Tiago Trigo

Morte e vida de um pequeno concurso

Baseado na história verídica do Concurso Público de Ideias para a Reabilitação do Largo da Lapa, no Porto

O inferno dos vivos não é uma coisa que virá a existir; se houver um, é o que já está aqui, o inferno que habitamos todos os dias, que nós formamos ao estarmos juntos. Há dois modos para não o sofrermos. O primeiro torna-se fácil: aceitar o inferno e fazer parte dele a ponto de já não o vermos. O segundo é arriscado e exige uma atenção e uma aprendizagem contínuas: tentar e saber reconhecer, no meio do inferno, quem e o que não é inferno, e fazê-lo viver, e dar-lhe lugar.

Italo Calvino, As Cidades Invisíveis

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O modelo do concurso público é, em abstracto, um válido ditador de escolhas. Todavia, e sendo impossível determinar o mérito ou a qualidade absolutos, o concurso é também o representante de uma certa ilusão democrática que o poder político tem sabido explorar. O concurso, não raras vezes, apresenta uma ambiguidade valiosa: mediaticamente é democrático, e por isso legitimador da acção; operativamente é burocrático, e por isso anulador de tudo aquilo que se propõe representar. A esta fragilidade intrínseca do modelo têm-se associado, com maior frequência em tempos recentes, outras instabilidades: exigências de prazo irrealistas, falta de clareza dos regulamentos, divulgação silenciosa, júris sem formação adequada, não pagamento de verbas acordadas, etc.

O caso de que aqui damos conta – o Concurso Público de Ideias para a Reabilitação do Largo da Lapa – insere-se nesta tradição, e teve o condão de alargar a base de comportamentos estranhos que, em dezenas de casos específicos, se têm tornado cada vez mais genéricos. Estes processos, por serem quase sempre alvo de mediatizações incompletas e espaçadas no tempo, são de leitura difícil, o que muitas vezes torna quase impossível compreender a verdadeira dimensão de acontecimentos aparentemente isolados, como foi o caso do Concurso para o Largo da Lapa.

Enfrentemos, então, a imagem do que se oferece.

SEXTA-FEIRA, 24 DE SETEMBRO DE 1834
Aquilo que viria a ser tema do concurso teve lugar no dia 24 de Setembro de 1834, quando o rei D. Pedro IV (D. Pedro I do Brasil) morreu no Palácio de Queluz. Foi então que, por decisão que deixara em testamento e como homenagem ao apoio dado pela cidade do Porto durante as lutas liberais (1832-1833), o seu coração foi doado à Invicta, ficando depositado num mausoléu da capela-mor da Igreja da Lapa, onde ainda hoje se encontra.

SEXTA-FEIRA, 18 DE MAIO DE 2012
A nossa história cruza-se com esta quando, sensivelmente 178 anos após a morte do rei, Rui Rio, presidente da Câmara Municipal do Porto (CMP), constatou não existir na cidade “qualquer via pública que ostente o topónimo de D. Pedro IV”. Para obstar a tal falha propôs, em reunião camarária, que “ao novo arruamento projectado no Plano Director Municipal, vulgarmente designado como Avenida de Nun’Álvares Pereira [e que deverá ligar a Praça do Império à Avenida da Boavista] seja atribuído o topónimo de Avenida D. Pedro IV”.

TERÇA-FEIRA, 22 DE MAIO DE 2012
Na semana seguinte, ao levar a sua proposta a votos, Rui Rio teve oposição da bancada do Partido Socialista (PS), na voz do arquitecto Manuel Correia Fernandes que sugeriu atribuir o nome de D. Pedro IV ao Largo da Lapa, invocando a presença do coração do monarca na igreja; mas também Luciano Vilhena Pereira sugeriu atribuir o nome do rei à Via de Cintura Interna. Após longo debate, e sem obter consenso, Rui Rio decidiu retirar a proposta, remetendo nova votação para uma reunião camarária futura.

