O fim do princípio
PARQ – Obituário de um Curso de Arquitectura Em 2010, a Escola Universitária Vasco da Gama ensaiou reestruturar o seu programa de ensino em arquitectura, e o arquitecto Pedro Machado Costa assumiu a direcção do curso com um projecto inovador, eventualmente capaz de oferecer uma alternativa com substância à gigantesca oferta de cursos superiores de arquitectura em Portugal. Em 2012, o curso fechou e o projecto pedadógico Parq finou-se abruptamente. No cenário da arquitectura em Portugal poderia falar-se da crónica de uma morte anunciada, mas a sua existência fugaz é pretexto para questionar e repensar os impasses dos actuais programas de ensino. Na década de 1990 existiam em Portugal sete cursos de arquitectura, três dos quais públicos, no Porto, em Lisboa e o recém-criado em Coimbra. O ensino privado era essencialmente dominado pelo curso da Universidade Lusíada, que abriu em 1987 em Lisboa, e em 1990 no Porto e em Famalicão. No Porto, fruto de outras cisões disciplinares, existia desde 1982 a Cooperativa de Ensino Superior Artístico, com uma ambição, uma escala e uma lógica pedagógica próprias. O número de instituições de ensino multiplicou-se e, se no final dessa década já havia 19 cursos, públicos e privados, na década seguinte o número continuou a aumentar e, assim, apesar de alguns terem fechado portas (Independente e Moderna), mais dez as abriram, cinco no ensino público e cinco no ensino privado. Esse período ficou marcado por uma forte encomenda pública, por muito investimento privado e por um pretenso prestígio social ligado à figura do arquitecto, fruto do reconhecimento internacional de alguns arquitectos e do seu mediatismo em Portugal. Esta é uma história cujos números e as razões todos sabemos. O Parq é um caso atípico nesta história, é uma anomalia no sistema. O curso de Arquitectura e Paisagem de Coimbra fazia parte da Escola Universitária Vasco da Gama (EUVG), que abriu ao ensino também na década de 90, embora a sua orientação fosse o ensino veterinário, área em que ainda hoje oferece cursos. Na década seguinte, um grupo de arquitectos de Coimbra promoveu a criação de um curso que pretendia ser uma alternativa ao ensino massificado, mas que sempre funcionou de forma débil e nunca chegou a encontrar o seu lugar num meio concorrencial difícil. Em 2010, a direcção da EUVG procurou reestruturar o curso e convidou o arquitecto Pedro Machado Costa para conduzir essa operação, pedindo-lhe um projecto inovador. Essa foi a génese do Parq, que rapidamente se tornou um modelo de ensino pouco ortodoxo para o nosso panorama, a começar pelo modo como se estruturou o corpo docente, com uma ampla divulgação pública e essencialmente através da Internet, sendo capaz de captar um grupo heterogéneo de arquitectos, que se identificavam e se encontravam no universo de proximidade do director, cúmplices do novo programa pedagógico e conscientes do esforço, do risco e da fragilidade da situação em que se encontravam. A energia e o empenho de todos implicaram um enorme investimento pessoal, alimentado pela força da ideia de pôr em marcha um curso de arquitectura em Portugal inovador e em contraciclo, em plena crise económica e sem os apoios financeiros de um mercado eufórico do passado. O plano de estudos foi construído com o objectivo de ensinar paisagismo e arquitectura em simultâneo, tirando proveito das competências da EUVG na área da agronomia e procurando ocupar um vazio que o ensino nacional acusava. Ao nível internacional não é uma ideia curricular inédita, tal como no ensino da arquitectura, que segue a actual tendência da transdisciplinaridade. Concretamente, são exemplos dessas práticas, a Aalto University, a IE Business School de Madrid ou as pequenas academias holandesas e dinamarquesas como a Krabbesholm Hojskole ou a Gerrit Rietveld Academie, que procuram a transdisciplinaridade, do ensino artístico, da arquitectura e paisagem ao design, e em alguns casos com especial atenção à curadoria e aos novos meios de produção cultural. São muitos os