EDITORIAL
O FIO DA NAVALHA A mudança sociológica que a arquitectura portuguesa viveu nos últimos vinte e cinco anos merece um balanço. Nem os arquitectos continuam a ser uma classe à parte no panorama das profissões – senhores de meia-idade, incompreendidos e marginalizados –, nem o contexto socioeconómico do país é propenso à retoma da indústria da construção. Uma vez ultrapassada a barreira dos vinte mil arquitectos, a proliferação de escolas de arquitectura parece ter acabado. O resultado da abertura da profissão não foi apenas a desvalorização do trabalho, foi, também, a banalização da arquitectura e dos arquitectos. É estranho pensar que, em cada quinhentos portugueses, um deles tem formação em arquitectura; e que, tendo em conta o envelhecimento da população, a maioria se encontra do lado da população activa. O resultado, aparentemente inevitável, é a famigerada emigração, talvez positiva em alguns casos específicos, mas profundamente negativa e prejudicial se encarada como fenómeno colectivo. Mas há quem resista, e Portugal ainda não é apenas um país de turistas. O que fazem, e o que podem fazer, os arquitectos portugueses? Uma das respostas é o trabalho de manutenção e reabilitação do património. Os artigos da secção crítica abordam exemplos dessa tarefa infinita. O acompanhamento minucioso de obras de restauro exige ferramentas conceptuais que dêem resposta. Metabolismo, imaginação, destruição, narrativa, tecnologia e, até, o inconsciente são conceitos que podem guiar o desenvolvimento do projecto, articulando as acções da construção com os desejos e as condições de execução. Para além da forma e das soluções técnicas, reabilitar exige um modo de pensar que renova os limites do fazer dos arquitectos. Essa dimensão experimental atravessa todos os artigos, desde o risco e as virtudes da exportação, aos trabalhos menos convencionais dos festivais de Verão, ou ainda às experiências tecnológicas no domínio da habitação. Estes trabalhos dão-nos conta de que há um mundo novo por construir, e que os arquitectos continuam a ter um papel preponderante na imaginação e descoberta desse mundo, seja do ponto de vista da organização do trabalho, seja pela inovação tecnológica, seja pela articulação da tecnologia com recursos ambientais, técnicas de construção tradicionais ou modelos culturais alternativos, seja, ainda, pela exploração de soluções formais capazes de conferir carga simbólica ao labor da construção. Das intervenções em situações sociais periclitantes, ao debate sobre a participação pública; do envolvimento dos arquitectos e processos de gestão e administração pública, aos progressos nas tecnologias digitais, não faltam frentes de trabalho que nos dão matéria de reflexão sobre a expansão do campo profissional e disciplinar. Talvez seja essa expansão, aliada ao carácter generalista do ensino da arquitectura, que explica a relativa resistência dos cursos de arquitectura num momento em que se assiste à falência generalizada dos cursos de engenharia. A tese falaciosa de engenheiros pragmáticos contra arquitectos sonhadores continua, há séculos, a aguardar confirmação. Para explicar a sobrevivência do ensino de arquitectura é mais plausível considerar a abrangência de competências adquiridas e a diversidade de saídas profissionais do que acreditar na ingenuidade dos estudantes. Em qualquer dos casos, este retrato traz-nos dados muito relevantes: confirma-se o decréscimo acentuado do número de estudantes; e o facto de dois terços dos alunos frequentarem o ensino público. No que ao futuro diz respeito, a reportagem deste J–A desmente a responsabilização da sobrecarga de formação que tem sido imputada ao ensino privado. De qualquer modo, a imagem que transparece das instituições de ensino é de um certo imobilismo. A confiança no ensino generalista ao nível do mestrado integrado e na especialização em pós-graduações (que, pela insistência e dimensão dos programas doutorais, parecem confundir investigação com formação avançada), bem como a indefinição dos sistemas de financiamento do ensino (através da investigação), estão a gerar uma certa baralhação entre a orientação da formação (ainda herdeira de modelos profissionais do século XX) e a transformação sociológica que está a ocorrer na prática profissional. Quais as expectativas dos futuros arquitectos? Porque não são os estudantes a liderar o debate sobre os caminhos da prática profissional e da cultura disciplinar? Porque é que as escolas de arquitectura parecem estar adormecidas? Os arquitectos e a arquitectura estão no fio da navalha. Por entre os estilhaços da crise não faltam sinais de vitalidade que auguram um futuro promissor, mas há que continuar a expandir a cultura arquitectónica para evitar que a profissão se transforme numa banalidade dispensável. A Direcção do J–A
Este texto foi publicado no J-A 251, Set — Dez 2014. |