Colecção de Fotografia da Muralha, Associação de Guimarães para a Defesa do Património



Diogo Seixas Lopes

A Fábrica Que Viveu Duas Vezes

Processos específicos de interpretação e intervenção

Edifícios & Vestígios é o título de um projecto desenvolvido no âmbito do Programa de Arte e Arquitectura de Guimarães 2012, Capital Europeia da Cultura. Inês Moreira, comissária (com Aneta Szylak) e investigadora, conduziu este trabalho, que resultou numa exposição e num livro. É do último que este texto trata, como registo do primeiro. Na senda da exposição, o livro tem um tema claro e declarado sendo sobre “espaços pós-industriais”. É uma publicação cuidada na forma, e ambiciosa quanto à sua ideia. Dando conta do assunto que trata, também constitui uma demonstração de capacidade curatorial, editorial e teórica de um grupo de autores. Edifícios & Vestígios sublinha assim um eixo importante do Programa de Arte e Arquitectura de Guimarães 2012. Neste caso e noutros – como o concurso Performance Architecture (curadoria de Pedro Gadanho) ou a exposição Devir Menor (curadoria de Inês Moreira e Susana Caló) – foi possível tomar o pulso a outras possibilidades de prática e pensamento para os arquitectos. Num país onde pairam as maiores dúvidas sobre a actividade destes últimos, trata-se de um debate que urge ser feito.

Edifícios & Vestígios incide sobre um assunto concreto através de processos específicos de interpretação e intervenção no meio físico e social. Sem essa noção de método, aqui muito associada a certos contextos académicos e artísticos, dificilmente se estabelecem modos consequentes para fazer face às transformações do mundo actual. Perante as mudanças do presente, o livro propõe ao leitor uma série de testemunhos sobre um passado recente. A saber, o passado de uma actividade industrial outrora vibrante e que agora caiu em quase completo desuso. Esta ideia de obsolescência atravessa as páginas da publicação e dos seus contributos. Muitos deles são evocativos, ou mesmo elegíacos, das fábricas e dos trabalhadores que ficaram para trás com a marcha inexorável de um suposto progresso. Para usar uma expressão do cineasta Chris Marker, são “as garrafas vazias da História”. Edifícios & Vestígios relembra o que perdura dessa memória colectiva, num resgate do seu eventual esquecimento. Em particular, toma o contexto regional e nacional como hipótese de estudo para uma série de saberes que convergiram para este projecto.

A Fábrica ASA em Guimarães foi o sítio escolhido para apresentar, em primeira mão, os resultados do projecto. A escolha, vinda da oportunidade de ocupar um sector de uma antiga fábrica têxtil, tinha um forte simbolismo. O contentor da exposição era ele próprio conteúdo da mesma, numa experiência imersiva e espectral. A luz coada em todo o espaço reforçava esse ambiente, como que a chamar os fantasmas finados de uma indústria e de quem nela trabalhou. Espalhados ao longo de uma nave fabril, fragmentos dispersos desse universo surgiam em suportes variados como a fotografia, a escultura, a instalação e a performance. Muitos dos trabalhos foram propositadamente produzidos para a ocasião, aos quais se juntaram outros já elaborados. Havia de tudo um pouco, desde uma roulotte transformada em “máquina romântica” (Pedro Bandeira com Sofia Santos e Joana Nascimento) até ao “bloco ondulado” (Julita Wójcik) de uma maqueta em croché de uma unidade de habitação operária. Mas também uma mesa de refeições feita com materiais reciclados para um “seminário cultural” (The Decorators) ou os diagramas complexos usados na pesquisa de uma “máquina de pensamento pós-industrial” (Susana Medina, FEUP). O livro passa para o papel o conjunto destas propostas, documentando-as. Os contributos estão agrupados por secções temáticas, que progridem das artes para as ciências. Esta classificação permite sistematizar a diversidade de abordagens sobre espaços pós-industriais aqui reunidas. Como escreve Inês Moreira, “os espaços pós-industriais merecem ser olhados de modo mais profundo que o olhar romântico do fotógrafo amador, deixando-se margem para o fascínio (que nem sempre se encontra nas memórias das empresas industriais), e devem ser compreendidos de um modo que vá além da arquitectura da fábrica original”. Os textos e imagens que sucedem a esta introdução, confirmam o seu enunciado. Reconstroem ainda, com eficácia, a experiência da exposição que esteve na origem do livro. Em ambos os casos, sobressai um retrato panorâmico daquilo a que outro cineasta, Jean-Luc Godard, chamou de “ferro-velho da galáxia”. São vestígios de um edifício devoluto, palco do trabalho e das máquinas debaixo do tecto de uma fábrica. Entender este fenómeno de extinção é importante para os arquitectos, porque antecipa outros acontecimentos em curso que afectam a sua actividade. É preciso perceber o mundo, para poder agir sobre ele.

Edifícios & Vestígios é uma tentativa disso mesmo. O livro tem quantidade e qualidade para tal, dando conta de um projecto de investigação rigoroso sobre o que ficou de uma sociedade industrial. Nele são feitas várias referências à Fábrica ASA, que foi o palco inaugural deste trabalho. Mas também a outras congéneres, como a Fábrica de Fiação de Tomar, as Minas da Borralha ou os Estaleiros de Gdansk. Este panteão foi reanimado para viver de novo, por momentos, o sonho de um futuro que entretanto passou de prazo. Edifícios & Vestígios faz surgir do nada algo que a ele tinha sido condenado, como num acto de prestidigitação. Sendo um livro técnico, como comprova a recorrência de algum jargão, é igualmente um livro poético. O balanço entre estes extremos, aparentemente inconciliáveis, anuncia uma nova sensibilidade. Mais informada e cosmopolita que gerações anteriores deste tipo de estudos, aponta outras perspectivas de reflexão sobre o velho adágio segundo o qual “tudo o que é matéria se dissolve no ar”.

 

Este artigo foi publicado no J-A 249, Jan — Abr 2014, p. 330-331.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

EDIFÍCIOS & VESTÍGIOS
Projeto-ensaio sobre
espaços pós-industriais
Editor
Inês Moreira
Edição
Guimarães,
Fundação Cidade Guimarães
e Imprensa Nacional-
-Casa da Moeda, 2013