No presente ano lectivo, caiu drasticamente o número de candidatos aos cursos superiores de engenharia civil em Portugal. Na primeira fase do Concurso Nacional de Acesso ao Ensino Superior, das 150 vagas disponíveis no Instituto Superior Técnico apenas foram ocupadas 82. Na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, com a mesma oferta, ficaram por preencher dois terços das vagas. A Universidade do Minho (50 vagas) e Coimbra (110 vagas) receberam cinco alunos cada uma. Entre a Universidade do Algarve (30 vagas), Aveiro (25 vagas) e Trás-os-Montes (30 vagas), ficou colocado um aluno. Se a tendência para a redução de alunos já era perceptível nos últimos anos, as colocações de 2014 tornaram evidente o problema. O que ensinar numa universidade sem alunos?
Até que ponto os cursos de arquitectura não vão enfrentar um cenário idêntico? Será que um certo pragmatismo associado à engenharia pode justificar esta reacção de fuga de novos alunos? E será que é apenas um certo lirismo associado à arquitectura que justifica o facto de este cenário ainda não se fazer sentir no preenchimento das vagas disponíveis? A redução do número de novos alunos de engenharia civil pode ser encarada como um reflexo do contexto presente da indústria da construção, marcado por falências, insolvências, desemprego, precariedade e quebra na encomenda pública e privada.
Esta realidade põe-nos perante um desafio delicado, que questiona o lugar, o peso e o futuro da arquitectura na universidade. Tal como houve um certo consenso a propósito da oferta excessiva no ensino da arquitectura, que provocou uma transformação do perfil profissional dos arquitectos portugueses, esta realidade no ensino de hoje terá seguramente um efeito na prática da arquitectura de amanhã.
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O CRESCIMENTO DA OFERTA
Há vinte escolas de arquitectura distribuídas pelo país, oito em instituições públicas e doze em instituições privadas. Genericamente denominadas escolas de arquitectura, apresentam-se formalmente de várias maneiras: faculdades, departamentos com maior ou menor autonomia, unidades orgânicas partilhadas, institutos técnicos, inseridas em fundações, cooperativas de ensino, universidades ou escolas superiores. No início da década de 1980 havia apenas duas escolas de arquitectura, então integradas nas escolas superiores de belas-artes de Lisboa e Porto, que entretanto transitaram para as respectivas universidades (FAUL e FAUP). A maior parte das restantes escolas começou a aparecer ao longo das últimas décadas do século passado, desde instituições privadas como a Cooperativa Árvore que deu origem à Escola Superior Artística do Porto (ESAP), às públicas, como o Departamento de Arquitectura em Coimbra (dARQ-FCTUC), ainda nos anos 80. No entanto, as escolas públicas e privadas surgiram principalmente ao longo dos anos 90. Já no nosso século xxi abriram várias novas escolas públicas e privadas, em Évora, Viseu, Covilhã, Portimão e Porto.
Há uma forte concentração de alunos nas duas principais cidades do país: cerca de 2700 em Lisboa e 1800 no Porto, sendo aproximadamente 2 mil os que se distribuem pelo resto do país. Em número de escolas, a distribuição parece equitativa: oito na região Norte (duas públicas e seis privadas), quatro na região centro (duas públicas, duas privadas) e oito na região Sul (quatro públicas, quatro privadas). Apesar de a Universidade Lusíada (UL), que tradicionalmente albergava os cursos mais populosos, não ter fornecido dados concretos sobre o presente, são os cursos públicos da FAUL e da FAUP que hoje acolhem o maior número de estudantes. No universo estimado de 6500 alunos, cerca de 4400 frequentam o ensino público, ou seja, mais de metade. Esta distribuição geográfica tem como efeito uma menor movimentação de população de norte a sul do país (e nesta reportagem não se considerou o efeito do protocolo de colaboração entre a Universidade dos Açores e a FAUL, que induz a maioria dos estudantes açorianos a frequentar o curso em Lisboa, sendo actualmente raros os açorianos a estudar noutros pontos do continente) e uma menor diversidade de proveniência geográfica entre a população estudantil.
