Uma obra de Zaha Hadid demolida na Avenida de Portugal
A consciência ética dos arquitectos tem pautado o debate disciplinar da arquitectura. As transformações recentes da sociedade têm feito ressurgir essa discussão, sem que o seu sentido seja consensual no seio da classe profissional. Não faltam arquitectos que, perante encomendas e projectos questionáveis, resistem à evidência de esse debate ser útil e necessário. Zaha Hadid é um dos casos mais paradigmáticos desta resistência, quer pelas controvérsias que têm envolvido algumas das suas obras, quer pelo desconforto que demonstra perante a crescente atenção que os meios de comunicação dedicam à dimensão social da arquitectura. A demonstrar este desconforto cita-se uma afirmação de Março deste ano do seu mediático braço-direito, Patrik Schumacher:
PAREM com o politicamente correcto em arquitectura. [...] Os arquitectos são responsáveis pela FORMA do ambiente construído, não pelo seu conteúdo. [...] Infelizmente, todos os prémios atribuídos na última bienal de arquitectura [Veneza, 2012] foram motivados pelo equívoco do politicamente correcto.
Apelos como este, por outras palavras, parecem legitimar a arquitectura politicamente incorrecta. O crítico Martin Filler denunciou que Zaha Hadid tende a sacudir as suas responsabilidades, dando como exemplo a constatação das condições laborais intoleráveis nas construções para o campeonato do Mundo de futebol no Qatar. Hadid afirmara não ser sua obrigação observar as questões de direitos humanos: “Não tenho nada a ver com os trabalhadores.” Perante as críticas, Hadid respondeu com processos judiciais contra Filler e contra a New York Review of Books, que publicou a suposta difamação. Noutro caso, Zaha Hadid foi acusada de ignorar as vozes defensoras das centenas de cidadãos desalojados à força para dar lugar ao exuberante Centro Heydar Aliyev, no Azerbaijão, um edifício colossal com um programa vago de glorificação política. Entre estas polémicas, a sua arquitectura floresce, pelo menos em países onde vigoram regimes antidemocráticos.
A demolição de um edifício de Zaha Hadid em Sevilha poderá assinalar um ponto de viragem para a arquitectura contemporânea. A Biblioteca Central Universitária estava ainda em fase de construção quando foi demolida. Azaradamente, a obra situava-se numa zona destinada a ser um parque urbano. Alheio à glorificação das imagens do projecto nos blogues da especialidade, um movimento popular que envolveu cidadãos e associações cívicas sevilhanas conseguiu obrigar à sua demolição.
Foi uma façanha inédita, com a qual é necessário aprender. Tratou-se de um processo longo, com mais de oito anos, no qual se pode questionar não apenas a desresponsabilização da arquitectura, mas também a negligência dos decisores políticos. O caso ganha ainda maior dimensão ao sabermos que, entre a construção e a demolição do edifício, foram gastos mais de 9 milhões de euros (7 na construção e 2 na demolição). Se juntarmos a este valor a nova biblioteca que foi afinal construída, em fase de acabamento noutra zona de Sevilha, o custo do processo atinge os 15 milhões de euros. O desperdício, num momento em que os recursos financeiros são escassos, merece reflexão.
NA AVENIDA DE PORTUGAL
O recinto rectangular do Prado de San Sebastián, um jardim público delimitado por gradeamentos com diversas entradas, confina com a Avenida de Portugal e, do lado oposto, é contíguo ao Parque de María Luisa, inaugurado em 1914. Foi aí que teve lugar a Exposição Iberoamericana de 1929, na qual dezenas de países participantes construíram pavilhões, incluindo o Pavilhão de Portugal desenhado pelos irmãos Rebelo de Andrade. O pavilhão português implantou-se no ângulo sudoeste do Prado, num conjunto que incluía um claustro e salas temáticas dedicadas aos territórios ultramarinos, construídos com granito de Viana, calcário de Pêro Pinheiro, mármore de Estremoz e madeiras exóticas das antigas colónias portuguesas. Actualmente, resta apenas o edifício principal, onde funciona o Consulado. Ao longo dos anos, o pavilhão manteve-se como o único edifício no Prado de San Sebastián.
