‘TUDO FEITO COM O MARTELO’
A Casa da Cultura de Pinhel Considerem-se os prazeres da destruição de edifícios. Quaisquer que sejam os esforços prodigiosos para erigir arquitectura, a arte de provocar o seu desaparecimento pode ser igualmente violenta, atractiva ou gratificante. A Casa da Cultura de Pinhel foi inaugurada em Agosto de 2014, após uma primeira etapa de reabilitação do antigo Paço Episcopal. Trata-se de uma obra construída em 1783 que foi tendo outros usos ao longo do tempo: quartel militar, quartel da Guarda Nacional Republicana, esquadra da Polícia de Segurança Pública, externato e liceu, residência de estudantes e sede de empresas municipais. A acomodação de sucessivas funções foi desfigurando o edifício, provocando certas incongruências na sua ordem espacial e material. A recente intervenção, com projecto do colectivo depA, propõe inverter esse processo de descaracterização. Perante a oportunidade de acrescentar outra camada ao enredo arquitectónico, o projecto preferiu dar um passo atrás. Ao invés de construir, a proposta consistiu em subtrair elementos que alteraram o edifício original (paredes de tijolo, revestimentos cerâmicos, ornamentos), destruindo para valorizar e deixar emergir as suas características fundamentais (fachada, escadaria monumental, clareza estrutural). “Foi tudo feito com o martelo”, resumem os autores. UMA OPORTUNIDADE O colectivo depA formou-se no Porto em 2009 e é constituído por Carlos Azevedo, Carlos M. Guimarães, Luís Sobral e João Crisóstomo, todos formados na Universidade de Coimbra. Paralelamente ao trabalho de colaboração em diversos ateliers, os quatro companheiros procuravam uma plataforma de reflexão e prática de arquitectura. As suas aspirações foram-se traduzindo numa multiplicidade de projectos, que incluiu o primeiro lugar no concurso público para o Museo de Arte Contemporáneo Santiago Ydáñez (2010, obra não realizada) e a organização de diversos workshops e exposições. Actualmente, o depA é uma jovem empresa incubada no Pólo das Indústrias Criativas do Parque de Ciência e Tecnologia da Universidade do Porto (PINC-UPTEC), o que potencia o contacto com profissionais de várias áreas – “uma rede de autoconfiança”, como referem. Em Outubro de 2012 foram oradores num colóquio sobre museologia em Pinhel (de onde Luís Sobral é natural), e aproveitaram a ocasião para mostrar bons e maus exemplos de edifícios icónicos, alguns considerados “elefantes brancos”, desadequados e insustentáveis nos tempos que correm. Apresentaram também alguns casos de edifícios desocupados em Portugal, potencialmente interessantes para acolher programas culturais. No final da apresentação, a autarquia deu-lhes a conhecer a sua vontade de adaptar o Paço Episcopal, abrindo caminho para a encomenda deste projecto. FAZER CIDADE Pinhel tem o estatuto de cidade desde 1770, mas actualmente tem apenas 3500 habitantes. A maioria dos jovens que parte para estudar ou trabalhar fora não regressa. Por outro lado, Pinhel insere-se na Rota do Vale do Côa, que atrai à cidade um número elevado de visitantes. A Casa da Cultura pretende ser um novo pólo de atracção regional, fortalecendo quer a dinâmica urbana local, quer a rede alargada de monumentos, lugares históricos e novos equipamentos (como o Museu de Arte e Arqueologia do Vale do Côa). A vocação do edifício é também educativa. A intervenção agora concluída permitiu instalar no primeiro piso o Museu Mestre José Manuel Soares, que se espera ser capaz de atrair visitas escolares de todo o país (as obras expostas representam episódios da história de Portugal, temática que o artista ilustrava em manuais escolares, sobretudo antes do 25 de Abril). Está em fase de projecto uma outra etapa, que consistirá na instalação, nos pisos inferiores, do Museu da Cidade e da Biblioteca Municipal, bem como na acomodação de uma galeria para exposições temporárias e salão de chá na antiga cozinha episcopal. A proximidade da Academia de Música (um edifício municipal já reabilitado), do