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Vista geral do vale do Zêzere



Marta Labastida/ Pedro Baía (texto) / Nuno Cera (fotografia)

A escolha da serra

O Lugar da Arquitectura num Negócio de Sucesso

A história em torno da Casa das Penhas Douradas e da Burel Factory apresenta os ingredientes necessários para um argumento convincente. Trata-se de um “caso de sucesso”, imbuído da dimensão “empreendedora”, simultaneamente fascinante e hipnótica, que inspira e faz acreditar ser possível investir com igual dose de sensibilidade e ambição. Nesta história em particular, a arquitectura tem assumido um papel relevante ao longo de treze anos de parceria continuada na definição conjunta de um programa de consolidação e expansão do negócio: desde o primeiro momento, no ano 2000 – em que os arquitectos Pedro Brígida e Alice Faria, de Coimbra, acompanharam um casal de investidores de Lisboa, Isabel Costa e João Tomás, para avaliar a escolha de um terreno a adquirir para implantação de um projecto turístico –, até aos dias de hoje. Neste processo, os arquitectos foram parceiros fundamentais dos clientes-investidores, articulando a sua leitura do espaço e do território com os programas de investimento imaginados. Sem ficarmos reféns do fascínio gerado por um “negócio de sucesso” na serra da Estrela, interessa focar o modo e o lugar da arquitectura nesta lógica de investimento turístico-industrial e perceber de que forma a cultura arquitectónica foi sendo útil nos procedimentos de ponderação e cálculo meticuloso para conseguir a gestão optimizada dos recursos disponíveis.

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O IMAGINÁRIO TURÍSTICO DA SERRA

Os clientes, tendo em vista a criação de um negócio em contacto com a natureza da montanha, deram início ao projecto num passeio pela serra da Estrela com a dupla de arquitectos. Procuravam a melhor localização para implantar uma pequena unidade de turismo em espaço rural.

 

Naquela época, os clientes tinham acabado de se formar como casal e estavam a definir o que iria ser a vida deles. E decidiram que iria ser na serra da Estrela, onde não tinham qualquer tipo de raiz. A ideia deles era muito clara: “Nós queremos ter uma vida que seja ao mesmo tempo o nosso sustento.” Eles gostam de fazer caminhadas e de andar nas montanhas. Portanto, já conheciam muito bem a serra da Estrela, das férias e desses passeios. E nós, enquanto arquitectos, fomos incorporados nesse projecto de vida desde o início.

Antes de encontrarem o local que daria lugar à Casa das Penhas Douradas, o grupo descobriu uma propriedade nas Sarnadas, entre as cotas 900 e 950. Um terreno de acesso difícil, com um conjunto de construções de apoio à prática da agricultura e pastorícia que estavam abandonadas. Seduzidos pela paisagem sobre o vale, esse lugar foi escolhido para testar a ideia de negócio. Para avaliar a viabilidade daquele cenário, encomendaram um estudo prévio para um pequeno complexo turístico, ainda sem contemplar a sua residência própria.

Os arquitectos desenvolveram um projecto que tirava partido do lado cénico das ruínas, não prevendo a sua recuperação mas optando por explorar relações de tensão com as construções abandonadas. A proposta aproveitava o desnível do terreno e seguia a lógica de implantação dispersa das construções abandonadas, com módulos em madeira poisados ao longo da encosta. Conseguia-se um conjunto de cinco pequenos refúgios (55 m2 cada) e uma unidade de apoio comum (70 m2) com capacidade máxima de alojamento para 40 pessoas.

Num momento em que os clientes ainda não eram proprietários de nenhum terreno na serra, os arquitectos contribuíram para obter uma percepção mais rigorosa do potencial daquele lugar, tendo em conta as suas condicionantes específicas: da pendente aos acessos, da exposição solar às infra-estruturas, do programa aos limites orçamentais. No entanto, no mesmo ano o projecto das Sarnadas foi abandonado por não encaixar no projecto turístico que se estava a delinear, ficando em suspenso. Hoje, treze anos depois, os clientes voltam a considerar a possibilidade de retomar o projecto, articulando-o com a fábrica de lanifícios e com o hotel.

Estávamos a trabalhar no projecto das Sarnadas e o cliente disse-nos: “Agora esqueçam isto. O projecto que vos vamos encomendar agora é este, nas Penhas Douradas.” Estávamos em 2000. O projecto foi depois desenvolvido até 2004. E entrou dois anos em obra, até 2006. Desde o primeiro dia até ao dia em que a Casa das Penhas Douradas abriu portas, correram seis anos intensos de estudos prévios, projectos-base, projectos de execução e de obra.

