ARX arquivo/archive, na Garagem Sul do Centro Cultural de Belém, Lisboa. Fotografia: Sérgio Catumba



ELIANA SOUSA SANTOS

‘MNEMOSYNE’ de uma nota só

Exposição ‘ARX arquivo/archive’

A exposição ARX arquivo/archive mostra a obra do atelier liderado pelos irmãos Nuno e José Mateus. É a segunda exposição monográfica dedicada ao trabalho dos ARX Portugal no Centro Cultural de Belém, a primeira – Realidade-Real –, em 1993, foi uma das mostras que inauguraram o CCB. Naquele momento, apresentada em paralelo com a exposição O Triunfo do Barroco – que se ofereceu como grande celebração do passado e apresentou Portugal à União Europeia –, a exposição apresentada pelos ARX celebrava o futuro: mostrava o trabalho de um atelier muito jovem e com uma forte influência internacional. Esperava-se um futuro próspero e, como em muitos momentos de prosperidade esperada, a arquitectura ocupava um lugar destacado em relação às outras artes. Hoje, a retrospectiva deste atelier está exposta na Garagem Sul, uma nova galeria de exposições temporárias dedicada exclusivamente à arquitectura, e foi integrada nas comemorações do vigésimo aniversário do CCB.

A exposição presente é um artefacto que evidencia o que se passou no país nos últimos vinte anos. É montada a partir do extenso arquivo de José e Nuno Mateus, que, ao guardarem com cuidado quase todas as maquetas de trabalho do seu atelier, mostram que valorizam a preservação da memória e a construção do seu lugar na história. A exposição é também um trabalho de interpretação de Luís Santiago Baptista, o comissário da exposição, que estruturou o material a expor em três narrativas paralelas: um atlas de parede (Atlas ARX), uma cronologia de maquetas arquivadas (Gabinete de Curiosidades ARX) e cinco filmes (Cinema ARX). Destes três momentos, o mais extraordinário é a cronologia de maquetas. Desde a entrada até ao final da sala, percorremos, segundo um sentido cronológico invertido, do presente para o passado, uma vasta paisagem, composta por inúmeras sequências de maquetas para cada projecto, guardadas em centenas de caixas de arquivo. Este arquivo permite expor o processo de trabalho do atelier ARX e diferencia-se de exposições de arquitectura mais ortodoxas em que a ênfase é dada ao resultado final do projecto. Observando especificamente cada proposta, podemos perceber as suas genealogias formais, identificar linhas de pesquisa interrompidas, elementos que desapareceram, e ver os protótipos incontáveis que permitiram chegar ao resultado final. Pontualmente, algumas das maquetas levitam sobre a paisagem de caixas de arquivo: são as maquetas finais de projectos-chave no percurso do atelier e que foram construídos.

As obras mostram que os últimos vinte anos foram relativamente auspiciosos, as construções correspondem, de certo modo, a sinais de prosperidade: a exposição universal, a casa de férias, o museu, o centro comercial. A paisagem de maquetas transmite uma imagem da grande quantidade de trabalho necessário para construir uma obra, e que a percentagem de projectos construídos, comparada com o número de projectos iniciados, é relativamente pequena, mesmo em tempos prósperos. O objectivo final do trabalho dos arquitectos – a obra construída – raramente é atingido. Logo, os instrumentos de representação – os desenhos, as maquetas – foram ganhando um estatuto de objecto único que os associa à arte. Muitos escritórios que surgiram ao longo da história recente da arquitectura deram esta importância aos instrumentos de representação. Na eventualidade de um projecto ser interrompido, os elementos de representação podem constituir a evidência do trabalho do arquitecto. E é neste sentido que esta exposição apresenta o processo de projecto dos ARX como uma potencial obra de arte, tal como o “gabinete de curiosidades” e o “atlas” têm sido ideias operativas no campo da arte. E entrar numa sala de museu – que foi uma garagem – transformada em arquivo evoca fortemente a experiência estética de algumas exposições de arte contemporânea.

Foi o historiador de arte Aby Warburg (1866-1929) que compôs os Bilderatlas Mnemosyne (atlas de imagens Mnemosine, a musa da Memória) – colectâneas de imagens que relacionavam gestos e formas de arte previamente desassociadas. Herdeiro de uma fortuna, Warburg pôde fazer investigação com fundos ilimitados, o que teve como consequência óbvia a dispersão. E foi essa dispersão que lhe permitiu antever uma história da arte não linear, na qual as obras-primas têm menos importância, e culturas cronologicamente díspares podem ser associadas no mesmo atlas visual. Na exposição, o atlas de parede apresenta o trabalho do atelier ARX como a nota de base, e tal como no “Samba de uma Nota Só”, de Tom Jobim, “outras notas vão entrando” que o associam a outras ideias: o espaço piranesiano, a genealogia formal de D’Arcy Wentworth Thompson, as caixas-museu de Marcel Duchamp. E estas ideias entrelaçam-se com outras evocadas pelos desenhos e fotografias expostos: a estética industrialista dos anos de 1990, o desconstrutivismo ou a arquitectura portuguesa pós-1970.

Do mesmo modo, os cinco filmes do Cinema ARX, realizados por Carlos Gomes, transportam a ocupação real dos edifícios para a experiência de uma obra de arte contemporânea – os filmes que se vêem em loop e com o ritual de colocar headphones para ter acesso à sua paisagem sonora. Os filmes são também pedagógicos, no sentido em que apresentam a perspectiva de um arquitecto/realizador sobre uma obra de arquitectura: a atenção dada ao espaço, ao contexto, aos pormenores desenhados, aos materiais, às texturas.

Esta é uma exposição para visitar mais do que uma vez, e que se recomenda a arquitectos, a estudantes de arquitectura e a não-arquitectos que queiram ser surpreendidos pelos bastidores do trabalho de arquitectura. Embora monográfica, mostra as ambições e as conquistas dos últimos vinte anos do país, vistos de uma perspectiva que nos apresenta projectos de arquitectura como aspirações colectivas da sociedade. Para sair da sala fazemos o percurso inverso, e passamos pelos últimos vinte anos em direcção ao futuro. Uma pergunta se torna inevitável: Como irão ser os próximos vinte anos?

 

Este artigo foi publicado no J-A 247, Mai — Ago 2013, p. 160-163.

ARX ARQUIVO/ARCHIVE

Curadoria
Luís Santiago Baptista

Projecto Expositivo
Nuno Mateus
José Mateus

Desenho Gráfico
Pedro Falcão

Filmes
Realização e Montagem: Carlos Gomes
Direcção de Fotografia: Miguel Robalo
Direcção e Mistura de Som: Vasco Pimentel

Local
Centro Cultural de Belém – Garagem Sul,
21 de Março a 21 de Julho de 2013