A parafernália e o ‘design’ do espaço público
Em desenvolvimento pelo pelouro da Mobilidade do município de Lisboa, o projecto “Zona 30” é enunciado com referência a uma carta das Nações Unidas de 2007, sob a premissa de que “uma cidade segura é uma cidade justa”. Os objectivos do projecto são reduzir a velocidade de circulação automóvel no interior da cidade, reduzir a poluição sonora e ambiental e garantir mais segurança rodoviária. Na sequência de experiências já realizadas noutras cidades europeias, Lisboa prepara-se para aderir ao projecto “Zona 30” e, assim, ser também “mais europeia”. Com tótemes e pórticos, calçadas e pavimentos coloridos, pretende-se construir “a consciência colectiva de cidadania”, “uma cidade de bairros”. Como? Com o “banco-flor 30”, o “moinho 30”, a “porta de entrada 30”, o “mobiliário-alegria 30”, a “escultura-beijo 30”. Para enfeitar as ruas da cidade, Rui A. Pereira, designer da Câmara Municipal, concebeu vários bonecos e bancos-pétala (felicidade!), objectos que evocam peluches de porta-chaves imaginando que assim é possível designar o espaço público como “um mundo de alegria 30”. Os 14 painéis expositivos que apresentam o projecto, patentes no Edifício Municipal do Campo Grande, juntamente com maquetas e com o filme didáctico A Rua É de Todos, revelam uma grande confusão entre objectivos, palavras, conceitos, imagens, desenhos. Sobretudo, denotam um grande equívoco relativamente ao papel da arquitectura na configuração do espaço público e da cidade. Não nos podemos escusar de confrontar os responsáveis por esta operação, antes que “um mundo de sonho e alegria” apareça à nossa porta sob a forma de identidade bairrista reencontrada.
O espaço público e o “Espírito 30”
Um mundo divertido de sonho e de alegria é o mote que estrutura a comunicação do projecto. Pretende-se que a população de Lisboa entre no “espírito 30”, e para tal reuniu-se uma série de “conceitos” de “cidadania activa” com vista a nortear o desenho de “um espaço vivencial e humanizado” a ser instalado em 28 bairros da cidade de Lisboa, da Encarnação a Telheiras. Segundo o diagrama apresentado, metade dos bairros já tem o projecto concluído. Nesta proposta, à semelhança de outras que se dirigem ao espaço colectivo, transformam-se palavras de ordem, que correspondem a benefícios desejados, em “conceitos” e “imagens”, que, de uma penada, são apresentados como auto-explicativos e com soluções inexoráveis. O que agride um observador atento é a falta de coerência entre a descrição de objectivos, “conceitos” e outras expressões entre aspas e o desenho em que se traduzem construtivamente. Numa primeira leitura, a implantação e as características construtivas do projecto são de tal forma inusitadas que a atenção ao detalhe apenas agudiza a perplexidade. Como explicar que um objectivo claro e simples se traduza numa parafernália de “espectáculo policromático” com “um conjunto de objectos estéticos, design/artísticos”? Leiam-se estes dois parágrafos dos painéis expositivos do projecto:
Pretende-se que a imagem – um mundo divertido de sonho e alegria – como elemento fundamental de comunicação, entre no espírito “30”: uma zona diferente, a nossa casa, onde o peão convive, em segurança, com o carro – e as pessoas têm total prioridade. Estamos pois a falar de qualidade de vida o principal objectivo –, promovendo um traçado urbano ajustado para os peões, como medida de acalmia de tráfego que melhoram o ambiente; reduzindo o tráfego de atravessamento e da velocidade de circulação, diminuindo assim, inclusive, a poluição sonora e atmosférica. Ao promover-se a segurança rodoviária está-se de facto, a potenciar a convivência salutar entre peões e tráfego automóvel.
Este objecto escultórico (Escultura Moinho30) é determinado por uma cadência formal construtiva – o contacto circular, pétala a pétala, gera um elo dinâmico de seis elementos que se multiplicam em crescendo, do centro para fora. O motivo constitutivo da flor 30, que é simbolicamente também um moinho de vento, dimana da conexão dos elementos pétala. Podemos naturalmente afirmar que esta peça insinua identidades diversas, e que as mesmas vão desde a simples flor, com o seu caule ascendente, ao moinho de vento com duas hélices giratórias, que integram ainda a flor. Estes elementos giratórios representam também, em si, por analogia, o aproveitamento da energia cinética contida no vento e que, através da rotação das pás/das pétalas, fabrica energia mecânica que poderá ser transformada em energia eléctrica…
O horror ao vazio e a desejada mobilidade
A motivação de melhorar a mobilidade rodoviária e qualificar o ambiente urbano, nesta como noutras iniciativas deste género, é refém de modelos que assentam essencialmente em suprimir o “vazio”. Ao contrário do que pretendem afirmar as estratégias de comunicação deste projecto, preencher o espaço público, atestá-lo com sinalética, postes e objectos metafóricos, não faz mais que reduzir a percepção do espaço colectivo como espaço habitável. A articulação de palavras na construção de narrativas assentes em pré-conceitos e preconceitos simplistas termina no próprio projecto. As formas propostas limitam-se a traduzir literalmente a pétala de uma flor em mobiliário urbano, na expectativa de materializar uma felicidade abstracta e uma cidadania activa.
