Pedro Campos Costa

A HISTÓRIA DO FUTURO*

A propósito do seminário e workshop Future Traditions

A ciência dos futuros – disse Platão – é a que distingue os deuses dos homens, e daqui lhes veio sem dúvida aquele antiquíssimo apetite de serem como deuses.
*Padre António Vieira

Sempre houve relações entre a arquitectura e as vanguardas tecnológicas, seja na construção e no estaleiro de obra, seja na configuração do projecto e dos seus modos de representação. Essa presença constante no processo arquitectónico, da concepção à utilização, torna ambígua a fronteira entre os dois mundos, ao ponto de não ser possível distinguir se é a tecnologia que influencia a arquitectura ou se é a arquitectura que domestica a tecnologia, incorporando-a na sua disciplina. Ainda nos são próximas as ambiguidades e conflitos inerentes à tecnologia construtiva do betão armado, onde é impossível descortinar o seu impacto na formação da linguagem do movimento moderno relativamente a práticas artísticas como a escultura ou a pintura. Se pensarmos na utilização de software da indústria de animação americana dos anos 90, é perceptível o impacto que as tecnologias digitais tiveram na especulação formal da arquitectura, como também é evidente a importância dos formatos de vídeo e das pré-visualizações tridimensionais nos mecanismos de apresentação e promoção da arquitectura nos media e para os próprios clientes e investidores.

Hoje, o uso de ferramentas paramétricas, como as tecnologias CAD/CAM – Computer Assisted Design e Computer Assisted Manufacture – não só contagiou as universidades de todo o mundo em laboratórios de investigação e desenvolvimento, como está presente nos ateliers de arquitectura, incorporado no discurso de concepção ou como mera ferramenta de desenho e produção, exemplos disso são os escritórios Foster + Partners – que têm um departamento de desenho paramétrico –, ou o UnStudio, que desde os anos 90 tem apoiado o seu discurso arquitectónico em tecnologias de computação.

Cá em Portugal, na senda dos grandes encontros de investigação que as universidades têm vindo a promover (recorde-se, por exemplo, a conferência Shoppingscapes’13, que em Maio a Universidade Lusófona organizou em Lisboa), em Abril passado teve lugar na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto (FAUP) o primeiro seminário e workshop regional da eCAADe, Education and Research in Computer Aided Architectural Design in Europe, uma associação fundada em 1987 e da qual é presidente o arquitecto José Pinto Duarte. Este encontro trouxe a Portugal o que de melhor se faz nesta área ao nível da investigação. Na primeira conferência ficou explícito o sentido do nome do seminário Future Traditions: Mark Burry, arquitecto australiano que trabalhou (e ainda trabalha) na reconstrução da Sagrada Família em Barcelona, mostrou a relação do uso de tecnologias digitais com os carpinteiros e canteiros, centrando-se nos processos de colaboração entre arquitectos e artífices, desde os primeiros estudos, quando ainda não havia acesso à tecnologia actual e o desenvolvimento era feito de forma analógica e em que as maquetas tinham um papel fundamental. No final da conferência perguntaram-lhe se um arquitecto tinha de saber programar software, ao que ele respondeu que tinha era de saber desenhar, confessando a sua angústia perante a prática de desenho (ou a falta dela) dos seus alunos. Ficámos esclarecidos, a sua resposta liquidou eventuais tentativas de validar uma espécie de seita visionária defensora da ideia de que, só por si, o uso de determinadas ferramentas pode fazer arquitectura.

O seminário e o workshop, com participantes de todo o mundo, desde a Indonésia à Arábia Saudita, passando pelo Bangladesh, Inglaterra, Itália, Suíça e Austrália, contava naturalmente com uma representação portuguesa expressiva, que demonstrou a qualidade e o interesse que esta área tem suscitado por cá. Esse mérito deve ser atribuído a personalidades que, ao longo dos últimos anos, têm impulsionado a investigação e a prática destas tecnologias em Portugal, das quais se destacam, além do presidente da eCAADe, o arquitecto José Pedro Sousa – um dos organizadores do evento, com um amplo trabalho teórico e prático já desenvolvido – e o professor Mário Krüger, da Universidade de Coimbra. Em Lisboa, o ISCTE- IUL criou um Curso de Estudos Avançados em Arquitectura Digital – em parceria com a FAUP – e o Vitruvius Fablab, um laboratório de fabricação digital que, apesar de ter apenas um ano de existência, conta já com uma intensa actividade e interacção com vários escritórios de arquitectura.