No ano lectivo de 2013-2014, excluindo a UL, inscreveram-se no primeiro ano 1037 alunos e concluíram o curso 654 arquitectos. A escola com maior número de vagas disponíveis é a FAUL, com 192 vagas e com a possibilidade de um formato diurno e pós-laboral. As restantes escolas oferecem aproximadamente 50 vagas, à excepção da FAUP, com 120. Na oferta pública, as vagas foram praticamente todas preenchidas, à excepção de Évora e Covilhã. Na oferta privada, registou-se a tendência contrária, com Viseu e Portimão sem novos alunos.
ENSINO À BOLONHESA
A adaptação ao Plano de Bolonha exigiu uniformizar a estrutura do ensino superior, para promover o intercâmbio dos estudantes no âmbito europeu. Desde a última década, consolidou-se em todas as escolas de arquitectura uma estrutura de mestrado integrado, a qual, com uma duração de cinco anos (comprimindo os cursos que antes tinham seis anos), compreende dois ciclos de ensino. Este processo contribuiu para a uniformização dos currículos e para a inscrição de todas as disciplinas no Sistema Europeu de Transferência de Créditos (ECTS), abrindo portas à mobilidade europeia e a equiparações automáticas.
Na generalidade, as escolas manifestam interesse pela internacionalização, integrando redes de programas de intercâmbio europeu ou de âmbito mais alargado. Nas últimas décadas, o programa Erasmus tem sido um meio eficaz para garantir essa internacionalização, apesar de se focar mais na internacionalização dos alunos (de acordo com os dados recolhidos no último ano, saíram 298 estudantes e entraram 491), sendo muito frágil a internacionalização dos docentes. Perante as dificuldades financeiras que atravessam, e além do programa Erasmus, as escolas não têm deixado de investir na conformação de redes mais amplas de intercâmbio. Em grande medida, essas redes apoiam-se mais em programas de investigação e pós-graduação do que no âmbito da formação de base em arquitectura.
A implementação do terceiro ciclo tem constituído uma aposta forte, geralmente associada a centros de investigação, (entre as vinte escolas, dez oferecem programas de terceiro ciclo). Se, por um lado, a oferta está a aumentar, por outro lado a procura não está a corresponder às expectativas. Existe um interesse crescente pela formação contínua, mas a realidade está a revelar dificuldades em consolidar programas de pós-graduação. Das cerca de 200 vagas disponíveis nos cursos de doutoramento no ano lectivo de 2013-2014 preencheram-se apenas 141. A oferta de cursos de pós-graduação e de estudos avançados com a duração de um e dois anos é mais reduzida. Em 2013-2014, este grau de ensino estava disponível em três escolas públicas (FAUL, FAUP e ISCTE), coincidindo com uma oferta de especialização variada (sendo que o mestrado integrado não pressupõe especialização) que abrange estudos nas áreas da computação e arquitectura digital, do património, da conservação e reabilitação, ou nas áreas e estudos de urbanismo, entre outras. Entretanto, os cursos doutorais da FAUL e da FAUP começam a ganhar uma dimensão que era impensável há alguns anos (quando ainda eram raros os docentes doutorados em arquitectura), estando inscritos cerca de 300 alunos em Lisboa e 100 no Porto, ainda que em 2013-2014 apenas se tenham doutorado, respectivamente, 20 e 7 estudantes.
A prevalência de programas doutorais sobre cursos de pós-graduação deve-se, em grande parte, a pressões relacionadas com o sistema de financiamento das universidades, particularmente no ensino público, que conduziram à transformação de cursos de pós-graduação existentes em cursos de doutoramento. Neste contexto gerou-se a expectativa de que a investigação e os estudos avançados, nomeadamente em áreas tecnológicas e de ligação à indústria, possam funcionar como pontas-de-lança para a estabilidade financeira das instituições.
ESPECIALIZAÇÃO E EXPECTATIVAS PROFISSIONAIS
A maior parte das escolas pretende responder a um perfil generalista e transversal. No entanto, algumas delas destacam especificidades integradas no âmbito da tecnologia, sem esquecer a dinâmica interdisciplinar contemporânea. Também existe a consciência de que hoje o campo de acção do arquitecto é simultaneamente disperso e especializado, abrangendo um grande espectro de necessidades técnicas, teóricas e culturais. A competitividade entre as escolas parece sugerir que a especialização é um mecanismo para a distinção, mas independentemente dessa propensão os depoimentos que recolhemos apontam no sentido inverso:
Consideramos que a arquitectura é uma disciplina que cruza saberes multidisciplinares e abrangentes, orientados para pensar e desenhar desde a colher ao território. Seria uma perda restringir o campo da arquitectura a uma visão especializada. Preferimos preparar os nossos alunos para, nas diferentes circunstâncias, saberem decidir e coordenar equipas compostas de diferentes especialistas, capazes de resolver os problemas da arquitectura.
