Pedro Maurício Borges e José Neves



ARQUITECTURA DE AUTOR

J—A conversa com Pedro Maurício Borges e José Neves

A arquitectura de autor é uma questão específica e, de certa forma, minoritária no contexto da produção da construção. Perante a coincidência de dois autores já galardoados com o prémio Secil, formados no mesmo ano e no mesmo curso de arquitectura, e que partilham, desde há um ano, o mesmo espaço de trabalho, fomos ao seu encontro para conversarmos sobre autoria e prática profissional num contexto que é cada vez mais adverso a uma certa e determinada cultura arquitectónica.

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J–A Como foi o vosso percurso profissional? Como é que os termos da vossa formação conduziram a uma prática de arquitectura com um cunho autoral tão específico?

PEDRO Porque é que somos arquitectos?

J–A Não. Como é que começaram a ser arquitectos? Como foi a decisão de escolher arquitectura e qual a vossa formação? Onde foi, como foi, o que consolidou ou que dúvidas se colocaram sobre essa opção…?

PEDRO Fizemos o curso ao mesmo tempo e na mesma escola, mas tivemos um percurso diferente, tivemos professores completamente diferentes.

JOSÉ Ficava bem dizer que queria ser arquitecto desde pequenino, ou que foi por ter visto o Fountainhead em adolescente, mas não… Para mim foi um mero acaso.

PEDRO Para mim, foi cobardia. Se tivesse tido coragem tinha ido para artista plástico. Um artista plástico não pode ser um bom artista plástico, ou um médio artista plástico… Ou se é um grande artista ou então não vale a pena. Ao passo que ser um bom arquitecto…

J–A Antecipaste esse problema?

PEDRO Nada sabia de arquitectura, tinha a vaga ideia de que tinha a ver com desenho técnico, e disso eu gostava. Mas parecia-me que ser bom arquitecto já era muito bom. Tomara todos os arquitectos serem bons arquitectos.

JOSÉ Quando digo que foi por mero acaso, foi porque gostava de desenhar, e no momento em que estava – literalmente – na fila para me inscrever em artes plásticas, vi que não estava lá nenhum amigo meu. Na fila ao lado, que era para arquitectura, estavam lá alguns amigos, portanto mudei de fila. Mas ao fim de um mês na escola já só pensava em ir-me embora. Achei quase tudo terrível, deixei rapidamente de pôr lá os pés. Lembro-me de uma lição muito intensa sobre escadas dada pelo Frederico George, mas creio que ele já lá ia muito pouco, foi o último ano em que ele deu aulas. No ano seguinte, decidi reinscrever-me e tive muita sorte. Tive como professores o Duarte Cabral de Mello, em Projecto, e o Daciano da Costa, em Desenho. Percebi com o Duarte que a arquitectura pode ser uma maneira de pensar o mundo – e ser uma festa – e aprendi com o Daciano que a arquitectura é um ofício. Passei a pôr os pés na escola todos os dias. E nesse ano houve a exposição do Alvar Aalto na Gulbenkian, que foi uma espécie de prova de que afinal podia passar-se uma vida a trabalhar em arquitectura. No terceiro ano também tive sorte, porque, novamente por acaso, tive como professor o Carrilho da Graça, muito jovem – “Intervenções sobre este trabalho” era uma espécie de grito de guerra repetido muitas vezes, que nos punha a discutir permanentemente uns com os outros sobre os trabalhos que íamos fazendo. E um professor de História, Horácio Bonifácio, que ensinava muito bem o maneirismo português e o internacional. E havia um grupo de amigos, claro. As coisas foram acontecendo muito por razões afectivas. E quando damos por nós, estamos a trabalhar.

J–A Começaste a trabalhar enquanto estudante?

JOSÉ Sim. Do segundo para o terceiro ano. Comecei a trabalhar como desenhador no atelier da Bárbara Miguel e do Nuno Antunes, e nessa altura era normal andarmos a saltitar entre ateliers, a dar uma mão em concursos ou em pontas finais de trabalhos. Ainda antes de acabar o quinto ano comecei a trabalhar no atelier do Duarte Cabral de Mello e da Maria Manuel Godinho de Almeida, onde fiquei alguns anos. Até que abri atelier com o Francisco Freire, com quem partilhei alguns trabalhos, e as coisas foram acontecendo. De repente, fazes um concurso e perdes, fazes outro que ganhas, aparece alguém que quer que faças qualquer coisa, e as coisas foram acontecendo. Não foi: “Eu quero ser arquitecto…” Quando entrei para a escola nem sabia o que isso era.