Neste segundo projecto, optou-se por um terreno localizado nas Penhas Douradas, “a mais alta estância de montanha em Portugal”, na vertente norte do vale do Zêzere, oposta à das Sarnadas, à cota 1480, onde outrora chegou a existir um hotel-sanatório para o tratamento em altitude da tuberculose. Nos anos 50, a propriedade albergava a Pensão Estrela. Num conjunto de casas dispersas, construídas para repouso na montanha, o lugar preservava uma memória e uma edificação que, além de determinar uma preexistência, facilitou a implementação de um programa turístico no Parque Natural da Serra da Estrela, cuja legislação restritiva acabou por condicionar o projecto na sua dimensão e volumetria.

Em 2006, no dia em que a Casa abriu, o projecto, não o arquitectónico mas o turístico, entrou em funcionamento. Como eles são muito rápidos a perceber estas coisas, imagino que logo no primeiro dia intuíram que o produto turístico a trabalhar não seria exactamente aquele. E imagino que desde esse primeiro dia começaram a pensar em alterar o projecto, ou seja, em ampliar a Casa. Quando abriu ao público, a Casa tinha 700 m2, nove quartos, e a casa deles. Em 2008, foi-nos feita uma nova encomenda para ampliar o hotel.

A definição programática e espacial do que é hoje a Casa das Penhas Douradas corresponde a um projecto que se foi conformando ao longo de mais de dez anos: numa primeira fase, uma proposta com nove quartos e espaços comuns distribuídos pelo antigo edifício da Pensão Estrela; numa segunda fase, um acrescento para piscina coberta e spa; e, numa terceira fase, um projecto de ampliação que duplicou o número de quartos para dezoito através da implantação de um novo volume. Esta última fase correspondeu à mudança de categoria de turismo rural para hotel.

Por princípio, os arquitectos aproveitaram sempre a estrutura anterior, tentando coser o novo programa na construção preexistente. Esta atitude ficou expressa através da utilização de linguagens e materiais diferentes nas várias fases. Depois das diversas intervenções, a antiga Pensão Estrela continua reconhecível no conjunto edificado.

Num livro monográfico recentemente publicado pela Uzina Books, os arquitectos partilharam um apontamento reflexivo sobre a sua postura no projecto da Casa:

Procurou-se a eficiência funcional pela articulação dos espaços e formas, em alternativa à racionalidade espacial e construtiva de um programa definido e resolvido de uma só vez num só edifício. O resultado é fruto de um processo complexo de descoberta contínua e progressiva do caminho a seguir. Longe de ser intencional ou desejável, o pouco ortodoxo contexto de imprevistas acelerações, combinadas com diferentes mudanças de direcção, acabou por ser motivo e consequência.

No final do texto, deixam uma pergunta que ilustra a ambivalência da abordagem assumida: “A estratégia foi não ter estratégia – rígida pelo menos. Virtude ou fraqueza?”

Ao longo do processo, o projecto turístico foi sendo aperfeiçoado. A oferta hoteleira, cada vez mais específica, foi ampliando o programa pelo terreno. E a arquitectura teve de responder à necessidade que o cliente sentiu de aumentar as valências do hotel, procurando o equilíbrio possível entre a resposta pragmática e a tentativa de manutenção da unidade e identidade do conjunto.

RECUPERAR UMA PRODUÇÃO INDUSTRIAL

Enquanto se consolidava o projecto turístico da Casa das Penhas Douradas na cota alta da serra, as carências económicas e sociais da vila de Manteigas, sentidas na cota baixa, tornaram-se evidentes. Um estudo económico realizado pelos próprios clientes sobre as possibilidades reais de desenvolvimento oferecidas pelo lugar revelou, entre muitas outras ideias de negócio, o potencial da recuperação da indústria dos lanifícios — um património material e imaterial profundamente arreigado no conhecimento local. Com base nesta percepção, revelou-se uma oportunidade de aproveitar o saber de uma geração de trabalhadores, então no desemprego, assim como de aproveitar um vasto conjunto de instalações abandonadas ao longo do vale do Zêzere.