Fátima Fernandes, directora do Curso do Mestrado Integrado em Arquitectura da ESAP
Se hoje os campos de actividade em que os arquitectos são chamados a intervir formam um espectro cada vez mais alargado, não se compadecendo com um ensino reprodutor de um modelo profissional único como o do exercício liberal, é também inquestionável que os arquitectos se defrontam com ambientes de elevada e crescente exigência e responsabilidade técnica, económica e social e com recursos tecnológicos de grande complexidade e em constante evolução, que requerem níveis de formação avançada e capacidades de diálogo interdisciplinar. A formação teórica e prática que é actualmente requerida ao arquitecto exige portanto a produção de novos conhecimentos, em interacção quer com outros campos do saber, quer com a diversidade de práticas profissionais e institucionais integradoras do exercício da arquitectura.
Teresa Heitor, coordenadora do Mestrado Integrado em Arquitectura do Instituto Superior Técnico
O curso está sobretudo vocacionado para formar arquitectos que irão desenvolver a sua carreira profissional em ateliers e empresas de arquitectura, mas fornece igualmente as ferramentas necessárias para que estes alunos possam ser integrados em empresas de construção, empresas de consultoria de projecto e ambiente, empresas e gabinetes de estudos de conservação do património arquitectónico, órgãos de tutela do património histórico edificado, câmaras municipais, ensino e investigação.
Direcção do Departamento de Arquitectura da Escola de Artes da Universidade de Évora
AVALIAÇÃO DE QUALIDADE
Ao longo dos últimos trinta anos, a oferta educativa acompanhou a tendência de valorização e afirmação da arquitectura no panorama português. No entanto, perante a incerteza das saídas profissionais, o ensino da arquitectura confronta-se hoje com exigências cada vez mais rigorosas e com uma procura cada vez mais informada. No mercado universitário, num contexto de instabilidade financeira, as escolas são obrigadas a competir entre si. Este clima de competição convive com mecanismos de avaliação e acreditação padronizados a nível nacional e internacional, que têm como objectivo garantir a qualidade.
O actual quadro normativo confere à Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior (A3ES) competências para estabelecer critérios e efectuar avaliações sobre a forma de ensino de cada uma das escolas, as condições efectivas da actividade lectiva e as respectivas qualidades.
A missão da A3ES consiste em garantir a qualidade do ensino superior em Portugal, através da avaliação e acreditação das instituições de ensino superior e dos seus ciclos de estudos, bem como no desempenho das funções inerentes à inserção de Portugal no sistema europeu de garantia da qualidade do ensino superior.
O método da A3ES define uma base comum que serve de referência para o conjunto das escolas e que permite distinguir as vinte ofertas de ensino. No entanto, se o método destaca as qualidades das instituições universitárias, conferindo-lhes estabilidade e prestígio, aponta também as suas fragilidades mais flagrantes, provocando uma pressão significativa nos seus dirigentes, docentes, funcionários e alunos. Ao avaliar o desempenho das estruturas executivas, pedagógicas, físicas e curriculares de cada escola, a agência atribui um selo de acreditação que, por vezes, surge orgulhosamente exposto nas brochuras e páginas de Internet das instituições.
De cinco em cinco anos, as escolas confrontam-se com um processo de fiscalização apertada. Das vinte escolas avaliadas pela A3ES, onze foram acreditadas para um período de cinco anos (acreditação máxima), sete acreditadas para três anos, e apenas duas para um ano. Será que este sistema de avaliação conduz a um ensino excessivamente padronizado? Ou, pelo contrário, será que garante uma base comum que permite a exploração de distintos modelos de formação?