J–A Pedro, durante o curso também tiveste professores que te marcaram? Ou o teu interesse e encanto surgiu por outras vias?

PEDRO Eu estudei à tarde, os bons professores estavam na manhã. Tive um excelente professor de Projecto no quarto ano que foi o Santos Machado. Até lá não dava sequer para se levar a sério. Era fácil, não exigia esforço e ia-se fazendo. De qualquer modo, nas Belas-Artes havia um ambiente fabuloso. Tínhamos aulas no Convento de São Francisco, e eu passava mais tempo no pátio com essa malta, a geração dos Homeoestéticos e outros, mais velhos. E com a malta de arquitectura que ia conhecendo, de outros anos. Isto é um pouco difícil de dizer, porque reconheço que tive um ou outro professor igualmente esforçado, mas sem grande impacto. Aprendi mais com os alunos, com malta que ia fazer os dois primeiros anos ao Porto e depois vinha para Lisboa. O Santos Machado encostava toda a gente à parede, inclusive essa malta que vinha apetrechada e que tinha uma ideia do que poderia ser fazer arquitectura. Ao passo que a escola que eu tive era completamente freeriding, dava para fazer tudo: no segundo ano cheguei a fazer um projecto dadaísta. No início dos anos 80, vivia-se ainda uma espécie de euforia pós-PREC. Não haver escola parecia ser natural, parecia fazer parte daquele tempo. Depois fui percebendo que Lisboa terá sido sempre mais ou menos assim, mas via vantagens em que houvesse escola, que a malta que vinha do Porto sabia o que fazia, vinha apetrechada de uma moral. Depois contestava-se essa moral ou não, mas tinham outras capacidades e competências.

JOSÉ Pedro, a última coisa que eu esperava de ti era esse discurso reaccionário… Dizeres mal de uma escola por te ter permitido fazer um projecto dadaísta? Euforia pós-PREC? Que havia uns tipos que sabiam o que faziam? Ó pá, desculpa, mas estou espantado…

PEDRO [Risos] Verdade. Quer dizer, vamos lá ver. Era um projecto em Porto Brandão. Porto Brandão tinha aqueles bairros-de-lata – não há arquitectura mais dada, de corte e cola, do que a de um bairro-de-lata, o professor tentou reagir, claro, respondi-lhe com Hugo Ball. Mas pronto, eram os anos 80. A questão era mesmo essa.

 

ACTIVIDADE PRÓPRIA

J–A José, qual foi o pretexto para montarem o atelier partilhado e para iniciarem a actividade própria. Qual foi o projecto, ou encomenda, ou o pretexto para isso? Ou na vossa geração havia qualquer outro desígnio que levava a montar loja e depois logo se via?

JOSÉ No meu caso foi exactamente assim, montávamos a loja e depois logo se via. Abrimos aqui na Baixa, nas Escadinhas de São Cristóvão, em 1990 ou 1991. Era normal começarmos por trabalhar em ateliers e depois seguirmos o nosso caminho – atenção, não digo carreira, que isso é outra coisa –, a velha história do mestre e do aprendiz. Era quase inevitável que isso acontecesse, e estava com vontade de outra festa, de encontrar outras coisas. Mas não tínhamos trabalho praticamente nenhum – eu estava a começar a desenhar uma casinha para um amigo. Por falar em festa, em grande festa, foi também nessa altura que conheci o Vítor Figueiredo. Desafiava-me, volta e meia, para trabalhar em projectos com ele. Tive essa sorte imensa. É importante dizer que nessa altura eu já dava aulas e o Francisco também, portanto tínhamos os dois como pagar a renda de casa. As coisas talvez fossem mais doces e dava para avançar, não foi um “grande desígnio”. Fizemos concursos, que havia imensos, e pouco depois ganhámos um concurso público para fazer um edifício de grande dimensão, na cidade universitária, o C6.

