A massa construtiva de Vila d’Este entre os vestígios de um mundo rural que esconde os nós e acessos da auto-estrada



André Tavares / Marta Labastida (TEXTO) + Nuno Cera (FOTOGRAFIA)

‘Face-lift’ ou viver melhor?

Reabilitação de Vila d’Este, Vila Nova de Gaia. Projecto de Nuno Abrantes

 Como tudo na vida, as construções avariam-se. Viver numa “casa avariada” não é bom. Assim vivia grande parte dos 8000 residentes em Vila d’Este, um conjunto de prédios em Vila Nova de Gaia, construído no início dos anos de 1980. Neste momento está em construção a segunda fase da operação de requalificação da envolvente dos edifícios. Uma obra que não só transformou a paisagem urbana como ofereceu aos moradores uma vida com mais qualidade.

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PRELÚDIO TRÁGICO

O projecto de licenciamento de 2085 fogos para a Quinta do Monte Grande, do arquitecto Carlos A. C. Garcia, deu entrada na Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia em 1979. O empreendimento foi levado a cabo pela construtora Niassa, sendo o projecto aprovado em 1983. As obras avançaram, com um nome comercial apetecível – Vila d’Este – e grande visibilidade da auto-estrada Porto-Lisboa, que dava os seus primeiros passos. Os edifícios foram construídos num sistema de pré-fabricação “túnel”, que permitiu montar a estrutura num ápice, brindando os automobilistas com a miragem de uma nova cidade. Vila d’Este oferecia habitação a custos controlados, capaz de suprir uma falta de habitação económica na região metropolitana do Porto. A obra, e a comercialização dos apartamentos, avançou até à falência da construtora.

A falência complicou o processo, mas não impediu a ocupação das casas pelos proprietários. Com a intervenção do Instituto de Gestão e Alienação do Património Habitacional do Estado (IGAPHE), bancos credores completaram a construção para tomar posse de várias fracções. A Câmara Municipal também adquiriu apartamentos para habitação social. As obras concluíram-se no início dos anos de 1990, mas certas opções construtivas não resistiram à complicação destes solavancos administrativos. Com problemas de gestão, os edifícios começaram a degradar-se. O bairro expandiu-se para nascente com edifícios de outra natureza, desde a habitação colectiva de promoção privada a edifícios no âmbito do Plano Especial de Realojamento (PER). Durante esses anos também foram construídos alguns equipamentos, três escolas, um gimnodesportivo e uma piscina, que deram novo sentido aos espaços colectivos de Vila d’Este. Mas os anos foram impiedosos para a construção dos primeiros blocos. As paredes de alvenaria simples sem isolamento provocaram condensações no interior das habitações e fissuraram em muitos pontos. No exterior, as pinturas degradaram-se, denegrindo o seu aspecto. Para cúmulo, a rede de saneamento colapsou. A construção optara pelo prolongamento da estrutura “túnel” até à fundação, com vários pisos de caves não acessíveis abaixo do nível de drenagem do saneamento. Ao fim de alguns anos, os cotovelos de ligação das quedas verticais às condutas de saída começaram a fissurar, resultando rupturas nas caves não acessíveis. Sem manutenção, não tardou que as fundações dos prédios se transformassem em fossas sem sumidouro. Um “mar de esgoto”.

DAR A VOLTA AO TEXTO

Nos anos 2000, a Câmara Municipal criou um gabinete de Paisagem Urbana para qualificar os espaços colectivos do concelho. Com recursos limitados, “como é que Vila Nova de Gaia podia ficar mais bonita”? A dimensão e visibilidade de Vila d’Este trouxeram o conjunto para primeiro plano, embora o facto de os prédios serem propriedade privada levantasse questões sobre o limite da intervenção. Perante uma população desmoralizada, só com vontade política foi possível uma interpretação lata da noção de espaço público para intervir numa zona onde a determinação da propriedade era ambígua. Com um investimento mínimo, mobilizando serviços próprios, a Câmara resolveu o problema do saneamento dos prédios, conquistou a confiança dos moradores e abriu outras perspectivas para a renovação de Vila d’Este.

