Lançamento em profundidade para o centro da área adversária



RICARDO LIMA (TEXTO) + Nuno Cera (FOTOGRAFIA)

Muda aos 5, acaba aos 10

Recinto desportivo N10-II, Eiras, Coimbra.
Projecto de COMOCO.

Aquecimento

Com o propósito de intervir sobre uma estrutura existente, os arquitectos foram convocados para desenvolver um projecto de recuperação e transformação de um armazém em recinto desportivo, equipado com dois campos de relva sintética. Sem a carga de intervir em património histórico (o armazém funcionava como depósito de materiais de construção), a obra assumiu um carácter experimental e livre de constrangimentos. Foi nessa perspectiva que o N10-II – na sequência de uma primeira experiência bem-sucedida entre o cliente e o atelier em 2004, o N10-I – assumiu a condição de “exercício construtivo de rápida execução”.

Primeiro tempo

A vontade de expandir o negócio N10 manifestada pelo cliente deu início a um período de prospecção de espaços, terminando com a visita a este armazém, localizado algures no emaranhado urbano em torno de Coimbra, um lugar “estranho”. O cliente decidiu comprar as naves industriais, construções genéricas das décadas de 1960 e 1970, de vão livre e cobertura curva treliçada. Além da substituição das chapas translúcidas da cobertura e da instalação do tapete verde, definiu-se um programa com “três áreas: recepção, zona de balneários e zona de festas” (sobretudo aniversários), que, a par da venda de bebidas hidratantes ricas em sais minerais (a N10 chegou a ser o maior revendedor da região centro) e dos placards e telões publicitários (importantes para simular uma atmosfera de estádio), “são fundamentais para a sustentabilidade e dinamização deste tipo de equipamentos”. Nas palavras do escritor espanhol Javier Marías, “o futebol é o regresso semanal à infância”.

A solução do projecto para criar o recinto é extremamente racional. Resulta da disposição de uma grelha (1,44 × 1,44 m) sobre um embasamento de infra-estruturas em cimento afagado (39,45 × 11,20 × 0,20 m). Esta faixa resulta da subtracção da área dos campos à largura de duas naves do armazém. É a partir dessa faixa que se define a distribuição funcional. As duas áreas maiores são os balneários e a zona de festas, divididas pela entrada, onde a recepção e o respectivo balcão são secundados por uma pequena copa de apoio às festividades. A grelha, aberta e permeável à luz zenital, circunscreve este programa, através de uma estrutura porticada composta por pilares e vigas em pinho americano, travados por elementos de MDF, que, deixados com acabamento natural, definem balcões, paredes e coberturas. Esta opção contribui para a clareza construtiva do volume e estabelece uma relação apropriada com a beleza tosca e funcional do armazém.

Como explica um dos autores, Luís Miguel Correia, “a escolha do material vem de um primeiro ensaio com o qual ficámos bastante agradados, no projecto de reorganização da colina do Castelo de Pombal”, onde uma série de mirantes em estrutura porticada de madeira (obra finalista do Prémio Nacional de Arquitectura em Madeira de 2011) eram um anúncio da solução a adoptar no N10-II. Também o mobiliário, composto por cadeiras, bancos e mesas em pinho e MDF lacado a preto, baralha e volta a dar, contribui para a coerência da proposta. A iluminação, suspensa e engenhosamente intercalada com a grelha fundadora, bem como o sistema de drenagem de águas pluviais, segue o mesmo princípio, assumindo-se, à vista, como mais uma camada ready-made sobreposta aos armazéns. O único sinal exterior da intervenção, a entrada no recinto através de um elemento em chapa metálica, “tipo túnel” que “perfura a parede do pavilhão”, é a excepção que confirma a regra.

Os campos, com dimensões regulamentares para partidas de futebol de 5 (admitem, considerando as tabelas e, sobretudo, a qualidade dos artistas, jogos de seis contra seis), correspondem a ¼ do investimento. Excluindo a aquisição do armazém de 2385 metros quadrados, a obra custou cerca de 200 mil euros – 100 mil relativos ao grosso da obra e os restantes 50 mil para reforços estruturais e arranjos pontuais. Uma obra praticamente “seca”, que, beneficiando da sistematização do processo construtivo, foi concluída em apenas cinco meses.

O cliente, Rui Campos, ex-jogador da Académica de Coimbra e herdeiro de uma linhagem de antigas glórias da mítica Briosa da década de 1960 e 1970, aguarda retorno do investimento inicial para avançar com a segunda fase da obra. O armazém original, composto por três naves, admite a instalação de um terceiro campo, “mais rápido, do tipo ‘futebol de salão’”, e, consequentemente, o expandir da grelha, ampliando a zona de festas.

Se a arquitectura desempenha um papel importante, é também pela sua vivência e utilização que um espaço pode ter a capacidade de nos surpreender e tornar-se especial. No N10-II reúnem-se para a peladinha semanal várias antigas glórias da Académica, em desafios durinhos mas sempre bem jogados, como tivemos oportunidade de testemunhar. Vítor Campos, possante médio ofensivo, internacional A português e titular na histórica final da Taça de Portugal de 1969 que o Benfica acabou por vencer com um golo de cabeça de Eusébio, e Miguel Rocha, filho de um dos monstros sagrados da história da Briosa, capitão e exemplo ímpar de fidelidade e dedicação ao clube onde jogou durante 18 épocas, são alguns dos ilustres habitués. Citando Diego Maradona, “la pelota no se mancha”.