PEDRO O director regional da Habitação nos Açores costumava angariar colaboradores junto do Santos Machado. Fui a uma entrevista a meio do último ano lectivo. Em Setembro tinha concorrido para dar aulas e fui colocado numa escola onde tinha sido aluno, ia ser colega dos meus ex-professores. Estava bastante contente e excitado com essa perspectiva. Mas em Setembro chamaram-nos para os Açores, à minha namorada, que também era arquitecta, e ao Rui Horta Santos. Na verdade, foi a Cristina que nos convenceu a irmos. Eu não estava com vontade nenhuma de ir, não conhecia os Açores, que não tinham nada a ver com a percepção que hoje temos, só existia aquela imagem da lagoa das Sete Cidades em alguns calendários. Depois alguém descobriu que havia ondas surfáveis e lá fomos para a divisão da habitação da Secretaria Regional. Estive lá dois anos.

No final desses dois anos o director pôs-me a refazer a Feira Açores, que era uma espécie de parque de exposições para as actividades produtivas regionais. O terreno era fantástico, um antigo aeroporto – chamado aerovacas – que tinha uns pavilhões que decidi aproveitar e refazer muros de pedra seca e mais algumas construções. O Rui, que tinha ido comigo para os Açores, ajudou-me a participar num concurso de primeiras obras, em que tive o Prémio Revelação com o José Carlos Portugal (o Manuel Botelho ganhou o primeiro prémio). Foi esse prémio que, para todos os efeitos, abriu portas para o ensino.

Depois fui trabalhar para o atelier do Bugio, com o João Luís Sousa Menezes, pai do João Favila. Era feliz. Fazíamos os trabalhos, o boss geria a parte administrativa e a relação com os clientes, todos os anos havia aumento de salários. Mas era bom demais para durar. Houve um trabalho grande que não foi pago…

Às tantas, já estava a dar aulas em Coimbra, e o Sérgio Tréfaut pediu-nos para fazer o Mês da Fotografia, umas vinte e tal exposições. Montámos um atelier em casa. O Paulo Fonseca vivia com o Paulo Palma e o Filipe Macedo, e o Miguel Figueira, que estava a estagiar comigo – ou nós com ele –, também fez parte da equipa. Tínhamos atelier em casa deles, atelier no Bugio, e a seguir vieram mais duas ou três exposições, e foi nessa altura que eu, o Paulo Fonseca e o Miguel Figueira montámos o atelier, no princípio dos anos 90.

J–A Qual foi o número máximo de colaboradores que tiveram e em que situação, ou em que projecto? E quantos têm agora?

JOSÉ Agora são três. Houve sempre uma média de quatro, ou cinco, uma espécie de banda pop – um cantor, que escreve as canções, faz os arranjos, e um guitarrista, um baixo, um baterista. Às vezes para tocar algumas coisas é preciso ir buscar mais um guitarrista, um pianista, um quarteto de cordas… e depois volta-se à formação original. No máximo, nove, dez.

J–A Mas não tens sentido um decréscimo de encomendas?

JOSÉ Não são as encomendas, é a perspectiva. De qualquer modo, nesta vida a perspectiva foi sempre muito curta, uma luta dia a dia, mês a mês.

J–A E o prémio Secil, teve alguma consequência?

PEDRO Ganhei o prémio com uma casa. Terá trazido mais uma ou outra casa, mas nada de relevante. Sempre angariei trabalho boca-à-boca. Uma pessoa que conhecia que recomendava. O último trabalho que estamos a fazer, em Alfama, os pais são amigos de uma açoriana para quem fiz uma casa e que nos recomendou. Na altura houve um presidente da câmara daqui, uma artista plástica dacolá que viu o jornal, e também se entusiasmaram. Contam-se pelos dedos da mão. Mas eu também não queria, aquilo foi assustador. Era demasiado novo.

J–A Tinhas que idade quando recebeste o prémio?

PEDRO Quarenta. Mas nunca tive trabalhos grandes. Nunca ganhei um concurso grande, às vezes ficávamos em segundo. Voltando à pergunta, normalmente somos três. Em concursos foi sempre o máximo… mas não me lembro de ultrapassar os sete. Agora tenho dois colaboradores.

J–A A tua actividade centrou-se sempre em encomenda doméstica.

PEDRO Nunca seria arquitecto se não tivesse ido para os Açores. Seria professor de uma escola secundária. O que aconteceu é que fiz lá amigos e a obra da feira teve uma certa visibilidade local. Aqueles muros de pedra já não se faziam e foi difícil arranjar uma equipa para trabalhar pedra seca. Aquilo tem uma técnica específica, e tinha-se perdido essa prática. O dono da casa premiada foi-me buscar por causa do trabalho da feira, por causa dos muros de pedra. Ou seja, passei a ter encomenda sobretudo nos Açores, mas agora está péssimo. Aqui fui tendo trabalho avulso, tentei concursos, mas sem grande sucesso, a perspectiva veio sempre de lá.

