Espaço de circulação interior, em Fevereiro de 2013



Isabel Barbas / Ivo Poças Martins (TEXTO) + André Cepeda (FOTOGRAFIA)

Afinal Ainda Se Constrói

Centro escolar de Fonte De Angeão, Vagos.
Projecto de Miguel Marcelino.

Diz-se que no passado o percurso típico de início de carreira de um arquitecto promissor se resumia em quatro passos: concluir o curso, estagiar num atelier, ensaiar-se em concursos públicos e, vencendo algum com certa dimensão, estabelecer um escritório em nome próprio. Esta realidade mudou radicalmente durante a última década. No panorama actual existem arquitectos a mais para concursos públicos a menos. O caso de Miguel Marcelino é uma excepção em que o modelo ainda se aplica. No seu currículo aquele percurso é claro e complementado com um aspecto cuja ausência tende a pôr em causa a eficácia do processo: a materialização dos projectos em obra. Num momento em que a construção abrandou dramaticamente, a obra do Centro Escolar de Fonte de Angeão é um exemplo onde resiste um certo modo de pensar a arquitectura, a possibilidade de estabelecer actividade própria de arquitectura e, também, uma forma positiva de construir um território educativo.

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Vagos, capital do concurso público

Durante 2008, na área de competência da Secção Regional Norte da Ordem dos Arquitectos, foram publicados em Diário da República 36 concursos públicos de concepção de arquitectura e urbanismo. Entre estes, apenas sete foram previamente comunicados à OASRN e tiveram o seu apoio ou assessoria técnica, e cinco entre estes foram promovidos pelo município de Vagos para a construção de quatro novos centros escolares e para a requalificação de um já existente. O galardão pode ser contestado mas, naquele ano, Vagos ocupou o centro das atenções de muitos escritórios de arquitectura. No total, foram entregues ao município 163 propostas, repartidas pelos diferentes centros escolares a concurso.

Os regimes de excepção previstos no Código de Contratação Pública permitiam ao município recorrer ao ajuste directo para contratação destes serviços de projecto, o que tornou o processo singular. A opção pelos concursos públicos respondia à vontade de que este conjunto de obras pudesse constituir uma “referência no panorama da Arquitectura Portuguesa”. Na perspectiva da Câmara, o balanço da experiência é positivo: a contribuição da Ordem dos Arquitectos foi importante para o cumprimento do calendário apertado que se tinha estabelecido, e a participação de membros externos ao município nos júris foi fundamental para a credibilidade e transparência dos resultados do concurso, valorizando o processo administrativo da operação.

Um território educativo

O Centro Escolar de Fonte de Angeão está localizado num território de urbanização contínua de baixa densidade, organizada de forma linear ao longo das vias. Entre as casas divisam-se logradouros estreitos e muito profundos, de uso agrícola, que dominam a paisagem. Em vista aérea confirma-se que este padrão se repete por todo o município, exceptuando na vila de Vagos, a norte, relativamente mais densa. Perante a paisagem, a dimensão do novo centro escolar causa alguma estranheza, embora a escolha do lugar para a construção seja justificada nos desígnios da Carta Educativa do Concelho de Vagos, datada de Maio de 2006, que funciona como “instrumento de planeamento e ordenamento dos edifícios e equipamentos educativos do concelho e que visa desenvolver o processo de agrupamento das escolas, de forma a obter uma coerência satisfatória com a política urbana do concelho, no presente e no futuro”. Este documento estipulou a redução das 46 escolas existentes para cinco, mantendo-se apenas uma existente (que será ampliada) e construindo quatro novos edifícios. Desta concentração espera-se a optimização de recursos materiais e humanos, a melhoria das taxas médias de ocupação dos equipamentos e a reorganização dos transportes escolares. Só que, apesar dos concursos bem-sucedidos e do estabelecido na Carta Educativa, apenas se encontram em construção os centros de Fonte do Angeão e da Gafanha da Boa Hora, cujo projecto vencedor do concurso é da autoria do atelier António Portugal e Manuel Maria Reis.

Um ‘Atelier’ Em Construção

Miguel Marcelino concluiu o curso de Arquitectura na Universidade Autónoma de Lisboa em 2005, e nesse ano foi distinguido com o Prémio Secil de Arquitectura – Universidades.

No ano anterior tinha trabalhado no escritório Herzog & de Meuron, em Basileia, na Suíça, e depois da licenciatura até 2007 estagiou com Bonell & Gil, em Barcelona. A sua primeira encomenda foi em Portugal (Casa sobre um Armazém, cuja construção está agora em fase de conclusão), e nesse momento teve vontade e oportunidade para se dedicar a tempo inteiro aos seus próprios trabalhos. Em 2008, como sintetiza no seu currículo, “de volta a Lisboa, estabelece atelier próprio e vence o seu primeiro concurso público”.

