Maqueta de trabalho no atelier do arquitecto



Rui Mendes (texto) / Valter Vinagre / André Cepeda (fotografia)

Arca de Noé


Casa criação da opacidade, Praia do Pópulo Pequena, São Miguel, Açores.
Projecto De Bernardo Rodrigues

 

PROJECTO, OBRA E PARTICIPAÇÃO

Os sistemas participativos, desde o projecto à construção, são ciclicamente redescobertos e valorizados. Por vezes, são um mecanismo eficaz para os arquitectos voltarem a pôr a mão na massa e, deste modo, também garantirem maior visibilidade e aceitação social. A participação permite quer a espontaneidade do arranjo in situ, valorizando a criatividade do mestre-de-obras, quer a versão do não-projecto, segundo operações meticulosamente preparadas para serem invisíveis e apagarem a marca do arquitecto. Neste amplo espectro, o que está em causa são os modos de afirmação dos processos da arquitectura, isto é, o modo como se prepara, aquilo que se convoca, o método e sistema de trabalho como motor dos fenómenos que darão origem ao projecto. É raro haver programa mais participado do que a casa própria, talvez por isso a habitação unifamiliar tenha sido sempre um espaço privilegiado de ensaio dos processos e métodos de projecto. Nesse contexto, esta casa na praia do Pópulo conta-nos uma história sobre o fragmento como matéria de inscrição numa determinada cultura de projecto.

A conclusão da obra da Casa do Voo dos Pássaros, também nos Açores, conferiu ao património de trabalho que o arquitecto Bernardo Rodrigues tem vindo a desenvolver um ponto de referência construído. A extensa e apologética recepção crítica à obra confirmou as possibilidades que as suas pesquisas formais, ainda em fase de projecto, esboçavam. A obra feita permite visitar os seus projectos com parâmetros que consolidam a dimensão arquitectónica das narrativas que antes se estabeleciam apenas na relação desenho-imagem. Quer isto dizer que, com a construção, as narrativas imanentes da exploração formal dos vários elementos do projecto são inapelavelmente convertidas em lajes e pilares, em portas e janelas, em muros e volumes. Em suma, a “poesia” do desenho transforma-se em qualidades ambientais e construtivas mensuráveis.

O projecto da Casa Criação da Opacidade, para a Praia do Pópulo Pequena, é um ensaio sobre um protocolo reconhecido pela prática: uma casa unifamiliar, inscrita numa parcela de um loteamento à beira-mar. É um modelo de intervenção que constitui um subuniverso peculiar no domínio do projecto, particularmente no caso de Bernardo Rodrigues, que nos foi habituando a aferir os seus registos (ou virtudes) através de formas produzidas entre topografia e contexto.

PROJECTO, OBRA E HISTÓRIA

Permanentemente em busca de significados para as suas acções e construções, os arquitectos habituaram-se desde sempre a convocar situações e signos da história da disciplina e das ideias para inventar soluções (e problemas). A batalha consiste, quase sempre, em sustentar uma hipótese sem elementos contraditórios ou desnecessários. Para Bernardo Rodrigues, a batalha do projecto parece ser a manutenção dos vários estímulos – do múltiplo e do uno, da forma e do informe – e fazer encaixar o todo em sintonia com os necessários atributos da encomenda: o cliente, o lugar (tão elástico quanto as dimensões do filme Powers of Ten, de Charles e Ray Eames) e os episódios do repertório de acontecimentos inscritos na história da arquitectura.

Nas palavras do arquitecto:

… as lages de pedra dos planaltos continentais, os detalhes na construção dos vãos do Scarpa, as meias alturas do Adolf Loos – o raumplan e a teatralidade interna, o banco corrido e a luz que vem sempre de fora –, o piso zero wrightiano encaixado no terreno são o ponto da história útil para deixar na casa como referência. E o sítio não é apenas o lote e o bairro, é a contingência de ilhéu enquanto habitante e matéria. Quer o cliente queira, quer não queira, o meu trabalho de arquitecto é dar resposta a isso – isso é parte do programa.

Nos mais importantes manifestos que, durante o século xx, instalaram “crises e continuidades”, a casa constituiu um território privilegiado de pesquisa e experimentação. As suas formas acusaram constantemente a ancoragem da arquitectura na realidade e reflectiram os modelos e axiomas do habitar que, a cada tempo, foram sendo consagrados e sucessivamente contestados. Perante esses debates, os arquitectos sempre foram manipuladores argutos de experiências que acumularam nas suas malas de ferramentas. O modo como operam, como fazem recurso a essas ferramentas e elegem como referência períodos históricos mais ou menos distantes, corresponde à possibilidade de reutilizar exemplos que se conhecem e identificam, fazendo apelo a valores e ideias que essas experiências representam.

Um dos ecos mais fortes que ficam do projecto da Casa Criação da Opacidade é o efeito caleidoscópio que as referências arquitectónicas vão construindo. Falando com o arquitecto percebe-se a deriva, no sentido de experiência que não é antecipada, o “aqui e agora”, como no universo situacionista. Dirá Bernardo Rodrigues que “depois de tanta inventividade não podemos descurar a forma, temos de trazê-la à vida”.