 

OPTIMISMO

J–A Corre agora a notícia de que os arquitectos na Europa estão optimistas. Chegou-se à conclusão de que Portugal tem dois arquitectos por cada mil habitantes numa média europeia de um arquitecto para cada mil habitantes – só é superado por Itália, que tem 2,5 arquitectos por mil habitantes.

PEDRO Creio que, mesmo antes da crise, a situação dos arquitectos e da arquitectura em Portugal era um contra-senso. Fazer arquitectura é caro; se o trabalho de um arquitecto fosse pago como deve ser, seria caríssimo. Principalmente se se fizer parte de uma certa prática, uma cultura, em que a arquitectura portuguesa parece inscrever-se, e que é quase artesanal. São horas e horas de trabalho para fazer as coisas bem feitas, num país que não tem dinheiro para pagar isso. Portanto, os arquitectos vivem subalimentados. Raramente tive clientes ricos. A maior parte dos clientes não eram muito mais abastados do que eu.

JOSÉ Não sei se é caro. O investimento que os honorários de um projecto representam em relação ao que se gasta numa construção é, na maior parte das vezes, pequeno. Nós, arquitectos, é que fizemos muito mal a nós próprios durante muito tempo, e seria importante perceber como. Um dia destes passei a tarde na sala de espera do Hospital de São José, e é difícil imaginar pior do que aquilo em termos de arquitectura… Estou a falar simplesmente da qualificação do espaço, da forma como o espaço está organizado, a luz natural, a disposição das cadeiras onde as pessoas estão sentadas. Mas não me pareceu que estivesse lá alguém, fosse com uma dor de dentes ou com uma doença grave, que estivesse a pensar: “Que chatice, nesta situação terrível em que me encontro, podia estar num espaço melhor, que me recebesse melhor.” Parece-me que, para a maior parte das pessoas nós não somos precisos. Creio que o grande problema é esse. Obviamente, para fazer daquela sala de espera um espaço mais qualificado não será preciso assim tanto dinheiro… Aliás, os materiais que estão lá são caros, é lioz no chão, os tectos são umas placas metálicas, nada baratas. Com o mesmo dinheiro, bastava a vontade de quem ali manda, uns neurónios a trabalhar, alguma dedicação, um bocadinho de afecto…

J–A Porque não há termo de comparação nem termo de referência, não há precedência de uma certa cultura visual e espacial à escala de um país.

JOSÉ Talvez já tenha havido, acredito que já tenha existido

PEDRO Por um lado, não demonstramos socialmente a nossa necessidade; por outro, a nossa prática é muito colectiva, ou pelo menos sempre tive essa ideia. Mas para todos os efeitos o pouco reconhecimento que a arquitectura ainda tem é como arquitectura de autor. Entre estas duas coisas, a necessidade não demonstrada e a arquitectura de autor, um projecto de arquitectura parece ser o capricho de alguns. Portanto, não me surpreende como fomos recuando. E se alguma vez estivemos um pouco melhor de um ponto de vista legal, foi apenas por uma questão burocrática de organização social do trabalho, não foi porque os políticos acreditaram que éramos necessários. Por acaso, tive casos interessantes de clientes que tinham feito a sua própria casa; sabiam, tinham a experiência da asneira e do não saber. Nas casas que fizeram a seguir acreditavam no papel do arquitecto – não só na inteligência visível do desenho, mas na inteligência do espaço. Eles já sabiam o que é um espaço ter uma certa medida, ter uma certa orientação, tinham aprendido isso na pele.

