Adereços para Superpowers of Ten. Fotografia: Office for Political Innovation



Joaquim Moreno

Superpoderes ou Superpotências

Superpowers of Ten, um espectáculo de arquitectura na baixa de Lisboa

Somos todos fãs dos Eames. Seja da poltrona para incapacitados do pós-guerra, que, na verdade, queríamos para ouvir música ou falar com o psiquiatra, seja dos cartões com imagens e ranhuras para os castelos de cartas passarem a ser pequenas arquitecturas de imagens, seja ainda da arquitectura pré-fabricada e standardizada da sua Case Study House, na Califórnia dos anos 50, é difícil encontrar alguém indiferente ao universo formal e imagético de Charles e Ray Eames. Por extensão, os fãs desta proposta fascinante de um quotidiano sofisticado e simbiótico com o seu ambiente, seja este cultural ou tecnológico, também são fãs do seu trabalho sobre a arquitectura da informação: a montagem de exposições, as cronologias ou os filmes, quer se trate de epifanias do quotidiano como a vida na sua famosa casa, quer da diplomacia cultural de Glimpses of the USA para Moscovo, ou da ferramenta didáctica sobre o tamanho relativo das coisas: Powers of Ten.

O que Andrés Jaque e o seu Office for Political Innovation propõem com Superpowers of Ten é mobilizar criticamente este fascínio. Mais do que descobrir os seus conflitos internos, Andrés Jaque propõe-se habitá-los, despir a sua aparente transparência cultural e ideológica e, como num baile de máscaras, trazer velhas vestes para conflitos novos; utilizar um modelo “consensual” das relações de escala entre as coisas para evidenciar as discrepâncias com o presente, ou novas e surpreendentes escalas e relações. Esta não é uma arquitectura crítica, é uma crítica feita com os instrumentos da arquitectura. Os Eames faziam arquitectura da informação, Andrés Jaque e o Office for Political Innovation fazem, talvez, arquitectura da crítica.

A versão através da qual Jaque arquitecta a sua crítica moveu-se a contrapelo da lógica de perenidade das imagens do seu original: foi low-tech, low-fi, pobre nos seus meios teatrais, caseira e sobretudo efémera, acontecendo e desvanecendo-se sem registo. Não sobrou nenhum monumento nem ruído electromagnético ou digital, nenhuma automemorialização instantânea. A tarefa de inscrever este evento fugaz na ficção partilhada a que chamamos memória foi um papel crítico deixado aos seus espectadores. Criticar também é preservar.

Como foi então este espectáculo de arquitectura ou esta arquitectura da crítica? Superpowers of Ten aconteceu no “palco” que a Trienal de Lisboa destinou aos “Novos Públicos”. No dia da estreia havia uma fila longa para entrar no que era para ter sido um disco oscilante projectado por Frida Escobedo e que acabou fixo, com uma cortina em redor. Naquela noite, e nas duas seguintes, o palco inclinado foi a plateia, a cortina aberta para uma cena que era a cidade, o cenário dos superpoderes era o deambular dos passantes na Praça da Figueira. Os espectadores estavam enjaulados num soalho inclinado, agreste de dia e íntimo ao serão. A Praça da Figueira era o palco transparente onde se acumulavam as máquinas de cena que, a seu tempo, passariam diante da moldura sem tecto aberta na cortina.

O “novo público” estava enjaulado no espaço público, a fazer de público (espectador), enquanto as entranhas desta encenação alternativa exibiam os seus mecanismos aos “velhos públicos” que, sem grande convicção, espreitavam esta cena saída à rua. Do lado da plateia, este enquadramento sem ecrã deixava pressentir uma inversão de papéis qualquer… e, entretanto, começa a função.