Quando se constituiu uma “Associação de Proprietários” o termo causou estranheza, porque o conjunto estava conotado como habitação social. Vila d’Este tem mais de dez associações de moradores, com diferentes objectivos e orientações políticas. A Associação de Proprietários, que combina na sua direcção várias cores partidárias, vislumbrou na vontade da Câmara Municipal uma oportunidade para inverter o processo de decadência física e social do bairro. O consenso foi crucial para envolver a população e conseguir, através da empresa municipal Gaiurb, adjudicar ao engenheiro Vítor Abrantes um diagnóstico de patologias para o conjunto dos 109 edifícios de Vila d’Este.

Este trabalho foi o ponto de partida para uma renovação integrada do conjunto. O primeiro passo foi um inquérito, levado a cabo com o voluntariado da Associação de Proprietários. Foram inquiridos todos os habitantes e feita uma primeira identificação dos problemas construtivos. A partir desse inquérito foi possível escolher uma amostra de fracções para realizar observações detalhadas e caracterizar as patologias da construção. À parte alguns problemas estruturais, havia muitas humidades no interior das habitações como resultado de infiltrações e condensações. Foi possível identificar a origem das condensações na falta de isolamento e no uso intensivo das habitações, com pouca ventilação. O diagnóstico permitiu estabelecer as condições técnicas para um projecto de reabilitação. Ao invés de uma solução meramente técnica, a opção foi dar relevo a um projecto de arquitectura capaz de introduzir mais-valias sem onerar a intervenção. Essa reabilitação, fundamental para renovar a imagem urbana do conjunto, criou entusiasmo nos moradores pela possibilidade de reconquistar uma expressão digna para as suas habitações.

SOLUÇÕES DE PROJECTO

Ao contrário de uma simples operação de cosmética, o projecto tinha como objectivo resolver as “avarias” dos edifícios. Num contexto jurídico excepcional, com o sector público a fazer obras em propriedade privada, houve limitações nas intervenções. Sendo compreensível a opção de não intervir no interior das habitações, outras questões como a abolição de obstáculos nos acessos aos elevadores foram percorrendo as fases do projecto até serem excluídas por razões jurídicas. Em qualquer dos casos, as soluções arquitectónicas derivaram com naturalidade do diagnóstico de patologias.

O projecto, da autoria do arquitecto Nuno Abrantes, tem três componentes estruturantes. A primeira componente é a reabilitação das coberturas, substituindo as coberturas em fibrocimento por painéis sandwich com isolamento térmico e revestimento em alumínio, com novas caleiras e aplicação de rufos. A homogeneização das coberturas, eliminando espaços abarracados anexos aos apartamentos dos últimos pisos, levou à construção de um novo compartimento capaz de dotar cada apartamento com duas frentes e permitir ventilação transversal. A nova forma da cobertura está articulada a uma marcação formal das caixas de escada, com chapa de alumínio perfurado que mantém a iluminação das escadas e produz um novo ritmo na composição dos alçados. A segunda componente é o revestimento das fachadas com sistema compósito de isolamento térmico, vulgarmente designado como capoto. Trata-se de pôr um “capote” no edifício, uma solução construtiva capaz de aumentar o isolamento térmico ao ponto de evitar as condensações que eram um dos principais problemas de Vila d’Este. Nesta operação foram também afinados vários detalhes construtivos, como soleiras, peitoris e outros remates. A terceira componente é a utilização de painéis em cimento reforçado com fibra de vidro (GRC) no embasamento dos blocos, para evitar a degradação por vandalismo do capoto. Este embasamento, que abraça comércio, garagens e arrumos, “permite ancorar os edifícios nos locais onde se implantam”. A combinação destas três componentes responde às exigências técnicas da reabilitação e confere ao projecto a capacidade de reinventar a expressão formal do conjunto, atribuindo uma nova imagem aos edifícios.

MÃOS À OBRA

O trabalho de diagnóstico em 2003 e o arranque do projecto em 2006 corresponderam a investimentos da Gaiurb capazes de manter activo o envolvimento da população, quer através da Associação de Proprietários, quer através do entusiasmo gerado pela presença dos técnicos nas fases de projecto e diagnóstico. Entre 2004 e 2007, foram procuradas soluções para o financiamento da obra, através da Sociedade de Reabilitação Urbana e do programa Prohabita. Mas só em 2008, através do Quadro de Referência Estratégica Nacional (QREN), é que se encontrou uma solução viável. Essa hipótese de financiamento comunitário inscreveu-se no âmbito do cumprimento de critérios de eficiência energética, o que levou a pequenos ajustes no projecto. Assim, numa versão inicial as caixas de escada não tinham qualquer isolamento previsto, mas foi necessário acrescentar uma camada de isolamento para justificar o financiamento dessa parte da obra.