JOSÉ Dividir a arquitectura em arquitectura de autor e arquitectura de não autor parece-me ser uma falácia. Uma coisa é dizer isso antes de se ter dado a divisão do trabalho, quando de facto não éramos precisos senão para fazer coisas muito especiais – as igrejas, os palácios… As pessoas encarregavam-se de construir tudo o resto que era preciso, pois havia uma tradição que era possível continuar, ir replicando, modificando. Mas a dado momento da História isso mudou. Toda a arquitectura, hoje, tem autor – é preciso dizer isto muitas vezes –, pode é ser um autor displicente, por exemplo. A autoria da arquitectura é de facto sempre colectiva, mas pode ser displicente, negligente, pode até ser má… Mas há sempre autor, há sempre alguém que coordena… O que se perdeu foi um sentido que a arquitectura terá de ter, como disseste a propósito da arte e da arquitectura, e de poderes ser um arquitecto mediano mas não admitires ser um artista mediano. Perdeu-se esta ideia de que pode haver uma arquitectura quotidiana muito boa. Aliás, apesar de tudo, também acho que há obviamente lugar para isso em qualquer arte. Não se pode esperar que todos os músicos, pintores ou cineastas sejam génios. No cinema, que é uma arte de que gosto muito, havia muitos cineastas a que ninguém se lembrava de chamar autores e que faziam filmes inacreditavelmente bons, escorreitos, numa espécie de produção constante. Não pode ser tudo gourmet, há o pão muito bom que comemos todos os dias, ou a lata de atum, maravilhosa. E isso havia também na arquitectura, basta olhar para a maior parte de Lisboa até aos anos 60.

J–A Como dizia o Coderch, “não é de génios que precisamos agora”.

JOSÉ Nem é só uma questão de não serem precisos, é uma questão de não ser possível. Não se pode esperar que todos os arquitectos sejam génios. Agora, todos os arquitectos têm de ter responsabilidade sobre aquilo que fazem, e algum amor por isso.

J–A Basta olhar para a estante atrás de ti para rebater essa ideia. Tens uma série de monografias, todas com o nome próprio do arquitecto. Há uma política de autores, para usar a expressão do mundo do cinema, onde essa política foi usada porque se começaram a identificar traços de autoria em certos realizadores. De alguma forma, essa autoria inflaciona os projectos. Vocês também são conhecidos por isso. Há uma gestão corrente do quotidiano, mas há traços próprios do trabalho de cada um. Estamos sempre perante estas duas dimensões: por um lado, a autonomia disciplinar da arquitectura e a sua integridade como um corpo de conhecimento técnico e, por outro lado, um corpo de vontades colectivas que têm de ser resolvidas. Inegavelmente, há também uma série de vocações, que têm que ver com autoria e individualidade, que penso terem sido importantes no caso português. Pelo menos nos últimos anos, isso foi mediatizado e garantiu uma certa notoriedade para a disciplina que, creio, mudou a mentalidade das pessoas e foi fundamental para a arquitectura. Há uma tensão entre essa necessidade de reforçar o lado anónimo ou corrente da prática e um desígnio de autoria.

PEDRO Convivo mal com isso, mas tens razão. A verdade é que não há actividade mais colectiva do que a nossa. Há pouco falávamos da autoria colectiva e provavelmente estávamos a pensar no atelier. Mas é essencial a encomenda, o desenho começa com o dono de obra, com o seu saber ou desconhecimento. Passa pelos promotores, pelos engenheiros, pelo construtor. Para mim, a parte mais exaltante desta obra colectiva é a construção. Cresci a pensar que construir é sempre edificante, é sempre bom, é sempre positivo. Hoje sabemos que construir é uma actividade predatória, tremenda. Mas continuo com uma ideia da construção como coisa boa, da exaltação que é estarem não sei quantas pessoas a juntar blocos de tijolo. Há uma magia no desenho e na obra. Fazer aparecer, fazer acontecer é fantástico.

J–A Mas estás a fugir à questão da caligrafia visual que conforma a autoria. Não há como escapar a isso, que é para vocês um desígnio, senão não tinham uma determinada consciência da profissão e da realidade.

JOSÉ É-me difícil falar sobre o meu trabalho nesse sentido. Entendo, mas a partir de um certo ponto é perigoso…

J–A Também é perigoso rejeitar ou negar a evidência desse facto.

JOSÉ Prefiro pensar assim: há arquitectos que dedicam afecto e inteligência àquilo que fazem. Depois, se lhes acontece terem um estilo reconhecível, ou se tiverem esse desígnio, como dizes, é uma questão secundária. Não sei se a autoria é uma coisa que se decida: “vou ser autor”. Os livros que vês aqui têm a ver com o mundo em que estamos, talvez haja poucos livros sobre arquitectura que não sejam feitos desta maneira. Mas repara neste livro espantoso do Ricardo Agarez, em que ele fez uma espécie de inventário da habitação nos anos 50 em Lisboa. Todas as obras têm nomes, mas não é uma escolha, é um inventário. Se houver mais destes livros, estarão aqui. Não estou a fazer o elogio do anonimato, não é isso. Creio é que devemos pensar que temos todos responsabilidade naquilo que fazemos. Não estou a falar dos “termos de responsabilidade”, digo responsável perante mim próprio, perante o mundo e os outros. Somos todos autores.