Em conversa com o vereador Nunes da Silva, verificou-se ter existido um longo processo de execução dos projectos, com audições em que participaram associações de moradores e juntas de freguesia, e em que estiveram envolvidos inicialmente os pelouros da Mobilidade, do Urbanismo e dos Espaços Verdes. Em foco estiveram não só as qualidades físicas das operações sobre o pavimento, a superfície, mas também as infra-estruturas. “O desenho da rua para novos comportamentos”, como referiu o vereador, parecia bem encaminhado, até o orçamento de 600 mil euros por bairro ter obrigado a rever o processo. E aqui o design e o marketing entraram em força, talvez com algum exagero, como refere Nunes da Silva, para tornar mais visível o programa de acção “Zona 30”. Neste momento, pesados os condicionamentos orçamentais, a empreitada por bairro está calculada entre os 100 e os 150 mil euros. Agora sem árvores, sem espaços ajardinados e sem reperfilamentos das ruas, com o início da execução prevista para Abril 2013 e uma expectativa de conclusão para Setembro de 2013, apenas constam para execução o nivelamento das passadeiras com os passeios, os tótemes, os pórticos e as esculturas 30 (reduzidas a três exemplares).
Com uma noção mais aproximada do processo e das dificuldades que contribuíram para suprimir dos projectos iniciais alguns componentes, torna-se evidente o efeito nefasto do enfoque que a exposição dá aos objectos, que mais se assemelham a parasitas dos objectivos do projecto. Anulando o trabalho de investigação produzido por um conjunto transversal de técnicos sob a direcção do Núcleo de Acessibilidade Pedonal do pelouro da Mobilidade, o marketing apenas contribuiu para vedar a possibilidade de reconhecimento do que chegou a ser a verdadeira matéria destas propostas: o tratamento, escolha e ligação dos pavimentos, acerto de cotas e alinhamentos, drenagens e circulações, como peças da máquina-cidade. Independentemente da acção política que impulsiona a transformação da cidade, as formas de intervenção são dominadas por técnicas de comunicação equívocas e, nesse processo, perde-se a consciência do que é, de facto, a cidade. Quem é que ainda tem medo de ver na organização da cidade uma complexa e bela máquina de habitar?
As figuras do espaço de circulação e o conjunto de elementos que configuram a relação entre caminho, estadia, atravessamento, conexões, inscrições e manipulações topográficas são noções específicas que, entre o visível e o invisível, permitem reconhecer no desenho do “espaço livre” e no “desenho do chão” matéria fundamental na “arquitectura da cidade”, como o grande solo comum. Plantar objectos, como se anuncia, é provavelmente a antítese do que pode ser um trabalho sério de organização, limpeza e desobstrução que, a partir de um qualquer projecto “30”, possa ser motivo de clarificação de uma topografia de espaços em continuidade. Sabemos por experiência que construir mal ou construir bem consome praticamente os mesmos recursos. Uma ambição clara e uma qualificação necessária, como a reorganização da circulação automóvel e pedonal, não tem de se transformar num espectáculo de pasmar.
Este artigo foi publicado no J-A 247, Mai — Ago 2013, p. 152-155.
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“Lisboa, uma cidade de bairros. A imagem ‘zona 30’ deverá caminhar, naturalmente, neste sentido: um espaço vivencial humanizado. Partindo deste pressuposto Lisboa, uma cidade de bairros, coexiste com um todo aprazível, onde cabem todos sem distinção de qualquer espécie. A rua é de todos – é o assumir que toda a orgânica urbana envolvente deve ter como sua génese as pessoas. O Município ao desenvolver este projecto está a criar condições objectivas para estimular uma consciência colectiva de cidadania. E o morador ao relacionar-se com o seu bairro, em contiguidade com a sua casa, está a adoptar o conceito ‘zona 30’: O Totem / Sinalização de entrada e saída do bairro; A designação de um espaço habitado, os seus lugares – as ruas, jardins, escolas –, os espaços de diálogo de uma vida quotidiana, que se deseja melhorar.”
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“Este projecto de intervenção no espaço público, ao nível da mobilidade urbana, pretende, de algum modo, abordar esta problemática na extensão das nossas faculdades sensoriais. O objectivo é o despertar o cidadão comum, todos nós, individualmente e em colectivo, para a necessidade da participação em cidadania. O espaço público não é indiferente a este conceito e como tal deve ser encarado como um bem comum comunicativo: pôr a mexer os sentidos para as pequenas coisas da vida – uma flor, o ritmo de acalmia da vida dos bairros 30, o viver em segurança e disponível para fruir, acolher, a identidade do nosso lugar. As intervenções previstas apontam, todas elas, em concordância com esta ideia, para a consideração desejada de que ‘a rua é de todos’. Neste sentido pretende-se que juntos, no dia-a-dia, pedagogicamente, possamos construir um lugar melhor. Criou-se assim uma imagem de comunicação transmissora de valores expressivos e algo humanizantes – o espectáculo policromático de conjunto é claro porque, em primeira linha, se pretende transmitir, em alegria – num espaço urbano onde possamos coexistir –, um imaginário visual que nos projecte para um futuro, respeitando e valorizando a diversidade geográfica cultural e social de Lisboa.”
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