Comparação entre a capitação da dívida autárquica e o índice de poder de compra, 2011. Fonte: http://goo.gl/qnHqnN



Álvaro Domingues

Agora que pensávamos que tínhamos tudo…

 O que será o municipalismo depois do emagrecimento do Estado?

Em plenos anos de chumbo e de estagnação económica, retrocesso civilizacional e troika, é comum ouvirem-se vozes iluminadas sobre o despesismo e a corrupção, que só podiam dar nisto: um Estado sobredimensionado para uma tão débil e pequena economia. Logo a seguir, aparecem as autarquias locais a abrir o elenco dos bodes expiatórios. Devidamente esclarecidas sobre o peso residual da dívida das autarquias na dívida total do Estado, as vozes persistem na sanha (não muito difícil de ilustrar, reconheçamos) contra os autarcas corruptos, fazedores de rotundas, empresas municipais e empregos para familiares, amigos e coleguitas da tribo partidária. De todo este barulho de fundo, percebe-se que o importante é encontrar um bode expiatório e não propriamente uma explicação (coisa bem distinta). O certo é que o ciclo de investimentos dos Quadros Comunitários de Apoio (QCA), que criou as condições para a construção do Estado-Providência na democracia portuguesa, deixou no terreno um conjunto de equipamentos e serviços – o kit Estado –, desde o grau mais fundamental ao da mais elevada hierarquia dos vários sistemas de ensino, acção social, saúde, etc., seguindo até formatos/modelos nacionais estandardizados, ou atendendo a muito diversas especificidades locais, da Casa do Cinema em Melgaço à Ecoteca de Olhão. Aos projectos de iniciativa municipal somaram-se os programas do Estado Central (o Polis talvez seja o mais conhecido, mas também houve o Procom para o comércio e muitos outros para os santíssimos centros históricos) e os investimentos directos dos ministérios, ditos das políticas sectoriais (obras públicas, saúde, ensino, etc.). As redes sociotécnicas de infra-estruturas – energia, telecomunicações, transportes de pessoas, bens e mercadorias, água, saneamento, etc. – e os equipamentos compunham o conjunto de “externalidades” públicas distribuídas pelo território e que contribuiriam para o bem-estar das populações e a competitividade das empresas.

EQUIPAMENTOS

Os “equipamentos” – equipamentos públicos de uso colectivo, para usar a expressão completa – são uma das faces mais visíveis do Estado Social, e um instrumento fundamental de equidade e de justiça. O Estado é, pois, o produtor e zelador de bens e de serviços (ou externalidades) acessíveis a todos, tarefa que lhe compete e que a Constituição da República consagra. Os equipamentos do Estado são res publica.

Os temas das “políticas urbanas” e da política dita local ficariam mancos se não fosse tida em conta a importância desses equipamentos, uma avalanche particularmente visível nas capitais de distrito e noutras cidades de alguma importância regional (o impacto destas políticas ficou explícito no livro Cidade e Democracia, publicado pela editora Argumentum, que analisa trinta anos de transformação urbana das cidades portuguesas). Em muitos casos, e pela primeira vez, essa rede de cidades médias ganhou um tipo de funções públicas de topo, hierarquizadas, que na longa história lusa estiveram confinadas à capital ou, pontualmente, ao Porto e a Coimbra – casos do ensino superior, dos grandes hospitais e de alguns equipamentos de cultura e desporto.

Os QCA trouxeram consigo tendências bastante definidas  para as formas de aplicar dinheiro barato em programas e iniciativas já muito tipificadas (até no Pavilhão Multiusos, apesar da indefinição do nome). Há quem chame a isto “investimento por mimetismo” ou simples concorrência intermunicipal, mas o certo é que desde as piscinas municipais às bibliotecas, tudo faltava neste torrão à beira-mar plantado. Visto de Lisboa – como quase sempre acontece –, a coisa até nem era condenável, e o próprio governo central dava o exemplo em tamanho XXL, com investimentos como o Centro Cultural de Belém, a grandiosa Expo 98 e o muito recente Museu dos Coches.