MÚLTIPLO E UNO. FORMA E INFORME

Um tecido múltiplo é aquele que nunca conseguimos desdobrar completamente, ou explicá-lo definitivamente, já que desdobrá-lo ou explicá-lo é apenas dobrá-lo ou complicá-lo de novo. Como esclarece John Rajchman no livro Constructions, o múltiplo não é aquilo que fragmenta ou arruína, pressupondo uma unidade perdida ou ausente, nem tão-pouco as suas divergências são um desmembramento de um organismo original.

Com raiz formal no arquétipo da casa, os três volumes que enquadram um novo cenário desde a praia do Pópulo denunciam a existência de uma topografia preparada que os sustenta e faz emergir. Os três prismas-casas confrontam o mar, reagindo aos canais de vistas das propriedades adjacentes, e são núcleos autónomos do programa: quarto grande + quartos pequenos + escritório. Os vãos desenhados na superfície dos primas e as deformações das inclinações da cobertura enfatizam a experimentação volumétrica. O que se retém com mais clareza é a sua condição de fragmento. No piso de entrada, os condimentos funcionais exacerbam a condição singular de cada espaço-função. Aqui, o todo é a figura do lote, onde, ao nível da rua, as peças do programa – fragmentos autónomos – se definem sem uma figura prévia que os una: sanitário e arrumo, cozinha, sala de estar, quarto, tratamento de roupa, garagem, arrumo, piscina, alpendre de jardim.

As medidas de cada unidade funcional, a dimensão e posição relativas, geram um espaço de relação. Este negativo gerado é da ordem do informe e pousa sobre um pódio que tudo estabiliza, e apenas uma barreira envidraçada delimita o interior e o exterior. Digamos que os três níveis da casa são universos paralelos que fazem da exaltação da junta um dos seus temas centrais. A terceira entidade é a laje empenada que tudo une (ou separa).

A laje funciona como filtro entre o mundo de cima – a praia – e o mundo de baixo – a intimidade do lote. Com uma configuração gestual e intuitiva é, porventura, o momento mais excêntrico do projecto. Definitivamente, é o elemento que concentra a história da junta como ligação entre mundos paralelos e distantes. O desenho encontra argumentos para se tornar contínuo, reagindo às várias pregas e ao movimento dos corpos em fuga. A relação entre a base e os três volumes, aparentemente suspensos, introduz ambiguidade e estranheza. Por um lado confere protagonismo aos três volumes na imagem do todo, mas não deixa revelar os momentos de suporte: os pilares, que são também fragmentos no conjunto da composição.

MUNDO ONDE TUDO É PRESENTE E PRESENÇA

A arquitectura não depende apenas das acções dos seus utilizadores – a arquitectura promove relações, de um modo objectivo e preciso, através das dimensões, das medidas, das distâncias entre elementos, da disposição, da organização e sequência de compartimentos e funções. A história das medidas e proporções é a história do projecto. A discussão sobre a substância que move o processo de pensamento de um projecto é vital para a disciplina da arquitectura. Esse debate informa o processo que se sabe fundamental para caracterizar as formas da arquitectura e, consequentemente, os seus significados. A linguagem não é apenas o “como se diz”, também é o modo “como se quer dizer, e fazer”. Se os arquitectos também se medem pelas formas que produzem há cada vez mais repositórios de modos de fazer. Os arquitectos, a cada projecto, afinam a sua Arca de Noé.

A Arca de Bernardo Rodrigues vai dando abrigo àquilo que encontra nos lugares e nos livros que consome. Por isso é uma cultura de projecto que se mantém viva e operativa, e que, de tempos a tempos, também nos permite tomar o pulso à arquitectura insular. Açores e Madeira têm já uma história de grande heterogeneidade, tão acidentada e extremada quanto as suas geografias. O repositório de Bernardo Rodrigues é mais um baú precioso – uma caixa de ressonância – que amplia o mapa de arquitectos activos e criadores nas ilhas do Atlântico.

Este projecto não terá obra. Como em outros trabalhos de Bernardo Rodrigues, nesta fase da história ainda a narrativa vai no adro. Uma das condições deste processo de desenho por adição de fragmentos é gerar sínteses provisórias ao longo do próprio processo que, um dia, se fixa, quando o betão tomar presa e a opacidade for garantida. A angústia do processo parece ser compensada pela adesão voluntária ao jogo de instalar junções para as coisas do mundo. Nesse sentido, o projecto da casa na Praia do Pópulo Pequena não anseia por conclusões, cria a opacidade. E nessa recolha de espécies para a arca, cada projecto amplia a dimensão dos possíveis, como as três casas suspensas a olhar a praia.

 

Este artigo foi publicado no J-A 249, Jan — Abr 2014, p. 272-281.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Localização
Urbanização Praia do Pópulo Pequena,
São Miguel, Açores
Projecto
2011-2012
Aprovação
Licenciamento CMPDL
Setembro 2012
Área de Construção
Casa 255 m2
Garagem 70 m2
Custo Total da Obra
300 mil euros
Arquitectura
Bernardo Rodrigues
com Francesco Ugolotti
Colaboração
Rita Alegria,
Ariana Faustino
Especialidades
Eng. Francisco Câmara – Sopsec