O atelier de Miguel Marcelino é uma estrutura doméstica – um espaço anexo à sua própria casa – onde se ocupa deste projecto e de outros mais recentes. O processo de concurso do Centro Escolar seguiu os trâmites normais, prolongados, de homologação e contratação. Só no final de 2009 é que se avançou com o projecto de execução e foi apenas no desenvolvimento desta fase que recorreu à colaboração de outro arquitecto. Segundo as suas palavras, a opção de manter um “atelier pequeno” não tem que ver com um “capricho ou idealismo romântico mas sim com questões económicas”, na medida em que uma estrutura maior (com maiores encargos de rendas, ordenados, equipamentos, etc.) implicaria lógicas de aceitação e procura de trabalho que poderiam não ser tão estimulantes ou eficazes para o exercício da arquitectura como a concebe. É uma opção intelectualmente comprometida, que garante a satisfação diária no trabalho desenvolvido, mas é uma opção que também promove um certo isolamento, intensificando um diálogo interior que lhe apraz. “A escrita é uma actividade a que gostaria de dedicar mais tempo, pois é fundamental para esclarecer uma série de dúvidas e questões.” Em todos os projectos repete um exercício: “Escrevo uma memória descritiva com um máximo de mil caracteres (incluindo espaços) para sintetizar e saber o que é importante.”

O Centro Escolar de Fonte de Angeão é a sua primeira obra pública e a grande protagonista, até à data, na construção deste atelier. Neste momento o seu maior desafio é acompanhar a obra, a cerca de 200 quilómetros de distância. No seu trabalho destaca-se igualmente o Museu da Música Mecânica, em Palmela (projecto que ganhou em 2011 num concurso por convites), actualmente em início de construção. O percurso de Miguel Marcelino mostra que, apesar da crise e do crescente descrédito na possibilidade de estabelecer uma carreira profissional – sobretudo entre os (muitos) jovens arquitectos portugueses –, ainda é possível ser arquitecto e construir em Portugal.

O Edifício

A grua gigante que se destaca na paisagem assinala o local da obra. Atravessando a vila, na mira da grua, encontra-se uma ribeira que delimita o pequeno aglomerado e demarca a frente de acesso ao centro escolar. O local está repleto de eucaliptos, de campos agricultados, e tem uma atmosfera límpida. Ao atravessar a ponte sobre a ribeira e contornando o estaleiro, é possível imaginar crianças e a comunidade local – o ginásio, as salas multiusos e de informática são também abertas à população local – a percorrer o caminho em ritmo de passeio ou de bicicleta. A obra confronta esta imagem pitoresca com vários volumes “cegos”, alinhados e repetidos, que se afirmam na paisagem à semelhança de uma operação land art. A subtileza do material de revestimento da construção (tijolo cerâmico de cor idêntica à da terra revolta), o ritmo e abstracção dos volumes, a escala controlada mas expressiva, e o rigor geométrico da implantação (em simetria perfeita a partir do eixo central) evidenciam a sensibilidade na interpretação da envolvente e na forma de a transformar.

A obra encontra-se a meio caminho, mas as características do edifício já são perceptíveis. No grande parque exterior, que prevê um paisagismo adequado às funções de recreio, destaca-se o grande paralelepípedo dentado da escola, onde uma generosa e elegante cobertura em consola marca a entrada no edifício e, ao mesmo tempo, oferece uma zona de recreio coberto. A entrada é seguida do refeitório e marca um eixo de luz nascente-poente que divide funcionalmente a escola em duas: a sul, o infantário; a norte, a escola básica. A meio, localizam-se os serviços comuns aos dois núcleos e à população: a biblioteca – com zonas específicas de leitura –, salas multiusos e o ginásio, que se destaca na cobertura, assinalando o centro do conjunto.

As juntas de dilatação nas paredes de tijolo, as instalações à vista com materiais e cor cuidadosamente escolhidos, as cofragens do betão, a quase inexistência de condutas, etc., caracterizam um edifício em que o detalhe é a própria construção. A estrutura do edifício – paredes duplas em betão armado aparente, no interior, e tijolo de face à vista sem nenhum acabamento, no exterior – está já concluída e revela uma imagem muito próxima do que será o futuro edifício: um corpo desmultiplicado pela alternância de volumes que se sucedem entre pátios. Esta “franja” em blocos que caracteriza o perímetro resulta da vontade de suavizar a presença do volume na paisagem, mas contribui, igualmente, para o uso de técnicas de climatização passiva.