Cada um gasta o orçamento que pode. Não vale a pena chorar sobre betão derramado, mas não se pode dizer que o país não se desenvolveu por falta de escolas, bibliotecas, casas da cultura, centros culturais, de exposições, de saúde, desportivos, de lazer, etc., etc., etc., porque nesses contentores havia actividades e iniciativas. Certa crítica bem-falante, que pensa que toda a clarividência e racionalidade lhe assistem, acha que tudo ou quase tudo não passou de obra de regime e de negociata, e que o povo (essa entidade extremamente maleável que vai desde a mais mítica abstracção, à populaça) permaneceu afastado das decisões e da deliberação sobre hierarquias de necessidades. Não me lembro de nenhuma manifestação, debate em Assembleia da República ou notícia nos media sobre o assunto. Do que me lembro é do legado do país pobre que a ditadura deixou e da quase completa ausência de práticas culturais, consideradas de elite e de uma classe média maioritariamente confinada a Lisboa, que valorizava quase todos os desportos para além do futebol, o teatro, as artes visuais, a música, a leitura, etc. Os ricos dizem que os pobres gastam tudo o que têm e o que não têm para casar as filhas e fazer boa figura. É justo. Os habitualmente ricos e bem instalados na vida não têm de provar que têm, porque já têm; cultivam a discrição, como se sabe, e deixam a folia e o fogo-de-vista para os outros. É a vida.

Não entrarei pelo debate escorregadio entre a alta e a baixa culturas, a dita popular e a erudita; diria apenas que o elevado consenso acerca dos equipamentos e áreas de programação se devia a uma crença difusa e genérica sobre a falta que essas coisas faziam num projecto de emancipação cultural da sociedade portuguesa, especialmente para os que nunca tiveram acesso a um grau de escolaridade além dos quatro ou doze anos, e os seus filhos. Será por isso que os iluminados dizem que era apenas um tique de novo-rico? A questão deverá ser outra. Algo terá acontecido que limitou a intensidade de uso social desses benefícios públicos, talvez porque as experiências e ambiências que propunham estivessem um pouco fora dos hábitos de vida. Terá havido também muito fechamento sobre si. A escola pública, por exemplo, não tem tradição de funcionar em rede com outras instituições que tanto a podem enriquecer. Antes de a terem afogado em centralismo, burocracia e avaliações, foi-se ela fechando em somatórios de cadeiras, programas e horários de formato único, sem um mínimo de estímulo para se conhecer o que está à volta.

Agora a economia definha, o Estado emagrece, o povo emigra e a população envelhece.

Entretanto verifica-se o difícil cruzamento da austeridade pública com os cortes; o aumento da carga fiscal ao mesmo tempo que o da evasão; os serviços que perdem competências e gente qualificada; o desprestígio da função pública; a missão dos serviços resumida em critérios de gestão financeira; a administração burocrática e anquilosada; o Estado que nem a si próprio se regula; o curto-prazo e a desorientação das políticas; o peso da dívida; a estagnação da economia, etc. Este conjunto de evoluções traduz-se numa cada vez maior confusão entre a condição de cidadão, utente ou cliente. Num cenário tendencial de mercantilização de serviços, todos passaremos a clientes e o serviço público será negócio. O cliente com dinheiro pagará o serviço privado que lhe convier, e o cliente pobre esperará em intermináveis listas de espera.

DUPLA CARÊNCIA

O mapa da assimetria da crise deixa quase metade dos municípios em dupla carência: à escassez dos recursos próprios soma-se o peso relativo da dívida. Como se não bastasse, o território despovoa-se, o investimento e o emprego não aparecem, a natalidade cai a pique e emigra-se tanto ou mais do que nos anos 60. É o fado do “interior”. Pode haver escolas novas e não haver crianças, e haver cada vez mais velhos e não haver lares ou serviços domiciliários que bastem. As piscinas arrefecem, os pavilhões desportivos ficam vazios, os centros de exposições expõem correntes de ar e degradação. Não adianta bradar pelas políticas de ordenamento regional (o que é isso, que já ninguém se lembra?) e por supostos equilíbrios territoriais que nunca houve. Ou há emprego ou se vai procurar algures. O contrário do interior é o exterior.