O Plano Geral de Ordenação Urbanística de Sevilha (PGOU), elaborado em 1987, definia um parque urbano para o Prado e considerava o pavilhão português a sua única construção permanente, propondo a realização de um Plano Especial para a zona. Esta decisão, em plena época gloriosa de expansão construtiva, parecia salvaguardar a natureza daquele lugar face à fúria dos negócios imobiliários que ameaçavam outras zonas da cidade. A manutenção do Prado como espaço livre para usufruto público simbolizava, assim, uma conquista urbanística dos sevilhanos.
Em 1994, foi aprovado o Plano Especial do Sector 21 do Prado de San Sabastián, classificando-o como “Parque Central”. A elaboração desse plano foi participativa, e o documento final incorporou alegações de vários agentes sociais, entre moradores e associações. De acordo com o Plano Especial e com financiamento local e europeu, realizaram-se obras que consolidaram o conjunto como um grande jardim urbano, livre de edificações (além do referido pavilhão e de um pequeno quiosque de madeira com esplanada). Actualmente, o Prado é um lugar de repouso e ócio, com sombras, fontes e grande diversidade de espécies vegetais, desempenhando uma função relevante para a qualidade ambiental da cidade.
Pouco mais de dez anos após a aprovação do Plano Especial, o governo municipal e a Universidade de Sevilha decidiram que uma porção de 4000 m2 no extremo nordeste do parque (no lado oposto ao Pavilhão de Portugal) deveria dar lugar à construção de uma biblioteca. Para tal, foi lançado um concurso internacional que, mais do que procurar encontrar o projecto adequado para o equipamento em questão, visava escolher um edifício icónico, capaz de dar a Sevilha (e aos seus representantes) o protagonismo que outras cidades espanholas tinham conseguido, das quais Bilbau é o caso mais emblemático. Em Fevereiro de 2006, o presidente do júri do concurso, Ricardo Bofill, anunciou a decisão unânime de atribuir o primeiro lugar à proposta da arquitecta Zaha Hadid, considerando o projecto representativo de “uma nova maneira de projectar arquitectura”.
Em Julho de 2006, alguns meses após a escolha do projecto, o Conselho de Obras Públicas e Transportes da Junta da Andaluzia aprovou a Revisão do PGOU, que previa a construção do novo equipamento, “preferencialmente vinculado à Universidade, em analogia e simetria com o Pavilhão de Portugal, representado por um novo pavilhão de vidro com cobertura invertida, capaz de equilibrar forças entre espaços vazios e construídos”. A revisão do Plano abria caminho para a construção da nova biblioteca.
VOLTAS E REVIRAVOLTAS
Descontentes com a decisão, um grande número de moradores e associações locais começou uma intensa campanha de protesto contra a construção do edifício no seu parque. Organizaram-se caminhadas e “encontrões”, quer no Prado quer em frente às sedes do poder, com palavras de ordem e cartazes dizendo: “No a la destrucción de los espacios verdes” e “Rector no destruyas nuestro parque”. Sem surpresa, as autoridades ignoraram os protestos dos cidadãos e, numa decisão insólita, assinaram um acordo garantindo a condição de, no caso de os manifestantes ganharem um contencioso administrativo que já estava em curso, a Universidade renunciar a uma eventual indemnização. Em Julho de 2008, quando a maior parte dos sevilhanos está fora da cidade, emitiram o alvará de obra, vedaram o terreno com tapumes verdes e deram início aos trabalhos de escavação.
Este podia ter sido o início de mais um edifício aclamado, não fosse a vizinhança estar convicta dos seus direitos. É importante ter em conta que se trata de uma zona de habitação. Ao longo das ruas transversais à Avenida de Portugal é possível encontrar o edifício Coimbra ao lado do supermercado El Jamón, o edifício Madeira em frente à Peluquería Duomo, ou o edifício Oporto na vizinhança do Colegio de Ingenieros Industriales. Este conjunto de quarteirões adjacentes ao Prado é habitado por membros destacados da sociedade sevilhana, “pessoas ligadas ao antigo regime, famílias de antigos militares, hoje advogados, médicos e juízes”, confidenciou um morador. Confirmou-se que, num dos edifícios com vista para o Prado, mora o advogado Emilio Molina, da firma de advogados Bufete Prado, que conduziu o processo judicial contra a construção da biblioteca. O certo é que este “bairro português” alcançou a destruição do que não chegou a ser mais um ícone da arquitectura contemporânea.