Segundo tempo

Este modelo de intervenção pragmática, com benefícios evidentes para todas as partes envolvidas e para a comunidade que delas usufrui, tem contribuído para o desenvolvimento de uma nova consciência arquitectónica. Não apenas no que se refere à recuperação de equipamentos e espaços devolutos ou considerados obsoletos, dentro da cidade consolidada ou nas suas margens mais informais, mas sobretudo, e de um modo mais relevante, no que se refere a uma nova disponibilidade para repensar o âmbito e os propósitos da disciplina. É o caso desta obra, que resgata para um novo uso naves industriais no aglomerado limítrofe de Coimbra, um território entre o informal e o caótico. Não obstante, a comunidade que habita este território precisa, tal como qualquer outra, de equipamentos e lugares de encontro – lugares com um significado. Considerando o contexto económico português, cada vez mais adverso, esta forma pragmática de abordar os problemas é também a garantia de alguma encomenda. Este exemplo é a confirmação de que, afinal, a arquitectura ainda não acabou. Aplicando competências adquiridas em intervenções de outra envergadura, e de outros tempos, escritórios como o COMOCO podem talvez contribuir para um novo entendimento da profissão. Uma mudança de paradigma que, por questões endémicas à condição periférica do país, os arquitectos portugueses estão habilitados a trilhar. Uma nova cultura arquitectónica que possa aliar consciência social e cívica, sem abdicar da defesa do desenho e do rigor construtivo que a caracterizam.

Numa publicação recente da editora internacional a+t architecture publishers, foi dado destaque ao projecto para o Pavilhão N10-II. O título da publicação explica de imediato o sentido da escolha: Reclaim: Remediate, Reuse, Recycle. Ou seja, “Recuperar: Remediar, Reutilizar, Reciclar”. É o primeiro número de uma série dedicada a este tema, em sintonia com uma certa “euforia do re”, tal como a designou Rui Mendes no número anterior do J-A. A intervenção do COMOCO está na categoria Reuse, descrita pelos editores como a dos projectos cujo principal objectivo é dotar estruturas existentes de novos programas, promovendo lógicas de economia de recursos, ao arrepio da ocupação ex-novo do território. “A reutilização assenta mais em novos programas do que propriamente na recuperação integral do edifício.” Juntamente com projectos de natureza mais institucional (como as intervenções no antigo Matadero de Madrid) e propostas mais experimentais (como um jardim no interior de uma ruína no sul de Telavive), o N10-II destaca-se, quer pela crueza da solução, quer pelo baixo preço de construção, 419,29 €/m2 no total da obra (230 €/m2 se considerarmos apenas o novo volume e o seu embasamento). No texto introdutório, o editor e arquitecto Javier Mozas faz uma leitura inclusiva do fenómeno e define o tom da publicação e as suas escolhas: “Nestas intervenções que configuram o fenómeno ‘re’ não há uma satisfação final que resulte de o projecto ter sido concluído. Elas pertencem a ciclos sem fim que contradizem o sentido de permanência que tem sido historicamente atribuído ao ‘monumento’ enquanto objecto que deve ser restaurado e preservado. Elas fazem parte de ciclos que não visam confrontar o velho e o novo, porque procuram uma alquimia de misturas de usos, épocas, atitudes e soluções técnicas. Quando este efeito mágico acontece, tudo se justifica e compreende e é apreciado.”

Numa cidade de grandes tradições, o futebol, sobretudo o de rua, malandro e de dribles improváveis, terá, graças à arte e engenho de um craque das letras como Fernando Assis Pacheco, contribuído para alguns dos momentos maiores de literatura futebolística mundial. Assis Pacheco, que preferia ouvir relatos na telefonia enquanto escrevia, a assistir aos jogos televisionados, chegou a confessar-se: “O Eusébio marca livres de trinta metros, o Artur Jorge chuta em moinho, o Dinis faz fintas à bandeirola de canto, mas eu fui o maior craque da Rua Guerra Junqueiro e está para nascer um sucessor digno desse título.” Fazendo justiça a essa memória literária e sentimental, talvez o N10-II possa ser a incubadora das novas coqueluches da Briosa – da mesma forma que já é um importante contributo para o repensar do statu quo da prática da arquitectura. Aguardam-se, pois, os próximos dribles.

 

Este artigo foi publicado no J-A 247, Mai — Ago 2013, p. 126-137.

COMOCO, fundado em Coimbra pelos arquitectos Luís Miguel Correia (1970), Nelson Mota (1973) e Susana Constantino (1974), vem desenvolvendo um trabalho consistente em diversas áreas e contextos, desde a habitação unifamiliar à encomenda pública de maior escala. É nesta categoria, sobretudo em remodelações de património, que este escritório se tem destacado. São disso bom exemplo as intervenções no Castelo de Castelo Novo, concelho do Fundão (2003-2008), e no Castelo de Pombal (2004-2011). Ambas as obras revelam sensibilidade e apurado rigor construtivo para intervir sobre edifícios existentes, contribuindo para uma matriz de trabalho própria, que, desta feita, abriu o livro no relvado.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Localização
Eiras, Coimbra
Projecto
2011
Construção
2012
Promotor
N10 Indoor
Área do Pavilhão
2385,00 m2
Área do Equipamento de Madeira
665,00 m2
Valor total da obra
200000,00 €
Arquitectura
Comoco Arquitectos: Luís Miguel Correia, Nelson Mota, Susana Constantino
Especialidades
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Timotec; Flexifusão, Lda.