of London, que faz uso das ferramentas da arquitectura para procurar resolver conflitos políticos e legais. Eyal, radicado em Londres, confessa que teria preferido praticar arquitectura livremente na sua terra, mas apercebeu-se de que “ser arquitecto não é só construir e contribuir para a destruição do lugar que mais ama”. Prefere, portanto, servir-se da sua profissão para interpretar, protestar e resistir. Greening the City (realizado por Nick Ahlmark) é o título do documentário sobre o trabalho de Vo Trong Nghia, arquitecto vietnamita que trabalha na cidade de Ho Chi Minh. Num contexto de transformação urbana rápida e descontrolada, que resulta do movimento migratório e do crescimento económico na região, Vo Trong invoca a necessidade de uma postura “enraizada”. Propõe uma arquitectura despojada, bela e ecológica, que responde à falta de espaços verdes na cidade. As suas obras ganham forma através da conjugação simples de materiais de baixo custo. Mas nem sempre é fácil aliar esta ambição às implicações urbanísticas da “selva imobiliária”. Num dos episódios do documentário, o arquitecto procura convencer um grupo de promotores sobre as vantagens de um projecto. Ao que um deles responde: “O nosso trabalho é dizer-te quais as necessidades do mercado; não podemos vender estas casas. Nós queremos o máximo de lucro.” Working on Water (realizado por Riaan Hendricks) acompanha o trabalho do arquitecto nigeriano Kunlé Adeyemi na cidade de Lagos. O trabalho do seu estúdio, NLÉ, está fortemente enraizado nos locais onde intervém, em estreita colaboração com organizações não-governamentais e moradores. A sua obra mais paradigmática é uma estrutura flutuante na comunidade de Makoko, que, apesar do enorme impacto local e internacional, foi construída ilegalmente. Num segundo projecto, na região de Port Harcourt, o governo local ameaçava destruir um bairro literalmente construído sobre a água, e os moradores tomaram a iniciativa de convidar Kunlé para projectar as instalações de uma rádio comunitária que dê voz à população. A intervenção apresenta uma forma de resistência à estratégia segregadora do deslocamento da população, e mostra que é possível consolidar aquele lugar. Estas tácticas levaram à formação do movimento People Live Here, através do qual os moradores lutam contra a demolição da sua comunidade. The Pedreiro and the Master Planner (realizado por May Abdalla) tem a virtude de dar igual destaque a um urbanista oficial e a um construtor informal, ou pedreiro. Ambos têm contribuído para a conformação da Rocinha, no Rio de Janeiro. Luís Carlos Toledo é o arquitecto responsável pelo plano urbanístico governamental para a regeneração daquela favela. Ricardo de Oliveira considera-se arquitecto, engenheiro e decorador. Tem construído diversos edifícios, por exemplo um supermercado com apartamentos, um parque de estacionamento, escadarias numa rua estreita e inclinada, a casa da irmã, etc. Ao intercalar os testemunhos dos dois profissionais, o filme faz um retrato realista sobre o modo como a favela tem sido pensada e construída. Apresenta uma cidade onde os habituais contrastes entre “ricos” e “pobres” se esbatem, e permite verificar que a matriz precária e espontânea da Rocinha amadureceu, tornando-se uma circunstância permanente, onde até a decoração das habitações é idêntica às casas da “cidade de asfalto”. O documentário tem a capacidade de apontar um futuro para a Rocinha, que passa tanto pelas acções regenerativas do governo, como pelos próprios moradores. Este texto foi publicado no J-A 252, Jan–Abr 2015, p. 574–577. |
REBEL ARCHITECTURE
Guerrilla Architect The Pedreiro and the Master Planner The Architecture of Violence A Traditional Future Working on Water |