Sobre as formas de fazer estradas e as coisas que nos escapam
Um dos males que afligem o quotidiano pode ser atribuído às concessões rodoviárias que povoaram a nossa paisagem com auto-estradas; foram processos de construção que transformaram profundamente os modos de operar no território. Uma breve análise dos mais recentes contratos de concessão revela procedimentos altamente sofisticados e blindados à participação de muitos agentes potencialmente interessados nos processos de construção de estradas. As concessões têm implícita uma estratégia de neutralização dos agentes responsáveis pela transformação do território, e o resultado são formas de produção de paisagem profundamente discutíveis. A neutralização dos agentes faz-se recorrendo, por exemplo, a uma parafernália documental altamente especializada, produzida ou dominada pelos consórcios, nomeadamente a legislação sobre Parcerias Público Privadas, Estudos de Viabilidade Económica, Cadernos de Encargos de Concessões Rodoviárias e Estudos de Impacto Ambiental. Há apenas que garantir o máximo de opacidade processual dentro da máxima transparência burocrática. Nesse processo, oblitera-se a forma da construção e o resultado efectivo da transformação física da paisagem.
Em modo de apologia tecnocrática, o Estado confia que as concessões possuem mecanismos de auto-regulação que se traduzem em estudos de impacto ambiental e análises comparadas capazes assegurar os níveis de qualidade. Os contratos de concessão inscrevem-se em equações complexas e com uma imensidão de parâmetros tal que se transformam em “pacotes” impenetráveis. Assim, conseguem, sub-repticiamente, ser omissos no que se refere à apresentação da circunstância territorial e das soluções espaciais que preconizam. Essa omissão torna claro que, nas equipas disciplinarmente alargadas criadas para manipular essa complexidade, os arquitectos não têm papel de coordenação nem tão-pouco a missão de alcançar sínteses. É essa vastidão disciplinar e riqueza curricular que confere às equipas a aura legitimadora capaz de viabilizar novas estradas. É essa aura que, depois de páginas e páginas de impenetráveis análises comparativas, previsões, inquéritos e deduções, permite a produção dos mais diversos e discutíveis artefactos que povoam a paisagem.
A prestação do serviço público implícito a cada novo contrato de concessão envolve sistematicamente valores colossais. Numa lógica de aproveitamento de sinergias, esses investimentos deveriam prever – como na inserção dos metropolitanos de superfície – valores para a requalificação urbana dos territórios densamente povoados que atravessam. Mas não está. No troço da A41 integrado na Concessão Douro Litoral, os critérios de projecto relativos à integração do traçado foram considerados no ponto 32.5 do Contrato, onde se lê:
… a integração da Auto-Estrada na paisagem e o seu enquadramento adaptado à região que atravessa serão objecto de projectos especializados que contemplem a implantação do traçado, a modulação dos taludes e o revestimento, as margens, o separador e as áreas de serviço.
Um projecto para cada assunto e uma visão compartimentada, alimentada por quem tem dificuldade em perceber o que um painel acústico pode ter a ver com o tratamento de um talude. A forma como os consórcios consideram a integração territorial está patente nas subtis variações cromáticas dos painéis acústicos, nos painéis alusivos ao património natural ou edificado (que, por exemplo, ao chegar a Lisboa pela antiga CREL e actual A9, alertam para a chegada a uma terra de dinossauros). A possibilidade de desenvolvimento de um projecto atento a cada contexto parece ser inconciliável com um sistema de concessões que tomou conta de muitas estradas e, consequentemente, de grande parte do território.
Vejamos um exemplo: a Concessão Douro Litoral integra não apenas tramos das auto-estradas A32, A41, A43, mas também o tramo Ameal/Leça da Balio da EN14 e vários tramos da Via de Cintura Interna do Porto (VCI). São vias urbanas em constante transformação, que deixaram de ser reguladas e geridas por quem é democraticamente eleito para gerir a cidade. Nos próximos 27 anos, de cada vez que o município do Porto pretender actuar na VCI, terá de se haver com a Auto-Estradas do Douro Litoral S.A., com sede em Castelo de Paiva. Em sentido contrário, de cada vez que a empresa pretender actuar sobre a VCI, poucas informações sobre a solução a preconizar tem de prestar ao município. Este processo explica que, já depois de se verificarem os perigos e conflitos de um traçado de alta velocidade através de um centro urbano, pouco mais se faça para qualificar esse espaço além da instalação de painéis acústicos idênticos aos de qualquer outra auto-estrada, com ou sem dinossauros.