Neste contexto, os clientes resolveram investir na recuperação do burel, um tecido de lã grosso e áspero, de origem serrana, cuja produção industrial se encontrava em declínio crescente. Num primeiro momento, a Burel Factory instalou-se num espaço alugado dentro da fábrica dos Lanifícios Império. Posteriormente, com o processo de insolvência da empresa de acolhimento, os clientes adquiriram o património sedimentado ao longo de várias gerações, conseguindo transladar um conjunto de máquinas centenárias da Império para a vizinha fábrica Sotave, propriedade da Câmara Municipal de Manteigas, onde o negócio foi definitivamente sediado.

Com a instalação da nova empresa na antiga Sotave, aproveitaram-se todos os materiais, equipamentos, amostras e arquivos da fábrica Império. Neste processo, o património industrial foi entendido não como matéria para ser musealizada, mas como um legado pronto a ser utilizado. Orientado para a recuperação da memória, do conhecimento e da maquinaria, o projecto de arquitectura privilegiou uma aprendizagem que pressupunha a efectiva reactivação da produção industrial do burel.

Houve uma fase de projecto que não era bem projecto. A dado momento, os clientes chegaram com esta ideia: “Temos uma fábrica. Precisamos da vossa ajuda.” Como a fábrica obedece a uma mecânica industrial, a uma linha de montagem da qual nós não tínhamos grande conhecimento, perguntámos: “Mas onde é que podemos ajudar? Será que somos úteis?” E a resposta foi: “Não sabemos.” Portanto, talvez o projecto da fábrica que existe agora tenha mais do cliente do que do arquitecto. Nós fomos uma peça da engrenagem, com certeza, mas sem preponderância, sem protagonismo, como é normal num projecto de arquitectura. Até agora, na fábrica, na parte produtiva, o projecto segue os desenhos dos esquemas de produção.

Na fábrica, os arquitectos estudaram com os clientes a melhor localização para cada uma das máquinas transladadas. Numa primeira fase, a arquitectura assumiu a questão funcional do desenho e da organização do espaço, de acordo com a lógica do processo de produção. Posteriormente, alargou-se o âmbito da intervenção ao desenho de novos espaços sociais para os trabalhadores, a novas zonas de trabalho, a dispositivos para exposição e armazenamento, bem como à reposição de portas e janelas. Em cada uma destas tarefas, a atitude foi aproveitar e recuperar as descobertas associadas ao ofício. Se, por um lado, os critérios funcionais organizaram o espaço, por outro lado a arquitectura ajudou a entender o seu potencial, com vista a implementar novos programas que não derivassem apenas das necessidades de produção.

O trabalho de instalação na fábrica está ainda em curso. Nesta fase, não existe um projecto global mas sim um trabalho de mediação em que os donos de obra e os arquitectos partilham perguntas e respostas à medida que a construção do produto turístico-industrial exige novas necessidades ou aponta novas complementaridades. Conjugando as opções do cliente e as dos próprios arquitectos, o desenvolvimento deste projecto funda-se na estratégia do respigador atento. Uma atitude perante o que se encontra abandonado e que define um processo flexível que se vai adaptando ao longo das fases, determinando diferentes programas e redescobrindo recursos a explorar. Recentemente, a descoberta de uma linha de água que corre por baixo da fábrica, e que já serviu em tempos para produção de energia, tem levantado algumas hipóteses de actuação. Como aproveitá-la nesta nova lógica de negócio que articula o produto turístico da Casa das Penhas Douradas e o produto industrial da Burel Factory?

Neste investimento, é possível ler uma estratégia territorial que entrelaça as diferentes dimensões da serra da Estrela, desde o contacto com a natureza, passando pelo alojamento e pela restauração, até à indústria têxtil. Perante as novas exigências implícitas ao desenvolvimento do produto associado ao burel, a empresa decidiu abrir, no final de 2012, uma loja no Chiado, em Lisboa. Além de visar a comercialização dos mais variados produtos produzidos na fábrica, como mantas, capas, mochilas, revestimentos de paredes, a loja serve sobretudo de montra a um produto mais amplo, que engloba todas as vertentes que constituem e definem este “negócio de sucesso”. Mais uma vez, os arquitectos foram convocados para o desenho do espaço, num projecto comercial que pretendeu incorporar o espírito da serra e do burel na baixa lisboeta.

