Do alpendre avista-se finisterra



João Soares (TEXTO) + Vasco Célio (FOTOGRAFIA)

A minha cabana

CONSTRUIR A CASA COM AS PRÓPRIAS MÃOS

No extremo sudoeste da Europa, na ponta de Sagres, foi construída há pouco tempo uma pequena habitação “à moda antiga”. O autor, arquitecto paisagista de formação, é percebeiro e pescador. A casa, simples, desafia lugares-comuns de alguns temas quentes da arquitectura contemporânea, desde questões de linguagem e de sustentabilidade, à reutilização de técnicas construtivas tradicionais e instrumentos da prática do projecto. Na sua simplicidade, a casa resolve de uma assentada vários dilemas existenciais, sobretudo porque corresponde à materialização transparente dos desejos íntimos do seu dono. Para atingir essa eficácia, o arquitecto recorreu a um saber directo, empírico, para tirar o máximo partido dos recursos disponíveis, das suas competências, dos saberes que o rodeiam. Nesse uso, ou nessa experiência, e perante as dificuldades e frustrações com que se foi confrontando, fez o seu próprio conhecimento progredir e, sobretudo, fez coincidir a forma construída com a razão e a razoabilidade desse saber. O resultado não foi um manifesto, mas uma casa confortável, a cabana dos sonhos de infância.

Mas vamos por partes. Chegar à casa é chegar a um lugar especial, afinal, estamos quase no fim do mundo, no Barlavento algarvio. O caminho que desde a Estrada Nacional se foi tornando progressivamente mais estreito e irregular, sobre a terra raspada pelo vento, transporta quem lá chega até finisterra. A sucessão de pequenos momentos, perspectivas e caminhos incógnitos perpetua a disponibilidade para a admiração. Passando o portão, de paus ligados com arame, vê-se a linha alta do mar, dentro dos cheiros das moitas de esteva e aroeira. A casa é aí.

Depois da porta, o silêncio. Um silêncio material, que se pode tocar. Este silêncio, seco, influi de forma mensurável na consistência dos materiais. À medida que se adentra na casa, chega o cheiro do óleo de linhaça, sentem-se as várias asperezas do arenito de Silves, do xisto e grauvaque da Cordoama, as diferenças nas texturas da madeira.

A casa é composta por dois espaços: uma área encerrada por paredes em alvenaria de pedra (encimadas por uma estrutura de madeira onde apoia o telhado) e um alpendre exterior com dimensões semelhantes ao rectângulo interior. Dentro, a um canto, há um espaço para cozinhar, no canto oposto há um pequeno “ninho” de almofadas com forras de algodão grosso, sobre o qual está a cama. Para quem está deitado, junto ao forro do tecto – em ripa e cana – há uma janela rasa para nascente. Ao centro, entre a porta e a chaminé, uma mesa sólida. Tal como no interior, o alpendre exterior é feito em madeira crua, e a mesa azul, pintada com tinta de construção naval, também ocupa uma posição central. Dentro ou fora, é na mesa que se partilha o prazer da comida.

DERIVA VERSUS PROJECTO

A casa foi levantada em 2006 por Nicolau da Costa. “Era preciso uma casa, arregacei as mangas e construí-a.” Se medir o mundo é conhecê-lo (e medir começou pelo corpo: pés, palmos, braças), para compreender a naturalidade desta casa é preciso voltar a esse início da medida, o espaço como derivado directamente do corpo e dos seus movimentos, dos gestos próximos e distantes que a ligam à terra. Nicolau tem formação de projecto, antes de se fixar no Barlavento como pescador trabalhou alguns anos em renomados escritórios europeus de arquitectura, portanto conhece os passos de um processo de projecto. Neste caso não houve projecto nem desenhos para definir proporções ou para suportar uma investigação sobre formas e soluções, também não houve desenhos codificados, como manual de instruções para a execução dos trabalhos.

Lembro-me de estar aqui e pensar… qual é o melhor sítio? Também escolhi o sítio por causa da vegetação, estar abrigado do vento, com orientação para sul… Escolhi o sítio, peguei em quatro estacas, e estava o projecto feito. Foi mais ou menos isto, começou por aí.

Como forma de pensamento, não se trata necessariamente de contrapor construção a projecto. O projecto pode não se apresentar sob uma forma reconhecível, mas não deixa de existir, enquanto acto, enquanto verbo.

A função do projecto, principalmente na execução, é passar a informação às pessoas que o vão construir. É bem diferente se formos nós a pensar as coisas e se formos nós próprios a construir. Não temos de passar essa informação a ninguém. Vamos fazendo.

O determinante é o tempo: implica a deslocação da fase de projecto directamente para a fase de construção, em simultâneo. O projecto não é um momento fechado que antecipa a realidade, comunicando essa prefiguração através de desenhos ou modelos miméticos. O desenvolvimento desta obra fora dos moldes convencionais tem sobretudo a ver com os materiais empregados: a casa começou com um monte de pedra.

Já não me recordo bem, mas levei pelo menos seis meses a apanhar pedra. Apanhava pedras de todo o lado. Apanhava, carregava, tirava das moitas, metia no caminho, carregava no carro, descarregava do carro, metia no monte, enfim… Estas pedras todas, até chegarem à cama delas, foram levantadas muitas vezes.

Depois, a madeira, literalmente, deu à costa.

Precisava de madeira… ainda não tinha pensado muito bem no assunto. Onde iria eu buscar a madeira? E foi de Inverno, um Inverno rigoroso que tivemos aí… não percebi se foi um barco, se foram vários… perderam cargas de madeira, e começou a dar madeira à costa. Claro que não chegou toda no mesmo dia, isto foi um processo que levou meses. Esta viga veio daqui da enseada de João Vaz, já aqui em frente, a um quilómetro. Apanhei madeiras nos Ouriçais, fui praticamente até à Arrifana, a norte de Aljezur.