Além do debate teórico que ocorreu nas apresentações do seminário, onde se ficou a par do estado da arte na matéria, os workshops práticos abordaram, entre outros, temas desde a reinvenção dos azulejos cerâmicos (por Sara Eloy, Deborah Benros e José Pinto Duarte) a scripts e algoritmos de apoio à computação (Ab-use Computation, por Ioanna Symeonidou e Yannis Zavoleas), morfogénese de estruturas complexas (Tobias Schwinn e Gonçalo Castro Henriques) e processos generativos de desenho (por Mauro Costa). Essencialmente, estes workshops consistiram em experimentação com software – apenas dois grupos produziram as formas geométricas idealizadas em modelos de cartão, e outros produziram gramáticas de desenho passíveis de ser utilizadas. Como é hábito em workshops tão rápidos, os resultados ficam sempre aquém das expectativas de alunos e tutores, mas permitiram contactar em directo com as ferramentas e as teorias que foram apresentadas.

O seminário encerrou com uma conferência de Achim Menges, uma referência incontornável no desenvolvimento e investigação da arquitectura paramétrica. A apresentação tornou evidente o investimento impressionante que a Universidade de Estugarda levou a cabo nos últimos cinco anos, tanto no Institut for Computational Design (ICD), como nas parcerias com o Institute of Buildings Structures and Structural Design (ITKE), e que permitiu realizar instalações com as tecnologias mais avançadas a partir de uma investigação entusiasmante em torno das possibilidades dos materiais. Uma ilustração cabal das potencialidades dos fab labs e da investigação aplicada à construção.

Esta visão de virtuosismo tecnológico, apresentada por Achim Menges, levanta questões que vão muito para além das formas da arquitectura, ou da exploração formal das possibilidades abertas por novas ferramentas. Objectos maravilhosos construídos para quem? E a que preço? Qual é a sua função na sociedade e o que podem mudar? Este debate, que já tomou mais espaço no mundo da arquitectura digital, permanece em aberto. Os arquitectos sempre se deixaram fascinar pelo terreno apetitoso das ciências exactas, pelos lugares onde, à imagem dos laboratórios médicos, se desenvolvem soluções in vitro que posteriormente se oferecem (ou se comercializam) para o mundo. Este fascínio parece fazer esquecer lutas ideológicas, a função social da arquitectura, ou até a sua componente artística, como se fosse possível que a arquitectura, órfã de uma teoria ou de uma função cultural, se libertasse de circunstâncias, formalismos e tacticismos em prol de uma fórmula matemática.

Mas é injusto resumir esta área interessante e complexa ao tecnicismo maravilhoso e exuberante que reluz nos ecrãs do mundo digital. Até porque muitas das práticas a que se assiste apontam caminhos diferentes da sofisticação inalcançável. Não faltam pequenos grupos que usam estas ferramentas inseridas nos seus contextos culturais e como resistência à ditadura da padronização industrial e às folhas de cálculo neoliberais. São exemplos disso as experiências recentes em workshops de “terra digital”.

Em breve, a construção realizar-se-á com enormes braços robóticos e gigantescas impressoras tridimensionais, as máquinas realizarão projectos com uma exactidão assustadora e em um terço do tempo de hoje. Nessa ficção científica é difícil imaginar qual será então o papel da arquitectura e como será a profissão, mas poderemos especular que os cientistas da computação, programadores-arquitectos que sabem desenhar – ou não –, estarão nos seus laboratórios impecáveis a construir de forma asséptica, sem a ajuda dos carpinteiros e canteiros que levaram a cabo a tarefa impossível de concluir a Sagrada Família. Talvez esta estranheza e desumanidade sejam determinadas à partida pela nossa incapacidade de prever o futuro. Foi assim sempre que nos deparámos com a vertigem de uma novidade tecnológica que altera a forma e a construção; a tendência é irremediavelmente para a criação de cenário apocalíptico, mas isso não nos deve afastar do debate e do nosso envolvimento nos impactos futuros que o progresso das tecnologias digitais terá. Recusar o debate, sem domesticar e contextualizar culturalmente as novidades tecnológicas, sem as utilizar criticamente, é recusar participar na possibilidade de escrever a história do futuro.

 

Este artigo foi publicado no J-A 248, Set — Dez 2013, p. 242-243.

[ERRATA: Por lapso, na edição impressa onde se lê "ISTEC-IUL" deverá ler-se
"ISCTE- IUL" e onde se lê "mestrado" deverá ler-se "Curso de Estudos Avançados".
Aos leitores e as respectivas instituições o nosso pedido de desculpa.]