A DEFINIÇÃO DE UM PRODUTO

A escolha da serra da Estrela partiu da sedução pelo lugar. Uma sedução associada a um imaginário explorado pelo turismo e que, através de um entendimento para além do imediato, permitiu detectar uma realidade carenciada. Esse tempo exigiu uma aposta mais complexa, capaz de definir um projecto articulado, assente num desenvolvimento que implica não apenas os visitantes-turistas, mas também a população, a cultura, o conhecimento e a técnica locais. A serra não é simplesmente um suporte onde instalar um programa. O programa nasce das suas próprias características e recursos, a partir de um olhar atento que os aproveita e leva ao limite, conformando um produto muito mais completo.

O produto não é a arquitectura. O produto é o turismo, ou é a indústria. E também não é um produto claramente definido. É um produto que se vai definindo. Mas a arquitectura faz parte desse produto. E os clientes têm uma consciência muito forte disso, tanto que eles também são projectistas da arquitectura. Acabam por ter uma importância na definição da arquitectura enquanto forma, muito mais do que pensaríamos à primeira vista. Aprendemos com eles que o cliente, o dono de obra, faz parte do processo. Isto é um cliché, obviamente, mas faz parte do processo como faz parte uma preexistência ou um regulamento. Portanto, nós aprendemos com eles e até acabamos por usar essa ginástica noutros projectos.

 

Com alguma astúcia e destreza, a arquitectura pode fazer parte de uma estratégia de negócio, adaptando-se à medida que o produto se vai definindo, tendo disponibilidade para esperar, corrigir, acrescentar e, inclusivamente, para propor novos programas. O arquitecto configura-se então como um mediador que permite valorizar o próprio produto nas suas diferentes valências. Ao não existir uma resposta fechada do projecto, é a própria definição do produto, enquanto arquitectura, que é questionada e determinada ao longo do processo. Uma arquitectura que incorpora o tempo e a incerteza, não como premissa mas como ferramenta.

Este artigo foi publicado no J-A 249, Jan — Abr 2014, p. 260-271.

 

 

A Casa das Penhas Douradas foi projectada e construída de forma faseada ao longo de mais de dez anos. Inicialmente, a Pensão Estrela condicionou o projecto na sua dimensão e volumetria. Numa primeira fase, o projecto contemplou nove quartos e espaços comuns distribuídos pelo antigo edifício. Numa segunda fase, fez-se um acrescento para uma piscina coberta. Numa terceira fase, duplicou-se o número de quartos para dezoito com um volume à cota superior articulado com o novo acesso e estacionamento. Construiu-se também um spa enterrado junto à piscina e acrescentou-se um novo volume ao corpo da antiga pensão com um programa de apoio ao restaurante no piso térreo e à casa dos clientes no primeiro piso. Esta última fase correspondeu à mudança de categoria de turismo rural para hotel.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 
CASA DAS PENHAS DOURADAS
Localização
Penhas Douradas,
Manteigas
1.ª fase
Projecto 2001-2004
Conclusão 2006
2.ª fase
Projecto 2008-2009
Conclusão 2010
Dono de Obra
Isabel Costa e
João Tomás
Arquitectura
e Coordenação

Pedro Brígida e
Alice Santiago Faria
Engenharias
A235 Engenharia e Consultoria, Lda. (1.ª fase)
EC+A projectos, Lda. (2.ª fase)
Área do Lote
4034 m2
Área Bruta de Construção
1418 m2
Construtor
Construtor local
(1.ª fase)
A. Baptista de Almeida, SA
(2.ª fase)

SARNADAS
Localização
Sarnadas, Covilhã
Projecto-base
2004
Dono de Obra
Isabel Costa e João Tomás
Arquitectura e Coordenação
Pedro Brígida e Alice Santiago Faria
Engenharias
Engialbi
Área do Lote
51 203 m2
Área Bruta de Construção
309 m2
LOJA DA BUREL
Localização
Chiado, Lisboa
Projecto
2012
Conclusão da Obra
2012
Dono de Obra
Isabel Costa e
João Tomás
Arquitectura e Coordenação
Pedro Brígida e
Alice Santiago Faria
Área Bruta de Construção
150 m2
Construtor
Administração Directa
Carpintaria Oliveira Sécio
BUREL FACTORY
Localização
Bairro dos Amieiros
Verdes, Manteigas
Projecto
2012-2013 (1.ª fase)
Dono de Obra
Isabel Costa e
João Tomás
Arquitectura e Coordenação
Pedro Brígida e
Alice Santiago Faria
Engenharias
Simétrica Aresta, Lda.
Área de Implantação
3900 m2
Área de Intervenção
5600 m2
Construtor
Simétrica Aresta, Lda.