J–A Como diria o Jean-Marie Straub e a Danièle Huillet:“O grande mal é ofender o mundo.”

JOSÉ Temos de ter isso escrito na parede, sempre à nossa frente, para não nos esquecermos. Porque isso é que é difícil. Conseguir ter a alegria e a obstinação suficientes para conseguir fazer o melhor possível.

PEDRO O Zé disse e muito bem que a medida da boa arquitectura é o afecto. Quando se põe o afecto numa coisa, está a pôr-se a vida. Se não está a correr bem tem de se insistir e fazer bem, senão não há hipótese. Se há coisa que é importante para a vida é a arquitectura. Portanto, temos de pôr a vida, para que haja vida. [Ninguém se riu?]

JOSÉ É muito difícil ser arquitecto e ser eremita, ou estar mal com o mundo. A arquitectura é uma relação constante com o outro. É isso que se passa quando estamos a fazer arquitectura, para nós próprios e para os nossos amigos – que é o que eu sinto que estou sempre a fazer. Quando estou a pensar em arquitectura, a certa altura do projecto imagino-me não só a mim, mas também as pessoas de quem gosto, a vaguear pelos espaços: na minha cabeça, uma pessoa que amo profundamente vai descer aquela escada, e se não fica bem é porque a escada ainda não está bem. Não há contradição nenhuma aqui. Eu sou o outro. O afecto tem a ver com isto, só assim é que é possível. Sofrer com os outros, ser alegre com os outros, sentir com os outros. A arquitectura tem sempre de passar por aí.

 

AFINIDADES

J–A Gostava que nos falasses sobre a tua relação com o cinema. És um cinéfilo declarado e isso gerou uma espécie de coincidência entre um universo de que gostas muito e que é definidor da tua identidade cultural. Como para outras pessoas pode ser com a música, ou com outra coisa… Isso confere-te uma distância crítica em relação à arquitectura, isto é, teres um outro contraponto que te traz vantagens?

JOSÉ Espero que traga. Não sou eu quem vai dizer isso.

PEDRO Quando submetes os projetos ao teste dos teus amores, como num filme, é provavelmente isso que acontece.

JOSÉ Nunca tinha pensado nisso…

J–A O que quero perguntar é até que ponto devemos estar completamente embrenhados na arquitectura, ou em que medida é fundamental sermos convocados por outras coisas?

JOSÉ Não consigo imaginar outra maneira. Mistura-se tudo. Não consigo desligar botões: agora vou para casa e deixo de ser arquitecto, e vou ter um hobby que é o cinema, colecciono cromos ou selos… Não. Nem a dormir. Além do mais, antes de sermos o que quer que seja, somos pessoas, e temos gostos pelas coisas do mundo, para além de sermos padeiros, sapateiros, médicos ou… arquitectos.

As vantagens disto em relação ao trabalho que fazemos… Brancusi dizia que trabalhar é fácil, o que é difícil é pormo-nos em estado de trabalhar. E lembro-me também de uma entrevista ao Orson Welles em que o Bogdanovich lhe pergunta: “Que conselho darias a um jovem cineasta que estivesse a começar?” E ele responde: “Esforçar-se para compreender o melhor possível o que aconteceu aos homens nos últimos vinte mil anos.” Parece-me bem. Senão, de que vai tratar o cineasta se não conhecer o mais possível sobre a sua condição e sobre o mundo? Depois usa o cinema para trabalhar sobre isso. Podia usar a literatura. Com a arquitectura não é muito diferente.

J–A Isso configura um campo expandido de referências… através do qual uma pessoa se relaciona com o mundo. Companheiros que escolhemos como pares morais, não necessariamente da nossa área de trabalho.

JOSÉ Amigos. Não só no âmbito da moral, é no âmbito de muitas outras coisas. E muitos desses amigos são mortos. Isto é muito importante. A contemporaneidade para nós são os últimos vinte mil anos.