TERÇA-FEIRA, 5 DE JUNHO DE 2012
Duas semanas volvidas, a proposta foi de novo apresentada, agora (con)sensualizada em duas: a de Rui Rio, e a de Correia Fernandes. Em nova votação, ambas foram aprovadas. Ainda nesse encontro, e a pretexto da alteração toponímica, o PS propôs “a requalificação urbanística do Largo da Lapa”. Manuela Vieira, vereadora do PS, indicou que “deverá ser levado a cabo, em breve, um concurso de ideias”, “sendo depois avaliado o custo da proposta mais interessante” e, caso “fosse um custo suportável”, seria possível decidir avançar com o projecto. (Registe-se que, neste momento, a questão toponímica rivalizava já com o tempo “dedicado a outras questões, como a do futuro do bairro do Aleixo”.)

SEGUNDA-FEIRA, 15 DE OUTUBRO DE 2012
Após a manifestação de interesse em lançar o concurso para a reabilitação do Largo da Lapa – agora futuro Largo D. Pedro IV –, e pese embora o tempo dedicado ao assunto, o processo foi esquecido durante quatro meses, reemergindo apenas a propósito de um comunicado da Venerável Irmandade de Nossa Senhora da Lapa, em que esta informou o executivo camarário da sua discórdia relativamente à decisão de alteração toponímica.

TERÇA-FEIRA, 16 DE OUTUBRO DE 2012
No dia seguinte, a CMP informou ter respondido à Venerável Irmandade “há mais de 2 meses, dizendo que é sensível à argumentação”. Ainda nesse comunicado, pressionado pela necessidade de esclarecimento a propósito da questão toponímica, o executivo revela também que “a proposta de abertura do concurso de ideias será agendada em breve”. Paralelamente, a Comissão de Toponímia da cidade levou a cabo uma reunião, marcada com carácter de urgência, aprovando por unanimidade manter a designação de “Largo da Lapa”, revogando assim a alteração planeada.

SEGUNDA-FEIRA, 22 DE OUTUBRO DE 2012
Uma semana após o comunicado original da Venerável Irmandade, o vereador do Urbanismo, Gonçalo Gonçalves, fez chegar aos media um documento informando que iria ser votada em reunião camarária a proposta para realização do concurso com vista à “selecção de cinco trabalhos de concepção”. Foi assim que, por unanimidade, se aprovou a abertura de um “concurso público para a reformulação urbanística do Largo da Lapa”, com um prazo de vinte dias para apresentação dos trabalhos a concurso. A proposta de lançamento sublinhava que Rui Rio pretendia “dignificar o espaço urbano do Largo”.

TERÇA-FEIRA, 13 DE NOVEMBRO DE 2012
Três semanas depois, anunciou-se em Diário da República o lançamento do concurso e publicaram-se os “Termos de Referência”, documento de 51 páginas que aborda exaustivamente as condicionantes, exigências e expectativas relativamente às propostas a submeter pelos concorrentes. Determinavam-se aí os elementos de entrega, que deveriam ser constituídos por “peças escritas, gráficas e desenhadas” que caracterizassem a “composição espacial” da proposta e dos “elementos essenciais das redes viárias, especificando e fundamentando as opções da proposta ao nível da articulação dos diferentes tipos de mobilidade, percursos e circulações, capacidades de estacionamento e condições de acessibilidade”. Pese embora tais exigências, o documento estipulava que o concurso estaria aberto “a qualquer cidadão”. Ainda nesse dia, Pedro Santos, director municipal de Finanças, informa, sem qualquer justificação adicional, que “não serão atribuídos quaisquer prémios no âmbito do presente concurso”.

TERÇA-FEIRA, 26 DE NOVEMBRO DE 2012
No site da CMP, e sem que isso seja noticiado nos media, publica-se o documento “Análise a Pedidos de Esclarecimento”, onde, em resposta a questões levantadas pelos concorrentes, se refere que a expressão “futuro desenvolvimento dos projectos seleccionados”, utilizada nos “Termos de Referência”, deve ser interpretada apenas como uma “recomendação”. Informa-se também que, na verdade, o concurso “se destina apenas à realização de uma exposição pública”.