Parque Municipal da Trincheira (actualmente pouco permeável a partir daquele ponto da cidade) e de uma antiga fábrica (para a qual há uma expectativa de intervenção) pede que a intervenção no Paço Episcopal seja capaz de mobilizar possibilidades de articulação urbana. “Não basta ter um centro cultural, é preciso criar dinâmicas que o tornem sustentável”, notam os autores. A INTERVENÇÃO Se compararmos os resultados de valorização do património municipal e o leque de público potencial que a obra beneficia, o investimento da Câmara Municipal nesta obra foi indubitavelmente modesto. Além disso, a obra foi construída em tempo recorde. O projecto de execução finalizou-se em Março de 2014 e o concurso de empreitada foi lançado de imediato. As limpezas e demolições começaram em Junho e a inauguração teve lugar em Agosto. Perante os prazos aparentemente impossíveis, a solução de projecto admitiu uma certa dose de improviso. Como confessam os autores, “o tom de cinzento do pavimento, dos reforços estruturais metálicos, das portadas transformadas em bancos e dos cabos dos candeeiros foi o único comum a todos os fornecedores que estava disponível em Agosto”. O orçamento contratado para a recuperação do pátio exterior (306 m2) e do primeiro piso do edifício (1040 m2) foi de 149 mil euros, ou seja, um custo médio de 110 euros por metro quadrado. Este custo aumentou porque, no decorrer da obra, foi decidido trocar caixilharias e colocar iluminação exterior, levando a um investimento complementar de 135 mil euros. Ainda assim, é assinalavelmente baixo para a qualidade da obra construída. Em entrevista ao jornal Pinhel Falcão, Luís Sobral afirmava: Desenvolver um projecto de custos controlados passa, no nosso ponto de vista, pelo desenvolvimento de soluções de excepção e não apenas pelo uso de materiais de custos reduzidos que, por vezes, se traduzem numa inferior qualidade da obra. Com este pensamento, foi adoptada uma estratégia de subtracção e clarificação de elementos. Na fachada, removeram-se cabos eléctricos e outros apetrechos dispostos arbitrariamente. No pátio, ponto de convergência das diferentes partes do programa, as entradas no edifício são hierarquizadas pela disposição em cruz dos acessos rampeados, cortando o pátio de um modo que faz recordar o esquema de circulação adoptado por Le Corbusier em La Tourette. No centro, colocou-se a bilheteira, um pequeno volume espelhado que reflecte as fachadas do edifício existente. No primeiro piso, a intervenção foi feita por ‘subtracção’. Os autores conseguiram perceber a potencialidade da organização da antiga residência de estudantes para gerar o percurso museológico. Tiveram a capacidade de transformar os constrangimentos orçamentais na grande força do projecto. Para tal, limparam-se revestimentos e elementos fixos (os antigos quartos e sanitários continuam a identificar-se pela textura das paredes) e rasgaram-se aberturas nos extremos dos compartimentos (alternadamente junto à fachada e ao corredor, criando um percurso expositivo em ziguezague). No final de cada ala descomprime-se a sequência de salas, criando zonas propícias a outros usos. A intervenção foi rematada com pintura branca, que, simultaneamente, esconde e evidencia imperfeições. Integram-se também novas vigas metálicas e instalações eléctricas, sempre aparentes. DESTRUIR PARA PRESERVAR Construir, de preferência construir de novo, parece continuar a ser a solução a priori para a maior parte dos arquitectos. O acto de retirar matéria não está entre as fórmulas geralmente empregadas na arquitectura e na indústria da construção, antes pelo contrário. Mas, tal como são educados para “construir”, os arquitectos deviam sê-lo também para “destruir”. Hoje, para preservar e valorizar, é capaz de ser melhor começar a demolir do que continuar a construir. A Casa da Cultura de Pinhel aponta para o êxito deste caminho.
Este texto foi publicado no J-A 251, Set — Dez 2014, p. 492 – 495. |
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