A forma segue o programa. Metodologicamente, o projecto aproxima-se da extrusão de um diagrama funcional concebido segundo o caderno de encargos do concurso. Cada bloco é uma sala autónoma com uma função específica que, por entre rasgos, se destaca do corpo central. As variações volumétricas destes blocos periféricos resultam da acomodação das diferentes áreas definidas pelo programa, com pequenos ajustes de composição. O estudo cuidado do programa permitiu ainda, em diálogo com o cliente, eliminar algumas salas por conterem funções redundantes.

Entre as duas áreas distintas (as salas e os espaços de serviço) estão os “corredores de recreio”. Por serem compridos, amplos (3,5 metros de largura) e sistematicamente rasgados para o exterior, criam uma antecâmara simultaneamente de estar e distribuição, com uma forte componente cénica e performativa. É neste caminho circular que a paisagem exterior é perceptível, porque, à excepção dos topos norte e sul (onde a opção foi abrir as salas para o exterior), as aberturas das restantes salas estão orientadas para a parede cega do bloco seguinte, onde a luz de sul é reflectida. Em cada sala, o exterior só é perceptível numa perspectiva diagonal, de modo a “criar um ambiente propício à concentração”, e a luz, também ela indirecta, ganha “uniformidade e profundidade”. As vistas francas para o exterior apenas se encontram no infantário e, quem sabe se como recompensa, nas salas dos alunos mais velhos.

A entrada em obra das carpintarias (nos caixilhos e pavimentos) e pontuais revestimentos de parede e tecto acústico são o ingrediente em falta para equilibrar o aspecto austero dos materiais aparentes. Marcelino afirma que, tal como na culinária, é o balanço entre os contrastes dos materiais que garante a riqueza e a qualidade do produto final – que aguardamos, com curiosidade, ver colorido pelas crianças, o que confirmará a vocação da arquitectura para participar na construção de um novo território.

 

Este artigo foi publicado no J-A 247, Mai — Ago 2013, p. 114-125.

A solução de climatização projectada para o Centro Escolar de Fonte de Angeão destaca-se pelo modo aparentemente orgânico e pela naturalidade com que se relaciona com a solução arquitectónica. O resultado é particularmente estimulante, numa altura em que proliferam casos em que estes sistemas têm um enorme peso orçamental de instalação, manutenção e funcionamento, condicionando o uso quotidiano dos edifícios onde, por exemplo, a abertura de janelas é impossível. A memória descritiva sintetiza as principais opções do projecto: “A produção térmica será assegurada por unidades de bombas de calor com permutador externo enterrado, utilizando-se o solo e/ou a água como elemento receptor da troca de calor, tirando-se proveito do baixo nível freático existente na zona. Por outro lado, o controlo da temperatura máxima interior será assegurado por sistemas de ventilação seminatural em conjugação com a flora envolvente a criar.”

As áreas de serviço, no corpo central, serão dotadas de um sistema de exaustão do ar para o exterior, criando zonas de franca depressão que promovem o fluxo do ar das salas periféricas. O ar fresco dos pátios entra nas salas de aula através de dispositivos de abertura integrados na parede norte, por baixo do envidraçado de cada bloco, e circula para os corredores através de pequenas aberturas no topo das paredes (concebidas de modo a garantir o enclausuramento visual e acústico dos espaços). No Inverno, o ar é aquecido em convectores de água quente (colocados imediatamente em frente das aberturas), fazendo a correcção térmica necessária. Apenas as zonas de serviço (ginásio, refeitório, biblioteca) e infantário terão unidades de tratamento de ar novo. A água é aquecida em bombas de calor na central térmica, e prevê-se que o consumo eléctrico necessário provenha indirectamente da venda de energia produzida na escola por painéis fotovoltaicos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Localização
Fonte de Angeão, Vagos
Concurso
2008
Projecto
2009-2010
Construção
2011-
Cliente
Município de Vagos
Área de Construção
2885 m2
Custo Total da Obra
2 389 000,00 €
Arquitectura
Miguel Marcelino
Colaboração
Pedro Dourado
Engenharia de Estruturas
Betar (José Venâncio)
Engenharia Hidráulica
Ana Luísa Ferreira
Engenharia Eléctrica
Fernando Carvalho Araújo
Engenharia Mecânica
António Lopes do Rego
Segurança contra Incêndio
António Portugal
Paisagismo
FC Arquitectura Paisagista
Empreiteiro-Geral
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