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Ernst Neufert, Bugnaux-sur-Rolle, Suíça, Fotografia: Karl Hugo Schmölz / Hatje Cantz



Tiago P. Borges

MIGALHAS

A casa de Ernst Neufert em Bugnaux-sur-Rolle

“Eu quero comer um pedaço do telhado e tu, Gretel, podes comer da janela, que é doce.” Hänsel subiu lá acima e tirou um pedaço do telhado para o provar e ver a que sabia, enquanto Gretel se apoiou na janela e começou a mordiscar os vidros.

Jakob e Wilhelm Grimm, Hänsel e Gretel

No conto dos irmãos Grimm, a madrasta de uma família pobre planeia abandonar os irmãos Hänsel e Gretel durante um passeio pela floresta. Hänsel, ao descobrir os planos da madrasta, vai deixando cair migalhas de pão pelo caminho, na esperança de mais tarde conseguir regressar a casa; porém, não contava que os pássaros lhe petiscassem o trilho semeado, condenando o regresso ao fracasso. Perdidas na floresta, as duas crianças descobrem uma outra casa, feita de chocolate e guloseimas, que, famintas, começam a devorar, e a história tem um final feliz.

Por um outro caminho, entre Genebra e Lausanne, são poucas as “migalhas” que nos permitem descobrir uma obra peculiar de Ernst Neufert, um arquitecto cujo nome é por demais conhecido. É preciso sair da estrada principal, ziguezaguear por entre colinas entalhadas de videiras, para chegar a um bosque, ao norte de Bugnaux-sur-Rolle, onde o arquitecto concebeu uma casa para a sua família, que construiu em 1963 e onde veio a falecer 23 anos mais tarde.

Neufert é um nome familiar a muitas gerações de arquitectos, graças ao livro que publicou em 1936, Bauentwurfslehre (na tradução portuguesa A Arte de Projectar em Arquitectura), conhecido simplesmente como “o Neufert”. O livro foi concebido como um repertório exaustivo de informação sobre princípios construtivos, de dimensionamento e de utilização de materiais. A organização concisa e o inventário essencialmente visual transformaram este livro numa ferramenta incontornável no seu género. É nas páginas desta publicação, no capítulo dedicado a casas para terrenos em declive, e apenas nas edições pós-1960, que se encontra a primeira migalha para descobrir a casa em Bugnaux.

Numa edição de 1961 de uma outra publicação da sua autoria – Bauordnungslehre, um manual para a construção racional –, já Neufert tinha deixado outra migalha para os seus leitores. A mesma casa, intitulada Le Croset, foi aí publicada numa versão intermédia do projecto. Num terreno orientado a sul e pousada sobre uma trama de 1,25 por 1,25 metros, a planta desenhava um L, com divisões secundárias a norte e um corredor como charneira de acesso aos compartimentos principais, virados para o lago Leman. A entrada era franca e, depois de atravessar a sala de estar, o desenho da casa oferecia um rasgo visual sobre a paisagem. Hoje, ao chegar a Bugnaux, é fácil perceber que o projecto construído se afastou dessas características iniciais. A casa construída aninha-se indiferente ao muro de pedra que encerra o terreno. Para a rua, apresenta a entrada da garagem que a pala do telhado acentua com drama e despropósito. Sobre o protagonismo deste tipo de programa, numa edição de 1951, Neufert escreveu no seu manual:

A garagem constitui hoje o elemento primordial da casa moderna, ao mesmo nível que a casa de banho.

A afirmação poderia ser um sinal gracioso dos tempos a que o arquitecto se manteve fiel. Mas a timidez do projecto é avessa às deduções, e o espaço que acolhe a chegada à casa contradiz outra das suas afirmações manualísticas:

A entrada determina a fisionomia de uma casa. É lá que o visitante tem a sua primeira impressão, é necessário que tudo seja bem estudado.