A voz do narrador anunciava em inglês que esta era uma versão alternativa de Powers of Ten, “um filme acerca do tamanho relativo das coisas no universo e dos efeitos de acrescentar um zero”, ou seja, a segunda versão cinematográfica que os Eames tinham realizado do livro Uma Visão do Cosmos: O Universo em 40 Saltos, de Kees Boeke. Acrescentava ainda que Boeke tinha promovido, conjuntamente com a sua visão do cosmos, uma visão própria da vida em sociedade, denominada sociocracia: “Uma forma de governo colectivo que se estabelece como alternativa à democracia. A democracia baseia-se na concessão de representação às diferenças e na produção do lugar-comum pelo confronto. Pelo contrário, a sociocracia encontra o bom governo no modo como as forças que compõem a sociedade se comprometem a não colocar entraves ao caminho decidido através do CONSENSO GENERALIZADO. Muitos defendem que os métodos sociocráticos produzem competência e mantêm as sociedades CENTRADAS.” O confronto agonístico com a aparente transparência de um consenso que oblitera a diferença – o verdadeiro motor desta versão alternativa – aparece logo na primeira página do guião, evidenciando a política naturalizada detrás desta suposta visão automática, não-problemática e apolítica do cosmos, utilizada durante décadas como instrumento pedagógico. A vontade de um combate agonístico, nos termos que Michael Foucault propõe na sua reflexão sobre o poder, é enunciada na abertura de cena. Trocar o antagonismo pelo agonismo, transformar os inimigos em adversários, envolver-se numa relação que é simultaneamente incitação mútua e luta, que, mais que confronto paralisante, é uma permanente provocação, era o agonismo que Michael Foucault propunha como uma muito necessária acção política; o mesmo agonismo que Chantal Mouffe desenvolve como antídoto ao horizonte de um qualquer consenso que supostamente fosse possível através de uma racionalização da esfera pública.

Depois da breve introdução, o filme de animação original era literalmente animado em palco, com as molduras dos saltos de escala transportadas para trás e para a frente no melhor zoom analógico, e as ilustrações materializadas em papier-machê a passar diante da cena, com a voz off do original. Se o original era o filme do livro, esta versão alternativa era quase um musical de rua do filme, uma versão teatral popular. Por esta altura estava já lançada uma percepção distraída e colectiva. A linha ténue entre o entretenimento e o bombardeamento informativo – entre a saturação visual do circo que tanto fascinava os Eames e a intensificação sensorial como modo de aguçar a percepção e tornar mais eficaz a comunicação – estava lançada. A estratégia arquitectónica para tornar público este ensaio crítico sem notas de rodapé, para o publicar, para o fazer parte da conversa de um novo público, estava em andamento. O público estava rodeado por imagens, mas nem estas imagens eram as ilustrações científicas de conceitos e forças apenas acessíveis a instrumentação sofisticada, nem esta imersão nas imagens se tinha produzido pela multiplicação de ecrãs que os Eames tão bem utilizaram. Num deslocamento subtil, o público distraído e entretido era agora bombardeado com a multiplicação das perspectivas, com uma proliferação de enquadramentos – onde a memória das imagens “universais” do filme original se confrontava com um olhar sobre os superpoderes ou superpotências que as faziam instrumentos do seu discurso.

O primeiro salto de escala de Superpowers transporta-nos para a voz do filme, o cientista Phillip Morrison. A narração clarifica o envolvimento directo de Morrison no Projecto Manhattan, o seu arrependimento e luta contra o nuclear, e o seu credo em extraterrestres. A voz das Potências escutava o céu com uma antena de rádio chamada Grande Orelha em busca de mensagens extraterrestres e, um dia, o céu sobre o paraíso suburbano que rodeava a antena respondeu. Mas o WOW do entusiasmo original rapidamente se desvaneceu na constatação de que a mensagem do céu era apenas o reflexo dos sinais terrestres no lixo espacial. A versão alternativa desvenda assim outras escalas relativas: o lixo espacial entendido como radical tridimensionalização do urbanismo da superfície terrestre. “O espaço não é senão mais um subúrbio, construído com lixos, televisão, conflitos internacionais e vigilância”, dizia o narrador enquanto o público estava entretido com a evolução cénica de lixos espaciais animados em cartão.