No processo de definição do traçado da A32, um dos actores foi a empresa Amb&Veritas. No Resumo Não Técnico do Estudo de Impacto Ambiental conclui que “a não construção do projecto se mostra mais problemática do que a sua construção, uma vez que as actuais condições da EN1/IC2 não garantem segurança para os utilizadores”. A segurança determinou as conclusões a retirar de um estudo de impacto ambiental, e as soluções de traçado ponderadas – A+A1+A+A2, A+AB+B+B a B+B1 e a B+BA+A+A1+A+A2 – foram organizadas segundo as “mais prejudiciais e as menos penalizantes”. Na página 28 do Resumo, referente aos Elementos Afectados pelo Projecto, as conclusões dizem muito sobre as virtudes dos processos de auto-regulação:
A adaptação à nova realidade depende principalmente das atitudes que as pessoas têm face ao projecto. Se as pessoas acham que o projecto é bom e vai contribuir para o desenvolvimento do país e da região, o processo de adaptação destas pessoas faz-se de forma fácil e sem complicações. Já nos casos em que as pessoas não associam quaisquer benefícios ao projecto, estas vão focar-se nos problemas associados à fase de obra (como o ruído, as poeiras, a lama, a degradação das vias), e vão demorar mais tempo a adaptar-se à situação, podendo vir a aumentar os seus estados de ansiedade habituais.
O aumento do “estado de ansiedade” do cidadão que se depara com uma nova auto-estrada à sua porta faz sentido. Mesmo que tenha sido chamado a participar no processo de discussão, o seu parecer suporta-se na escala 1:25 000 e limita-se às opções de traçado e aos respectivos nós de articulação. A sua participação faz-se sem que exista uma prefiguração das transformações dos espaços; a descoberta dos novos espaços do seu quotidiano faz-se com o avançar da obra.
Os novos espaços resultam de sofisticados softwares, programados para, através do recurso a um conjunto muito reduzido de soluções técnicas, responderem ao caderno de encargos, minimizando o custo de obra. São condições que, por exemplo, têm imposto aos novos traçados um saldo nulo entre aterros e desaterros. Isto traduz-se na frequência com que se alteram e interrompem as condições topográficas de base, aterrando as cotas mais baixas (vales e respectivas linhas de água) e seccionando as cotas mais elevadas (colinas e cumeeiras). É também este procedimento que explica que o nó de acesso de Nogueira da Regedoura à A41 tenha movimentado 70 mil metros cúbicos de terra e implicado 1400 trajectos de camião.
Em nenhum momento são oferecidas antevisões das formas do que está para vir. Aliás, é provável que, quando se começa a construir um nó de auto-estrada desta natureza, nem mesmo o consórcio conheça a sua forma final. A divisão e a compartimentação dos projectos numa imensidão de especialidades acabam por, paradoxalmente, fazer desaparecer o projecto e a sua compreensão face ao contexto que está a transformar. Perante a complexidade do território e dos objectos infra-estruturais, a ausência de prefigurações de projecto inscreve-se na estratégia de escudar as intervenções e blindar os contratos. Os traçados das novas estradas e as suas obras de arte são embebidos na parafernália documental, desaparecem até ao dia em que tomam conta da paisagem.
Se a qualidade de execução das novas estradas for tão competente como a qualidade da sua concepção, não tardará a ser necessário intervir na sua requalificação. Nesse momento, os arquitectos terão de saber imiscuir-se nos processos de legitimação e transformação da paisagem, e fazer valer o seu saber não especializado. Talvez assim se possa reconquistar a democracia num território que foi entregue à autoridade de consórcios, com centros de decisão difusos e lógicas económicas cada vez mais incógnitas.
Este texto foi publicado no J-A 252, Jan–Abr 2015, p. 578–581.
|