Assegurado um financiamento europeu da ordem dos 84%, foi possível avançar com a execução de uma primeira fase da obra, que arrancou em Setembro de 2009, após ter sido adjudicada por concurso à construtora Engenheiros Associados. Só que, em vez do ano previsto, a obra demorou o dobro, tendo sido finalmente entregue em Abril de 2012. Os seis blocos que foram objecto de intervenção – 36 prédios, 766 habitações, 31 espaços comerciais – estavam em uso, dificultando a coordenação com os habitantes e a segurança no estaleiro.

Durante esta primeira fase, foram feitas alterações substanciais ao projecto. O revestimento das caixas de escadas, previsto em GRC, executou-se em alumínio. Certos elementos não se realizaram, como os estendais para secar roupa, os quais, além de conferirem novas valências às habitações, iriam agitar a expressão formal dos edifícios. A alteração com um impacto mais forte na imagem do conjunto foram as grelhas de sombreamento em algumas fachadas sul, previstas em GRC e executadas em alumínio. Estas alterações tinham justificações técnicas e construtivas. Mas, sobretudo, permitiram uma gestão dos custos que resultou num decréscimo de quase 20% do valor da obra. Ao contrário das “derrapagens orçamentais” comuns em obras públicas, foi possível controlar o custo da empreitada da primeira fase da obra de Vila d’Este sem pôr em perigo a execução da segunda fase (12 blocos correspondendo a 73 prédios, 1319 habitações e 45 espaços comerciais). A presença de assistentes sociais (por intermédio de outra empresa municipal, a Gaia Social) foi relevante para garantir a comunicação eficaz entre moradores e a empresa construtora, numa triangulação entre dono de obra, fiscalização, empreiteiro-geral e subempreiteiros, projectistas, associações de moradores e proprietários.

EM CONSTRUÇÃO

O êxito da primeira fase, quer a nível financeiro quer a nível do resultado da obra, foi fundamental para avançar com a segunda fase. Esta intervenção contribuiu para superar a imagem estigmatizada de Vila d’Este, promovendo o incremento das condições de habitabilidade dos apartamentos através de pequenas obras levadas a cabo pelos moradores. O projecto não tratava apenas a “imagem” do edificado, porque se destinava a resolver avarias objectivas nos edifícios. Apesar das limitações jurídicas e dos constrangimentos no investimento, a arquitectura teve um papel decisivo na requalificação do património edificado. E a vida útil destes edifícios foi substancialmente prolongada.

Hoje, os padrões de conforto e de eficiência construtiva são diferentes do que eram há poucos anos, colocando os arquitectos perante um amplo campo de trabalho. Para edifícios com valor histórico, artístico ou arquitectónico, o recurso ao arquitecto é incontornável, por convicção ou contingência legal. O mesmo não parece acontecer em situações mais neutras, em que a reabilitação pode ser confundida com uma intervenção exclusivamente técnica. Vila d’Este vai entrar na segunda fase da sua reabilitação e demonstra que a competência do arquitecto pode ter um papel determinante na reconfiguração do parque habitacional, com consequências sociais positivas. Não basta construir ou reconstruir, é imprescindível podermos ser felizes.

Este artigo foi publicado no J-A 248, Set — Dez 2013, p. 200-211.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


Localização
Vilar de Andorinho, Vila Nova de Gaia
Diagnóstico
2003-2005
Projecto
2006-2009
Construção 1.ª fase
2009-2012
Construção 2.ª fase
2013-
Arquitectura
Nuno Abrantes
Colaborador
Mathilde Bauchet
Diagnóstico e Projectos de Especialidade
Vítor Abrantes, Consultoria e Projectos de Engenharia
Dono de Obra
GaiaSocial, EM Gaiurb, Urbanismo e Habitação EM
Empreiteiro Geral
(1.ª fase)
Engenheiros Associados
Director Técnico
Hilário Afonso
Engenheiro Residente
Pedro Marques
Fiscalização
Município de Vila Nova de Gaia: Clara Costa, Rosa Dias