A metáfora da deriva é cativante, parece materializar o ideal da reciclagem, convertendo-o numa estética com princípios e texturas. Por outro lado, reveste-se de um profundo sentido poético – e moral. Os restos são resgatados, são revalorizados, para serem reutilizados numa nova vida, preservando os sinais do que foram.

A imagem que opõe a suposta racionalidade do projecto ao suposto carácter caprichoso do acaso pode ser enganadora. Sabe-se que, no espaço racional do projecto, as funções não racionais são, muitas vezes, estruturantes. E, neste caso, não é difícil compreender que há muito mais do que um feliz acaso ou epifania. A montante da obra, houve um trabalho de recolha, com tudo o que isso implica como selecção. Trata-se de uma forma de escolha, consequentemente de exclusão, que antecede o trabalho posterior de “encaixe”, como num puzzle ainda por definir.

… na maioria, as coisas encaixaram todas!

Era incrível! E à medida que precisava de um material que não tinha, era só andar dois ou três dias, e a tal pedra aparecia… Um dia, começas a aplicar os materiais, e eles começam a encaixar.

É uma maravilha! Vocês que são arquitectos sabem o que é, não é? Quando uma pessoa faz um projecto, e depois há aqueles dias em que as coisas começam todas a… não é a fechar, é a nascer, a encaixar! É maravilhoso. Nunca mais esqueço esse dia!

As características de cada momento da construção, que foram conferindo intensidade ao processo, tornam palpável a relação da forma com o gesto que lhe está associado. Não se fala de desenho, ou de desenho da forma, uma vez que o aspecto dessa forma não se conhece de antemão, resulta de uma decisão técnica-construtiva aplicada aos materiais que estão ainda por encontrar.

UM SENTIDO DE LUGAR

Como se pode imaginar, a obra não foi feita só com duas mãos. Foram convocados braços amigos, não só em muitos dias de trabalho como em ocasiões de festa de cumeeira e aguardente de medronho, e também na preparação da própria obra. Esta dimensão colectiva convocou a transmissão de saberes, também eles locais, das carpintarias às alvenarias.

É um homem que vive cá, que é pedreiro, trabalha com pedra. Isso fez parte da preparação. Trabalhei com ele nalgumas obras, e ele deu-me as bases, ensinou-me. Estive uns meses a aprender com ele. Chama-se Pedro. Foi muito importante porque me acompanhou neste processo. Quando eu precisei dele, ele estava cá. Foi aquela coisa de transmitir a informação, o seu saber. Ficou todo contente por um moço novo ter aprendido com ele, por querer fazer e ter a força para o fazer.

A cabana e o lugar apresentam-se como um mundo ordenado, com as componentes fundamentais das utopias que pensaram o futuro: o indivíduo e a relação com a comunidade, a relação com o trabalho, a alimentação e a educação. Nas palavras de Agostinho da Silva: o sustento, o saber e a saúde.

Nicolau da Costa é pescador profissional, é apanhador-percebeiro, e vive dessa faina, dos passeios de hiking para quem vem da capital, e do trabalho da horta que cultiva ali ao pé. A cabana só faz sentido num sistema de lugares que se complementam: a horta (com uma “avenida” de girassóis, para oferecer às moças), a casa da aldeia, as falésias dos percebes e as caminhadas das atalaias. O modo de vida do habitante da pequena cabana é, como se compreende, especial, e a sua relação com a terra é quotidiana. Por isso, a sua obra é mais forte do que um manifesto.

A cabana preencherá muitos dos requisitos para receber os epítetos da autonomia e da sustentabilidade, mas distancia-se deles porque não pretende ser um acto demonstrativo. Também não se fecha em nenhum fundamentalismo heróico de chave eremítica – o Inverno é passado na aldeia. Não tem pretensão a ser nem um manifesto ascético nem a representação de uma moral superior: é apenas uma cabana.

Claro que tenho consciência de que esta casa é uma pegada humana, mas sempre disse: “Quando eu morrer, isto vai derreter.” Tem uma coisa ou outra de plástico, não tem betão, só tem madeira, pedra, barro, cal, palha, cortiça. São materiais que “derretem” facilmente.

O paradoxo deste artigo reside no facto de se querer dar a conhecer uma casa que, no fundo, só tem de excepcional a sua trivialidade. No contexto de excepcionalidade crónica que tende a caracterizar o universo da arquitectura contemporânea, a sua normalidade singela poderá, de facto, conferir-lhe um estatuto excepcional inadvertido. Como diz o autor desta arquitectura sem arquitecto: “O que eu fiz foi fazer as coisas ‘à antiga’.”

Este artigo foi publicado no J-A 248, Set — Dez 2013, p. 234-237.

Isto também é um sítio importante para mim. Sou um solitário, preciso de um espaço. Tenho vários espaços: um deles é a minha horta, onde trabalho a terra, estou comigo próprio, estou sossegado. Tenho o mar, que também me dá isso. E aqui é mais o meu sítio de descanso. De descanso, de leitura, de pensamento. Tenho este sítio para isso. Além de ser só um abrigo para comer e para dormir, é isso também: um sítio de sossego e de contemplação. Mas também é o sítio onde gosto de receber as pessoas. E este sítio também nasceu para poder juntar as pessoas com quem gosto de estar, e também comer e beber, que é das coisas que mais gosto nesta vida. Comer e beber em boa companhia.