SEXTA-FEIRA, 30 DE NOVEMBRO DE 2012
Depois de ter contactado a CMP, e não obtendo resposta, a Secção Regional do Norte da Ordem dos Arquitectos (OASRN), emitiu um comunicado em que classifica a participação dos seus membros como “desaconselhável”, “lamentando a perda” de uma “oportunidade para discutir a cidade”. O prazo para submissão das propostas a concurso terminava três dias depois, a 3 de Dezembro.

QUARTA-FEIRA, 2 DE JANEIRO DE 2013
Em comunicado aos media, a CMP deu conta da existência de “dez [cidadãos] interessados em desenhar o novo Largo da Lapa, no Porto”. Na imprensa sublinha-se que a adesão foi “pouco comum”, tendo em conta que normalmente o número de participantes é inferior.

TERÇA-FEIRA, 2 ABRIL 2013
Com mais de um mês de atraso relativamente ao prazo estipulado, a CMP divulgou os “cinco trabalhos de concepção melhor classificados”. Não foram apresentadas imagens ou desenhos das propostas. No relatório apresentado não consta qualquer referência à data ou local para a exposição dos trabalhos. Pese embora esta divulgação incompleta, e mesmo não se vislumbrando qualquer tipo de debate em torno das propostas, a assessoria de imprensa da CMP afirmou que se havia atingido “o efeito prático pretendido”.

Se pensarmos nos diversos valores morais e éticos – bem, bondade, lealdade, altruísmo, honestidade, solidariedade, liberdade, verdade, justiça, sabedoria, coragem, etc., verificaremos que, se no meio deles estiver o funcionamento de uma máquina, estes valores tornam-se pouco consequentes.

Gonçalo M. Tavares, “Sobre os Tempos”

 Público, 3 de Janeiro de 2013

Epílogo

É difícil, por saturação, distinguir cada uma das falhas e a natureza de cada uma delas no processo acima sintetizado: perversão da ideia original do concurso; utilização dos media para veicular intenções falsas; fraco discernimento na prioridade dada aos desafios do município; aproveitamento do actual estado da economia para explorar uma classe profissional e assim obter a prestação de um serviço gratuitamente; incitamento à precariedade laboral; elaboração de uma consulta “aberta a qualquer cidadão” com exigências que conformam os actos próprios da profissão de arquitecto; desrespeito pelo Código dos Contratos Públicos; pretensão de “reabilitar um espaço urbano” através da realização de uma “exposição”, etc.

Ainda assim, mais do que permitir esta enumeração de truísmos, o que a narrativa oferece é o retrato da máquina política e a percepção do ritmo constante, seguro, inquietantemente certo, com que tal aparelho executa todas estas (dis)funções; o modo como esta máquina, que ostenta orgulhosamente o “rigor” como palavra-troféu da sua acção, é incapaz de compreender o duplo significado desse mesmo vocábulo: algo “insensível” ou “indiferente”.

Não houve consulta, nem concurso, nem participação, nem reabilitação; haverá talvez, em data e local a determinar, uma “exposição”, o “único compromisso assumido”. O horror perante o debate fez-nos chegar a um ponto tal que, num concurso aberto a todos os cidadãos, a presença de “dez interessados” chegou a ser classificada pelos serviços camarários como “elevada”, assim se evidenciando uma histórica falta de vontade em saber ler e perceber as verdadeiras causas do vazio da abstenção.

Por fim, talvez venha a ser esta indiferença maquinal que, a partir da sua violência, dê vida a essoutro estado de consciência, entre a vigília e o sonho, de que nos falava Italo Calvino. Só assim, mesmo se atordoados pelo seu ruído e hipnotizados pela cadência dos seus movimentos, poderemos distinguir o inferno a que a máquina dá corpo e, enfim, conseguir que o excepcional passe a ser regra.

 

Este artigo foi publicado no J-A 247, Mai — Ago 2013, p. 148-151.