Com o início da empreitada, os moradores apresentaram uma providência cautelar para, perante a irreversibilidade dos danos ambientais causados, a licença de obra ser suspensa. Em Agosto, um tribunal ordenou a suspensão da obra, mas a Universidade conseguiu levantar o embargo mediante um projecto de transplante das árvores, argumentando ser possível voltar a transplantá-las para o mesmo local, caso os tribunais dessem razão aos reclamantes. O juiz aceitou este argumento e suspendeu a suspensão. Estava dado o mote para a batalha judicial. Oito grupos de moradores da zona, com o apoio da Plataforma de Defesa dos Parques e Jardins de Sevilha (constituída por mais de 50 associações independentes), reuniram-se e afinaram uma estratégia para o combate. José Miguel González, presidente da Asociación de Vecinos Huerta de la Salud-Prado de San Sebastián, esclarece:
A associação de moradores nunca se opôs à construção de um edifício para a Universidade de Sevilha, mas posicionou-se contra a decisão de construir arrasando o interior de um parque bonito e consolidado. Desde o primeiro momento, respeitámos os prazos e a formalidade da legislação espanhola e, no final, a justiça deu-nos razão e obrigou a repor os Jardins do Prado tal como se encontravam inicialmente.
No total, foram nove decisões do Tribunal Superior de Justiça da Andaluzia e nove decisões do Supremo Tribunal, todas favoráveis à petição dos cidadãos. A sentença do primeiro recurso interposto contra a construção da biblioteca, emitida a 16 de Junho de 2009, afirma claramente que os actos administrativos que permitiram a localização do edifício nos terrenos do actual parque “infringem de forma flagrante o planeamento urbanístico. Em especial, trata-se de uma decisão incoerente, irracional, arbitrária e destituída de razão”. A resposta do Supremo Tribunal ao recurso, lida a 13 de Junho de 2011, confirma a sentença e obriga a Junta da Andaluzia, a Universidade de Sevilha e o Ayuntamiento de Sevilha a demolir o edifício e a repor o parque tal qual existia antes da prevaricação.
APÓS O ‘STAR SYSTEM’
Como será de imaginar, Zaha Hadid insurgiu-se contra esta decisão dos tribunais, que considerou um “escândalo”.
Não conheço os detalhes, talvez alguém tenha cometido um erro, não faço ideia da história completa; mas, nestas circunstâncias, quando Espanha está a passar por sérios problemas financeiros, não se pode falar em poupanças e austeridade e, ao mesmo tempo, derrubar um edifício que iria ser útil para os estudantes; porque agora o mais importante é que as pessoas tenham educação.
Relativamente a estas preocupações, Hadid pode ficar descansada. Brevemente irá abrir uma nova biblioteca noutros terrenos pertencentes à Universidade, projectada por Miguel González Vílchez (arquitecto da Universidade de Sevilha, que tinha integrado o júri do concurso). Mas o que interessa questionar é o distanciamento da arquitecta-estrela e a noção de que os arquitectos se limitam a “responder ao programa”, fechando os olhos aos meandros das encomendas e aos contextos políticos em que aceitam operar. Será que Zaha Hadid se pode permitir “não conhecer”, ou não querer conhecer, a “história completa”? Não será que isso contribui, pelo menos em parte, para o próprio problema?
Sevilha demonstrou como a mobilização cívica pode contribuir para o destino da cidade. A força dos cidadãos pode derrotar a arrogância de um “sistema” destruidor da ordem urbana e económica. E essa demonstração pode ir além de um jardim numa zona elegante da cidade e tornar-se exemplar para outros combates. Quem sabe se o falhanço de Zaha Hadid em Sevilha, ao contrário do êxito de Frank Gehry em Bilbau, será um dia recordado como o fim do star system? Por enquanto, o Prado continua a ser dos sevilhanos (e também, lá no cantinho, dos portugueses).
Este texto foi publicado no J-A 250, Mai — Ago 2014, p. 400 – 403.
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