UMA EQUAÇÃO DIFÍCIL DE RESOLVER
Este breve retrato do ensino da arquitectura em Portugal corresponde ou coincide com o reconhecimento de uma efectiva mudança do contexto profissional. Hoje, o perfil de acção do arquitecto difere do que se encontrava no início do século, com alterações significativas nas condições, responsabilidades e exigências do mercado de trabalho, bem como nos desafios originados pela expansão do campo da sua intervenção. Terão as escolas de arquitectura capacidade e autonomia para responder a uma equação com variáveis facilmente identificáveis mas dificilmente resolúveis?
Um primeiro conjunto de variáveis relaciona-se com os números da oferta educativa: a actual oferta é suficiente ou excessiva? Como deve ser gerida a diversidade e multiplicidade dos diferentes projectos académicos? Deverá apostar-se na uniformidade do ensino, procurando uma base comum que ofereça maior estabilidade na formação, ou deverá avançar-se para modelos que promovam a singularidade? Há condições para implementar uma maior regulação da oferta educativa em Portugal? No actual contexto socioeconómico, qual será o número ideal de estudantes de arquitectura? Apesar da redução significativa de estudantes a que se tem assistido nos últimos anos, num modelo uniforme de ensino, o número de vagas disponíveis aparenta ainda ser excessivo. No entanto, num modelo mais diversificado, este número elevado de vagas poderia servir de polinização em distintas áreas socioeconómicas e culturais.
O segundo conjunto de variáveis, mais difíceis de quantificar, questiona a natureza generalista do ensino da arquitectura perante a exigência do mercado especializado. Se a especialização responde a um elevado grau de concretização, sendo cada vez mais necessário articular múltiplas especialidades ao longo do projecto, poderá a actual formação do arquitecto dar resposta a esta responsabilização? No entanto, as escolas de arquitectura parecem assumir a necessidade de adoptar uma formação não especializada, transversal à disciplina, que procura desenvolver competências para o diálogo com outros saberes e capacidades de interacção com outros domínios profissionais. A capacidade de um arquitecto ser “especialista em não ser especialista” continua a ser a pedra basilar do ensino da arquitectura em Portugal.
Finalmente, um terceiro conjunto de variáveis, talvez as mais incómodas, confronta um corpo docente orientado e pressionado para apresentar resultados e práticas de investigação (no campo das tecnologias e/ou das teorias) perante uma tradição de ensino alicerçada no ofício e na prática de atelier. Como poderá um ensino concebido com uma determinada orientação ser ministrado por docentes cujas competências são avaliadas segundo outros parâmetros? Encontrar o equilíbrio de um formato que permita oferecer em simultâneo uma formação associada aos centros de investigação e uma formação próxima do atelier constitui o principal desafio das escolas. Entretanto, a dúvida impõe-se: será este formato possível, será conciliável? Ou deverá sacrificar-se uma das vertentes? A resolução da questão não é evidente. Por um lado, é importante e consensual assegurar a ligação do ensino à prática da arquitectura, particularmente através da intervenção de docentes com trabalho quotidiano de atelier. Por outro, também é importante salvaguardar a autonomia e o reconhecimento da arquitectura no contexto universitário, através dos processos de legitimação existentes. A estas variáveis acresce um contexto incerto.
A crise da profissão coincide com a crise das próprias instituições de ensino superior, obrigadas a sobreviver numa economia cada vez menos subvencionada, segundo orientações tecnocráticas e distantes das especificidades disciplinares. No meio destas incertezas, a universidade tem a possibilidade e a obrigação de questionar o futuro da profissão e da própria disciplina. Sem um modelo profissional único, e num momento em que os campos de intervenção profissional estão a ser expandidos à força, parece absurdo promover a formação no sentido de uma resposta orientada para a circunstância. Será que a formação se deve restringir às competências profissionais sugeridas pelo mercado, ou serão também necessários arquitectos com capacidade para questionar a realidade e definir as suas próprias condições de trabalho?
Perante o elevado rácio de arquitectos na população portuguesa, se estes assuntos continuarem a não ser assumidos, mediados e equacionados, corre-se o risco de falhar na preparação dos futuros arquitectos. É da universidade que devem despontar as perguntas mais certeiras. Haja tempo, espaço e vontade.
Este texto foi publicado no J-A 251, Set — Dez 2014, p. 428 – 439.
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