À direita da garagem, um percurso estreito permite caminhar ao longo da parede exterior, em tijolo aparente, e desemboca no alpendre de entrada, que resulta de uma segunda excentricidade do telhado. Uma janela estreita, rasgada e elevada, deixa adivinhar que as intenções do primeiro projecto foram preservadas no que toca à distribuição do programa. Na organização da planta compacta que foi finalmente construída, a casa não deixa transparecer o somatório de vários programas relativamente autónomos. Ao nível da rua, desenvolve-se a habitação principal e, no piso inferior, ao nível do jardim, existe um atelier, uma segunda habitação e o estúdio. A planta rectangular resulta da justaposição de um inventário quase exaustivo de funções organizadas em dois pisos, cada uma com repartições claras, transformando o projecto numa sinfonia de portas e paredes que dão razão de ser à legenda dos desenhos. Não há invenção. Há, isso sim, uma fidelidade à proposta normativa da casa:

Uma sucessão das divisões que vão desde a entrada à cozinha, depois à sala de jantar, ao lado da qual está o estúdio, e do qual voltamos ao vestíbulo.

Cada espaço parece responder à rigidez funcional que dele se exige, e a generosidade foi remetida para a vista panorâmica sobre o lago e ao eirado avantajado que abraça a quase totalidade do piso superior. Aliás, este eirado foi um dos elementos preservados do projecto inicial, onde era já a pedra-de-toque da casa. É uma massa construída a partir do parapeito que domina a fachada, que acentua a horizontalidade do volume e contrasta com os grandes envidraçados, desenhados a pensar no lago e na paisagem.

É na cobertura que se observa a mudança radical entre os dois projectos. As lâminas horizontais da cobertura plana dos desenhos de 1961, que acentuavam a presença horizontal do volume, foram substituídas por um telhado de várias águas que se transforma no tema maior da casa. Foi no telhado que Neufert investiu para marcar as entradas com o prolongamento das abas, ao integrar as caleiras salientes e angulares, e ao acentuar os cantos desnecessariamente bicudos. A sua estrutura em betão armado assenta em apenas seis pontos. A performance do telhado também nos remete para outros projectos anteriores de Neufert, como a cantina na fábrica Glaswerke Schott (1951-60) ou a Wasserbauhalle (1954-55), onde o desenho cuidado das coberturas produz ganhos significativos no espaço interior.

Depois de juntar as poucas migalhas que conduziram ao projecto da casa, o telhado gera espanto e perplexidade, tal como a descoberta da casa de chocolate. É o elemento que nos desarma, e o ponto de fuga onde se esgotam as respostas racionais que Neufert ensaiava sistematicamente nos seus edifícios industriais. É ainda o telhado que acaba por trair o anonimato da casa, que, na região, ficou conhecida como “o barco” ou “a casa chinesa”, por evocar influências orientais e exóticas. Se há casas inimigas das palavras, esta é uma delas. Faz-se difícil e sustenta-se em pequenas particularidades. A casa Neufert não é poética. É esquisita.

 

Este texto foi publicado no J-A 251, Set — Dez 2014, p. 502 – 505.

Correspondente em Lausanne

 

Os desenhos da casa em Bugnaux-sur-Rolle estão conservados nos Archiv der Moderne, na Universidade Bauhaus, em Weimar. Em 2014, foi publicada pela editora Hatje Cantz uma monografia do trabalho do arquitecto e do seu filho, com textos de Michael Kasiske, Johannes Kister e Lilian Pfaff.

 

Ernst Neufert (1900-1986) atravessou a história alemã em momentos que tiveram tanto de excitante como de negro. Em 1936, foi autor do maior bestseller da arquitectura do século xx, Bauentwurfslehre, um manual de normas e standards ainda hoje em circulação e traduzido em variadíssimas línguas. Foi um dos primeiros diplomados da Bauhaus, passou pelo atelier de Walter Gropius, onde foi seu braço-direito, e dirigiu o projecto de construção da escola da Bauhaus em Dessau. A partir de 1929, foi professor na escola de arte de Johannes Itten e na Universidade Técnica de Darmstadt. Durante a Segunda Guerra Mundial, desenvolveu soluções de pré-fabricação e standardização para o regime nazi, e o historiador Jean-Louis Cohen destaca a sua colaboração com Albert Speer. Em edições recentes do livro Bauordnungslehre, que publicou com Speer, foram suprimidas plantas de edifícios em forma de cruz suástica e em alguns dos seus prefácios posteriores parece soar um mea culpa. No pós-guerra, continuou a trabalhar no seu atelier e na companhia do seu filho Peter, leccionando em Darmstadt até à sua reforma, em 1965.

Para uma biografia detalhada ver www.bauhaus-online.de/ atlas/personen/ernst-neufert