RETRATO DE UMA ÉPOCA
As crónicas desenhadas de Pedro Burgos Entre 2009 e 2012, nas páginas centrais deste mesmo J–A, regozijávamo-nos com os cartoons do arquitecto Pedro Burgos, crónicas desenhadas que respondiam aos desafios temáticos levantados pela revista. Com um traço forte e uma dinâmica particular, ao longo de 12 números foram aparecendo arquitectos, construtores, clientes, utilizadores, transeuntes e animais de fábulas que se confrontavam com uma paisagem construída nem sempre com o melhor esquadro, arquitecturas bizarras e monstruosas que parodiavam feitos clássicos e contemporâneos em conflito constante com os seus habitantes. Essas crónicas foram agora reunidas num pequeno livro. Há uma longa história, que provavelmente ainda está por escrever, sobre as formas e os efeitos dos cartoons de arquitectura. Louis Hellman, que há mais de 50 anos ilustra a imprensa de arquitectura britânica com sátiras poderosas, é uma das figuras de referência desse manancial, tal como em Portugal o arquitecto João Abel Manta, que ilustrou de forma lapidar os paradoxos e os dilemas desta profissão. A acutilância da sátira como género é particularmente eficaz no momento em que se produz e se lê, tem um sentido de actualidade, os sinais gráficos são reconhecidos com facilidade e o leitor compreende onde se quer chegar. Mais tarde, quando o tempo afasta os temas do nosso quotidiano, reler ou rever cartoons satíricos corre o risco de se tornar uma experiência nostálgica. É nesse aspecto que a leitura em conjunto destas 12 crónicas desenhadas se torna uma experiência radical para quem partilha os dramas quotidianos da profissão. O livro contém a versão portuguesa dos 11 desenhos publicados (e de mais uma crónica inédita), bem com um esboço de estudo preliminar para cada um deles. Nesses esboços encontram-se as linhas de força que estruturam as manchas de desenho. Quase todas as crónicas preenchem o rectângulo da página com texturas; a orientação e espessura das linhas dão sentido à textura do desenho e criam um plano de fundo onde se destacam os balões brancos das falas das diferentes personagens. Se seguirmos a origem dos balões, encontramos as personagens, mordazes, que, em geral, falam com arquitectos ou fazem comentários à arquitectura. Sobre esse plano de fundo destacam-se as próprias arquitecturas retratadas, desde caixotes ortogonais (em betão ou papelão) a geometrias bizarras, à caricatura de museus, estádios e outras arquitecturas de autor. No meio desse mundo complexo, vários arquitectos protagonizam as histórias. Há um aspecto que parece unir as 12 crónicas: a dinâmica espiral da composição de cada desenho. Por vezes há um centro (“ser português”) em torno do qual gravitam os comentários: “… não passa de um lamentável improviso.” Ou então o desenho divide-se em áreas independentes (“ser crítico”): “Eu sei, querida… desculpa… mas [os monstros da arquitectura] andam por todo o lado… e não param de me perseguir!” Na maioria dos casos, os desenhos são narrativas que percorrem as páginas segundo uma linha sinuosa, o arquitecto vai encontrando várias personagens e arquitecturas ao longo de um caminho. E esse caminho não é promissor. Por exemplo, em “ser pobre” o arquitecto entabula um diálogo com um sem-abrigo que pede sopa – “Meu bom amigo, sou um jovem arquitecto comprometido com as causas sociais e venho ajudá-lo!” – e, depois de um percurso atribulado por entre geometrias complexas, acaba sentado, também ele sem-abrigo, a perguntar: “… a que horas distribuem a tal sopinha?” O mais agitado dos percursos é o “ser independente”, em que após receber a régua T de um deus clássico, o bravo e destemido arquitecto se aventura num percurso arriscado e emocionante, da “gruta dos talentos perdidos” ao “perigoso precipício dos clientes que não pagam”, passando, “radical!”, pelos “rápidos traiçoeiros da mediatização”, para acabar, claramente surpreendido, num call center. A crónica inédita é a mais angustiante: o mestre arquitecto e professor catedrático, obrigado a fechar o atelier e sem trabalho na faculdade, vê-se abandonado entre as mesas de um café em que o IVA é a 23%. O prefácio de Manuel Graça Dias intitula-se “Intervalos leves”, fazendo uma referência justa ao humor fino e inteligente que percorre os desenhos. Mas se estes intervalos eram leves, qual seria o peso do que intervalavam? Da arquitectura de autor às causas sociais, da euforia digital e tecnológica à sobreabundância de arquitectos, das crises de identidade às derrapagens orçamentais, estas crónicas desenhadas são efectivamente o retrato de uma época e de um espírito. O que impressiona é que, passado um ano, já parecem oriundas de um tempo distante. Ao longo das crónicas, a sátira aplica-se a um arquitecto que perdeu o controlo: de si, dos outros, do seu saber e das suas competências. O arquitecto destas crónicas é um arquitecto ingénuo, ultrapassado pela realidade, que apesar da confiança inaudita nos poderes da arquitectura é incapaz de compreender e actuar de forma eficaz no mundo, agressivo, que o rodeia. Ler as crónicas desenhadas daqui a alguns anos vai ser uma experiência dolorosa, porque as páginas do livro caracterizam de uma forma contundente a desorientação a que estávamos confinados. Será arriscado dizer que, hoje, o cenário mudou. Mas aquele protagonista não faz mais sentido: podemos ser ingénuos, mas a espiral de ângulos agudos e comentários injustos (ou justos) e frustrações acumuladas já não é novidade, e muitas ilusões (felizmente) acabaram definitivamente. O protagonista de hoje corre outros perigos, também eles merecedores de ironias cáusticas, mas pelo menos procura não se enrolar nessa espiral depressiva. Há os que emigram, é certo e parece ser inevitável, mas uns e outros estão dispostos a combater, fazendo-o na medida das suas possibilidades, conscientes da sua falibilidade, ou então não são arquitectos. Ao ler o livro, sente-se a falta que estas crónicas fazem no J–A.
Veja mais sobre o livro na livraria Mundo Fantasma. Este artigo foi publicado no J-A 248, Set — Dez 2013, p. 248-249. |
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