Por tudo isso é preciso reinventar o Estado Local, hoje em quarto minguante. E é preciso passar a chamar as coisas pelos nomes, evitando palavras como sustentabilidade, racionalizar, integrado, coesão, eixos estratégicos, governância, competitividade, empreendedorismo, cidades criativas, capital social, potencial humano, impacte ambiental, sinergias, resiliência e outras que nada dizem. Há muitas palavras cegas enfiadas em caixas pretas numa noite escura para gasto da tecnocracia liberal e desejos de potenciar, consolidar, implementar, mitigar, dinamizar e maximizar.

O desafio é kitar o kit do Estado Social propondo novas funcionalidades e modos de usar. Isto é, é preciso rearquitecturar edifícios, organizações, objectivos e recursos. Se a democracia local não encontrar modo de o fazer, então é mesmo verdade que o Estado cedeu a toda a linha, empurrado pela mão visível dos mercados invisíveis.

O equipamento do futuro, tanto quanto se sabe a partir da metamorfose do equipamento do presente, corre o risco de se tornar um subproduto descaracterizado: um equipamento público financeiramente estrangulado, cerceado nas suas competências, e concorrente com congéneres mercantilizados que usam o argumento da liberdade de escolha para reivindicar do Estado um pagamento integral ou subsidiário para os seus clientes diversos que reclamam ofertas diversas. Esta situação está provavelmente para lá do limiar do que são, em tese, as garantias públicas com a estandardização de um serviço igual para todos mas nivelado demasiado por baixo.

COMBINAÇÕES INSTÁVEIS

No contexto do Estado mínimo, o equipamento não resulta de formatações predefinidas nos sectores habitualmente públicos (ex-públicos, de facto), tendo de se fazer opções dentro da redefinição radical do Estado. Um dos cenários possíveis é o de o Estado manter uma prioridade no apoio aos elementos mais frágeis da sociedade e, ao mesmo tempo, em determinados sectores/áreas considerados estratégicos. Ao nível territorial haverá diferenças e assimetrias. Não valerá muito a pena continuar a agitar o desígnio da coesão territorial, produtor de argumentos de carácter vago, facilmente manipuláveis e de conteúdos contraditórios. O território foi sempre assimétrico.

Admite-se por isso que muitos futuros equipamentos resultem de combinações instáveis de funções e objectivos multiusos que construam respostas rápidas e versáteis (questão difícil na formatação excessivamente rígida dos equipamentos convencionais); e que o papel do Estado não esteja sempre definido da mesma forma.

O Estado pode encarregar-se do edifício e da manutenção, e/ou de parte do pessoal, e/ou de funções logísticas associadas à prestação do serviço, etc. Ao nível da gestão, admitem-se cenários de simples cedência ou arrendamento, até uma arquitectura móvel em que a direcção é um compósito que se vai estabilizando à medida que a própria estrutura organizacional se vai consolidando nas suas práticas, missões, avaliação de resultados e proveitos. O edifício será uma prótese kitada: a multiforma segue a multifunção.

 

Este artigo foi publicado no J-A 249, Jan — Abr 2014, p. 318-321.

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Comparação entre o Índice do Poder de Compra (Instituto Nacional de Estatística, 2011) e a capitação da dívida dos municípios. Os municípios repartem-se de acordo com o rendimento – elevado, se acima da média nacional; baixo, se acima de 75% do valor nacional mas inferior à média global; e muito baixo, se o rendimento for inferior aos referidos 75% da média nacional. Os concelhos foram divididos consoante a sua dívida autárquica de médio/longo prazo, se se situa abaixo ou acima do valor médio nacional por habitante (436,90 euros).