MARIANA PESTANA

Veneza Lusófona

Assiste-se hoje à emergência de novos modelos no que diz respeito à prática da arquitectura. A noção de obra, bem como a posição e legitimidade do seu criador, está a ser questionada por arquitectos que abrem novos caminhos e reinventam a sua profissão. A ideia do arquitecto-autor que concebe e constrói grandes obras está a dar lugar a outras noções de prática arquitectónica que compreendem trabalhos multi-autorais e transdisciplinares. Este debate surgiu em muitas conversas, porque em poucas paredes e plintos, durante a décima terceira edição da Bienal de Arquitectura de Veneza, que aconteceu em 2012 sob a direcção do arquitecto David Chipperfield.

‘UMA OPORTUNIDADE FALHADA’

“Common Ground” (território comum) foi o tema eleito para esta edição da Bienal de Veneza, propondo uma abordagem à arquitectura enquanto disciplina eminentemente social. Território comum, segundo David Chipperfield, é um termo que se abre a duas interpretações possíveis: é a colaboração inerente ao exercício da profissão da arquitectura, mas é igualmente a partilha do espaço público enquanto espaço colectivo. Segundo Chipperfield, é urgente considerar o contexto de colapso financeiro em que vivemos e, como tal, importa falar de arquitectos; mas também de cultura arquitectónica. O seu objectivo era afinal, “tirar os arquitectos do pedestal”. No entanto, a Bienal de Veneza fez-se a partir de um elenco de arquitectos maioritariamente “ocidentais” e revestiu-se de imagens e objectos que testemunham um modelo de arquitectura assente numa economia neoliberal, valorizando a obra de autor. O território comum situou-se sobretudo dentro da própria disciplina da arquitectura, num exercício auto-referencial hermético. E quando saiu desse território, o discurso foi relativamente previsível, silencioso, consensual. Falou-se sobretudo de edificado, da sua complexidade e estética; falou-se de arquitectura, mas não se questionaram os pedestais. Michael Kimmelman, crítico de arquitectura no The New York Times, considerou esta Bienal “uma oportunidade falhada”. Mas houve excepções. Algumas vieram das chamadas “economias emergentes” e agitaram o debate acerca das consequências que as mutações económicas globais têm, ou podem ter, na prática da arquitectura. Uma delas veio de Angola e propôs, como Jean-Luc Godard, não mudar nada para que tudo seja diferente.

‘MUDAR TUDO SEM MUDAR NADA’

No título de capa da revista Monocle de Outubro de 2012 podia ler-se: “Geração Lusofonia: porque é que o português é nova língua do poder e dos negócios?” A pergunta é pertinente e encontra resposta sobretudo no Brasil e em Angola. Ao mesmo tempo que a língua portuguesa se unifica e se torna estratégica, Angola tem adquirido consciência da importância da sua imagem e tem investido, nomeadamente, na exportação da sua cultura. Pela primeira vez na história desta Bienal – a mais relevante mostra de arquitectura do mundo –, a República de Angola fez-se representar com um pavilhão, sob o título Beyond Entropy Angola. Com a chancela do Ministério da Cultura da República de Angola, o pavilhão foi a única representação de países da África subsariana. A instalação ensaiou uma alternativa radical ao programa urbanístico angolano actual, um modelo proposto pelos comissários que pode ser aplicado a várias cidades africanas num futuro próximo.

Na ilha frontal à Praça de São Marcos, junto à célebre Igreja de San Giorgio Maggiore, obra de Andrea Palladio, a exposição Beyond Entropy Angola apresentou numa instalação o que Veneza revela na sua geografia: a possibilidade de a paisagem urbana se configurar através da manipulação da natureza. Beyond Entropy Angola é um projecto forte porque desarma o álibi que tem vindo a justificar a política de tabula rasa característica do urbanismo angolano nos últimos tempos. Afinal, não é preciso destruir nem construir tudo de novo, as condições de vida podem melhorar preservando os bairros a partir da sua matriz actual. Como explicam os comissários Stefano Rabolli Pansera e Paula Nascimento, a proposta apresentada na exposição consiste em ocupar os espaços intersticiais entre as casas de Cazenga, em Luanda, com uma espécie de cana muito vulgar, a Arundo donax. Esta cana, apesar de comum – pode ser encontrada junto a qualquer riacho –, tem propriedades incríveis: cresce muito rapidamente (em condições ideais cresce cerca de um metro por mês), filtra a água suja através das raízes, que funcionam como filtro natural, é a planta na natureza que absorve a maior quantidade de CO2 e permite a produção de electricidade através de biomassa. A ideia é plantar um jardim que, simultaneamente, funcione como infra-estrutura, permitindo que bairros de elevada densidade horizontal e com graves problemas de saneamento – como é o caso de Cazenga, mas também de muitos outros bairros ou cidades africanas – não precisem forçosamente de ser destruídos, e que, em vez disso, se transformem a partir daquilo que são.