exemplos internacionais que correspondem a um novo panorama socioeconómico da arquitectura, para o qual o ensino tem vindo a procurar novos modelos. O plano de estudos demonstrava essa ambição transdisciplinar, com um tronco comum de unidades curriculares centrais – atelier de arquitectura e arquitectura paisagista, desenho, teoria-história, crítica e estética e tecnologias da construção – nos dois primeiros anos. Essa estrutura era invertida no mestrado integrado, ficando o atelier isolado e os corpos laterais, em paisagem ou arquitectura, com mais peso em créditos de ensino. A maior inovação do plano de estudos era a possibilidade de usufruir de unidades curriculares como mesologia, botânica, ecologia, técnicas de jardinagem, gestão de espaços verdes e, no corpo de arquitectura, informática, geometria descritiva, ciências sociais, ordenamento do território, estática, estruturas, sistemas de informação geográfica, além do atelier de arquitectura. A porosidade entre conteúdos, sem descaracterizar as componentes essenciais de cada uma das disciplinas, permitia ao aluno optar por estudar arquitectura e concluir os seus estudos cumprindo um conjunto reduzido de créditos complementares obtidos noutros contextos. Um outro aspecto interessante no plano estratégico era a decomposição do currículo principal em vários cursos, bem como o facto de propor diversas actividades como elementos principais do processo de aprendizagem, como cursos de Verão, ou cursos especializados de desenho, desenho digital, cursos avançados de apresentação e representação, workshops anuais, tertúlias, exposições, publicações e viagens de estudo. Essa ambição de organizar um curso com interesse e assente em plataformas internacionais ficou patente nas várias iniciativas públicas realizadas durante o seu curto tempo de vida, nomeadamente a associação à exposição Ecological Urbanism da Harvard Graduate School of Design, o workshop intitulado “Elefantes no Algarve?” – em que estiveram presentes Helena Njiric, Ivan Rupnik, Abdullatif Al-Mishari e Francesc Muñoz – ou o estabelecimento de um protocolo com a Universidade de Cabo Verde para a criação de um curso de arquitectura. O curso finou-se sem surpresa. A anomalia era produto do entusiasmo do corpo docente: era um curso marginal, sem uma estrutura académica e financeira capaz de o suportar. Fica pouco para a história. Durou apenas um ano, sem ter tempo de dar provas do que efectivamente lá se preparava e pensava – desde projectos de investigação na área do paisagismo e da arquitectura, até às parcerias internacionais e workshops, regista-se um conjunto de intenções que não ganharam forma. O Parq foi o fim do princípio, o princípio de uma hipótese idealista ou espontânea – e sobretudo mais versátil – para um ensino universitário com uma vertente prática e experimental em contraponto com a italianização da academia portuguesa. Um suspiro por um ensino curiosamente próximo do modelo das academias artísticas, uma contradição académica provavelmente involuntária. Na próxima década anunciam-se novas crónicas de mortes há muito anunciadas, no ensino público e no ensino privado. Haverá cursos a finar-se mais uma vez sem surpresa, mas o desafio do ensino da arquitectura em Portugal não está na sua capacidade de resistência ou sobrevivência – das escolas ou dos seus actores –, o desafio está na capacidade de traçar um plano e questionar como se pode fazer um ensino com vontade de pensar, um ensino com responsabilidade social, um ensino onde a internacionalização seja pertinente, um ensino capaz de oferecer uma resposta política e de produzir uma interdisciplinaridade efectiva, e que obrigue as escolas a libertar-se do expediente e do tacticismo académico. Ao contrário de um ensino assente em meia dúzia de iluminados, é fundamental inventar um ensino de arquitectura que trabalhe como um todo e com todos, para poder participar e envolver-se na inexorável transformação socioeconómica da arquitectura.
Este artigo foi publicado no J-A 246, Jan — Abr 2013, p. 70-71. |