J–A Pedro, como é que desenvolveste essa relação pessoal com os Açores, ao ponto de se tornarem uma fonte de trabalho, ao ponto de ser uma alternativa à concorrência dos centros de Lisboa e Porto?

PEDRO Nos anos 80, era fora dos centros que havia trabalho, foi aí que muitos traçaram os seus percursos profissionais. Eu tive a sorte de uma namorada me convencer a ir para lá. Eu não precisava de ser arquitecto, foi aquele território que me estimulou, muito mais do que qualquer professor, escola ou colega. Não sabia que existiam lugares assim, provavelmente também tinha pouco mundo. E aquilo foi um estímulo muito grande para ser arquitecto: um território com uma qualidade de entendimento entre a topografia e a ocupação agrícola… da arquitectura à paisagem, tudo parecia perfeito. O Jorge Rivera, que actualmente dá aulas em Évora, deu-me a ler o Construir, Habitar, Pensar do Heidegger… e aquilo fazia todo o sentido, parecia o mundo pré-moderno descrito pelo Heidegger. Lá a pré-modernidade subsistiu, passando o arco da história directamente para a era das comunicações e da Internet, sem a modernidade avassaladora dos centros europeus. Também houve uma modernidade na transformação da paisagem, até mais sofisticada do que a industrialização de algumas actividades, mas isso era outra história. Isso foi o mote… havia esse estímulo do lugar e a tremenda responsabilidade de intervir sobre ele, de o transformar. Isso foi a minha formação de base.

 

O PROLETARIADO DOS PROFESSORES

J–A O ensino da arquitectura também é uma prática comum aos dois? Como é que vocês encararam o ensino da arquitectura? Foi o instinto do ter uma base, um ordenado para apoiar o atelier?

PEDRO Foi, e voltou a ser para pagar a renda.

J–A Independentemente da franqueza, que é importante, sobre o ensino ser uma forma de rendimento e de sobrevivência, há condições específicas do ensino de projecto que, atrevo-me a dizer, vos estimulam.

PEDRO Sou capaz de dizer que, a seguir aos Açores, o meu maior estímulo para ser arquitecto foi o ensino. Um pouco à força, porque para ser bom professor é necessário investimento, mas só assim é que és estimulado. Coimbra teve várias fases, mas foi sempre uma escola estimulante, até nas fases menos boas. Há uma motivação colectiva, independentemente dos desacordos ou conflitos, que mobiliza. E que os próprios alunos obrigam… são o sentido da escola. Não é a investigação. Sou professor porque há alunos.

J–A Já dão aulas há bastante tempo. É diferente ensinar projecto agora? Sentem diferenças nos alunos ou na forma de ensinar?

JOSÉ Até há pouco tempo, os professores, maus ou bons, tinham uma vida, um ofício, e dar aulas fazia parte dessa vida profissional. Creio que isto não acontecia só com a arquitectura. Hoje em dia, no ensino da arquitectura, com a carreira académica, há uma proletarização dos professores e um afastamento quase total dos professores relativamente ao ofício, salvo algumas excepções, quase folclóricas. Isto não pode deixar de trazer diferenças. Boas ou más, o futuro o dirá.

Para mim dar aulas funciona como um dos lados do trabalho da arquitectura. Trazemos o pensamento do projecto para as aulas, e das aulas para o atelier. Mas é difícil continuar a ter hoje esta relação, digamos, oficinal com o ensino. Com Bolonha, há cada vez menos tempo para as aulas, para a sala de aula. Mas quem talvez tinha razão era o Eduardo Trigo de Sousa, que quando dava aulas na faculdade disse uma vez ao João Pernão: “Não podemos dizer a ninguém que a arquitectura não se ensina, senão perdemos o emprego!”

PEDRO E a semestralização pós-Bolonha foi ruinosa, estar quase dois meses parado… Isso combinado com menos horas de aulas exige um sistema bastante diferente de ensino. O que antes se adquiria com o erro agora tem de se antecipar, e dizer: “Isto não se faz.” Nas aulas teóricas pode tentar explicar-se porquê, pois não temos tempo para fazer asneiras. É uma perda. A arquitectura que se “aprendia” agora “ensina-se”.

Este texto foi publicado no J-A 252, Jan–Abr 2015, p. 560–567.

Lisboa, 31 de Março de 2015.
Conversa conduzida por
Diogo Seixas Lopes e Patrícia Barbas.
Fotorafia: Jorge Nogueira