Debaixo do calor de Veneza entrava-se num edifício austero para encontrar uma selva verde e fresca, um labirinto de canas que materializava uma abordagem bem distante dos plintos e maquetas que invadiam o Arsenal. A instalação representava um segmento de Cazenga à escala real, em que os edifícios foram deixados vazios e os espaços entre eles ocupados com plantações de Arundo donax. A exposição incluiu ainda uma conferência com o objectivo de discutir a implementação deste projecto em Luanda, as suas implicações económicas e políticas, a viabilidade do modelo de saneamento e as suas consequências sociais. Nesta exposição discutiu-se a legitimidade de impor uma transformação da cidade que rompa fluxos e dinâmicas dos seus habitantes, e propôs-se uma solução ad hoc que respeite e assegure dinâmicas em curso. Por exemplo, em Cazenga o lugar do trabalho e o lugar de residência constituem muitas vezes o mesmo espaço, o que significa que a economia local está muito enraizada na própria morfologia do bairro, e que a transferência de populações para outros lugares rompe os seus modos de subsistência e as suas dinâmicas sociais.

O pavilhão angolano foi original porque, ao invés de representar um projecto acabado, optou por mostrar um processo em construção. Foi importante porque abriu a discussão acerca da cidade aos verdadeiros protagonistas do seu futuro: arquitectos, engenheiros, mas também cientistas, políticos e empresários. Distinguiu-se por apresentar o arquitecto como um agente activo: não mostrou como os arquitectos sobrevivem no actual contexto de crise económica, nem sequer como podem colaborar e adaptar-se a novas realidades económicas, mas ilustrou o papel que podem desempenhar na transformação dessas realidades. Daí a eficiência da expressão “mudar tudo sem mudar nada” que Stefano Pansera utilizou para explicar a ambição do pavilhão.

 

O Leão de Ouro de carreira desta edição da Bienal foi atribuído a Álvaro Siza, que além de apresentar uma exposição monográfica, construiu uma instalação no Giardino delle Vergini, no Arsenale. Também Eduardo Souto de Moura e Aires Mateus construíram peças escultóricas naquele jardim. Houve ainda a representação portuguesa através da exposição “Lisbon Ground” comissariada por Inês Lobo, e um pavilhão brasileiro, comissariado por Lauro Cavalcanti; o arquitecto Paulo Mendes da Rocha deu o mote para a apresentação da dupla irlandesa Grafton Architects, os arquitectos portugueses Atelier Mob foram distinguidos com o prémio Future Cities e uma equipa coordenada por João Segurado venceu um concurso promovido pela Architecture for Humanity, com o projecto Ocean & Coastline Observatory. E seguramente houve mais lusofonia a contaminar Veneza, uma presença que dá notícia da relevância económica, cultural e política a que o discurso arquitectónico em português pode aspirar. O Conselho Internacional dos Arquitectos de Língua Portuguesa (CIALP) parece vir configurar a oportunidade para uma discussão ampla em torno do papel da arquitectura no contexto da lusofonia. Os desafios específicos a este espaço lusófono certamente induzirão a defesa de uma arquitectura plural, que não se reduz a ilustrar essa especificidade, antes a agita, lhe reage e cria contrapropostas.

 

Este artigo foi publicado no J-A 246, Jan — Abr 2013, p. 60-61.

Beyond Entropy Angola / Pavilhão da República de Angola / 13.ª Exposição Internacional de Arquitetura, la Biennale di Venezia / Curadoria: de Stefano Rabolli Pansera e Paula Nascimento / Local: Veneza, Sala Carnelutti, Ilha de San Giorgio Maggiore / 29 Agosto – 25 Novembro 2012