Da voz original salta-se para o acto inicial, o piquenique: outra oportunidade para um caleidoscópio de referências que permitem problematizar o aparentemente inocente piquenique na relva do parque em Chicago. E do acto salta-se para o suporte da imagem, a película a cores do filme, que, na sua aparente objectividade, era no entanto calibrada para capturar peles claras e tinha grande dificuldade em “ver” os cidadãos de pele escura. O media da imagem, na sua aparente transparência, propagava um modo de ver que discriminava. Voz, acto, media ou chão, tudo cuidadosamente desestabilizado numa provocação contínua. Nem a relva fica descansada: a sua magnífica simplicidade desmontada na sua eugenia vegetal, na engenharia genética da supremacia de uma erva, que troca biodiversidade por robustez e facilidade de manutenção. A relva debaixo do piquenique era tão ideológica como a película que a fotografava. A afirmação descarada da polimorfia da alteridade que agonisticamente confronta o discurso dominante através desta versão alternativa repara também na naturalização das hierarquias e dos papéis de género do filme original, o casal deitado no parque, ele e ela, e a escolha da mão dele. O debate de género é a oportunidade para um último salto, em que a multiplicação dos enquadramentos (palavra que o guião recomenda que se diga devagar) se literaliza: o duplo enquadramento em que a Miss América desqualificada em 1968 por ser transexual aceita finalmente o prémio que não recebeu, duplicando o discurso da Miss América 1968. Duas vozes e o mesmo discurso, uma em off e outra ao vivo; o superpoder e a superpotência, dois lugares de enunciação confrontados em uníssono, numa fantástica estereofonia, sobrepondo sons de várias dimensões, vários planos.

A tradução melhorada para português do título desta performance captura o seu agonismo interno: Superpoderes ou Superpotências de Dez. A sua dupla moldura interpretativa desdobra-se: de um lado, o espectro geopolítico e científico do complexo industrial militar que exerce o seu poder através da naturalização de uma visão do universo; do outro, a evocação do termo popular que descreve as qualidades sobre-humanas das personagens de ficção, sobretudo da banda desenhada. O espectro da superpotência e a fantasia dos superpoderes emolduram esta versão outra de um filme que nos habituámos a pensar universal, científico e pedagógico, mas que vemos agora afectado pela poderosa maquinaria técnica e ideológica de uma grande superpotência e também povoado por seres de fantasia com visão de raios X. Superpoderes de Dez mistura crítica e fantasia, terror e admiração sincera. O superpoder desta versão é, literalmente, animar um objecto que tínhamos por estável, insuflar em Powers of Tem a vida agonista de um extraordinário conflito interno. Esta é, ainda, a inteligência da arquitectura.

 

Este artigo foi publicado no J-A 249, Jan — Abr 2014, p. 326-329.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

SUPERPOWERS OF TEN
Trienal de Arquitectura de
Lisboa, Setembro 2013
Performance original escrita e encenada por
Andrés Jaque / Office for
Political Innovation
Curadoria
José Esparza Chong Cuy
Participação Especial
Álvaro Carrillo, Paula Currás,
Eugenio Fernández, Rebeca
Hourdaki, Víctor Nouman,
Ana Olmedo, Adrián Suárez,
Enrique Ventosa
Artista Sonoro
Jorge López Conde
Colaboração especial
Belle Dominique
Director de Cena
Roberto González García
Equipa Criativa
Office for Political Innovation:
Paula Currás, Lubo Dragomirov,
Roberto González García,
Álvaro Guillén, Andrés Jaque,
Irene Kargiou, William Mondejar
Locução
Susana Correia
Fotografia
Jorge López Conde
Apoio
Matadero Madrid