J–A conversa com Maria da Conceição Melo e José Carlos Portugal
Num contexto de mudança no âmbito do investimento público para o desenvolvimento do território e numa conjuntura de retracção evidente do investimento privado com vista à urbanização e edificação, é necessário debater o trabalho e as tarefas dos arquitectos. Mas também é necessário compreender a situação disciplinar da arquitectura a partir das instituições públicas e das suas funções. Para averiguar os efeitos destas mudanças e algumas das incertezas que rondam a profissão, o J–A foi conversar com dois arquitectos com percursos e experiências profissionais diferentes no trabalho municipal.
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INTRODUÇÃO
CONCEIÇÃO Quando cheguei à Câmara Municipal de Santo Tirso, em 1984, não havia nenhum arquitecto nos serviços municipais. Estavam a iniciar os trabalhos para o primeiro Plano Director Municipal e foi preciso formar uma equipa de trabalho. Fui contratada para fazer parte dessa equipa. Antes de ter ido para a Câmara não havia sequer gestão urbanística, não havia planeamento, não havia planos em vigor. Portanto, dentro da Câmara, não havia experiência de planeamento. Na época, os arquitectos Manuel Fernandes de Sá e Nuno Portas iniciaram a colaboração com alguns municípios do vale do Ave. Estavam a orientar a constituição de equipas técnicas dentro das câmaras, com vista a formar grupos de trabalho para responder às novas questões, relacionadas com o ordenamento do território e com o urbanismo. Nós crescemos aí e fomos aprendendo com eles e, depois, sozinhos. Um dos problemas que fui sentindo no meu percurso de trabalho foi a falta de acesso à informação e ao debate teórico, que são essenciais à qualidade da nossa prática. Se não há uma força muito grande da nossa parte para contrariar esse isolamento, acabamos por ser absorvidos pela tal máquina burocrática e administrativa, correndo o risco de abandonar a nossa relação com a disciplina da arquitectura e do urbanismo.
JOSÉ CARLOS Sou da mesma geração da Conceição, embora a minha posição seja muito diferente. Não pertenço aos quadros da Câmara da Maia, sou consultor externo, embora regular. A minha actividade tem limites difusos: vai do macroplaneamento ao desenho urbano, e posso ainda ser consultado para um processo de obras particulares.
J–A Ao contrário do tempo em que iniciaram a vossa prática, em que os arquitectos eram escassos, hoje há muitos arquitectos. Os quadros dos municípios estão mais ou menos preenchidos. Entretanto, os modelos de planeamento estabilizaram. Hoje, o contexto de trabalho nos municípios é muito diferente?
CONCEIÇÃO Na Câmara de Santo Tirso há poucos arquitectos e estão quase todos em duas unidades orgânicas – cinco arquitectos na Divisão de Planeamento e Projecto, e dois arquitectos na Divisão de Obras Particulares. Isto é assim por uma razão muito simples: é legalmente impossível um engenheiro informar um projecto elaborado por um arquitecto que entre para licenciamento. Mas creio que, na generalidade, os arquitectos encaram o exercício da profissão numa autarquia como um limite à sua realização, à sua vontade de projectar; se não têm projectos para fazer e têm de encomendar um projecto, ou de organizar um caderno de encargos, dizem: “Não faço isso, porque sou arquitecto.” Existe alguma resistência em entender que o papel do arquitecto na Câmara tem de ser mais abrangente.
JOSÉ CARLOS Um dos grandes problemas que vivemos hoje resulta de termos acreditado que resolvíamos tudo com leis. Regulamentamos e decretamos tanto que não chegamos a lugar nenhum, e distanciamo-nos dos problemas da morfologia da cidade e do seu quotidiano, da escala urbana, do seu dia-a-dia e das coisas simples, da luz, do vento, da chuva. Acreditando que se desenhava a cidade com decretos-leis, desembocámos num cul-de-sac. Isso teve muito mais influência do que o facto de haver mais arquitectos, e pesou mais do que qualquer mudança de contexto. Este sequestro do exercício disciplinar, aprisionado numa teia sem fim de regulamentação e legislação, obliterou o campo disciplinar a muitos arquitectos, e consequentemente a responsabilidade de o exercer.
J–A As instituições são as pessoas que as fazem. Neste caso, serão os decretos a bloquear as instituições?
JOSÉ CARLOS Continuam a ser as pessoas. Não estou a desresponsabilizar as pessoas. Pelo contrário. Estou a responsabilizá-las. O que isto permite, em última análise, é que dentro de uma câmara um arquitecto não fale de arquitectura. Alguns arquitectos deixaram de fazer arquitectura e foram apanhados na teia, por demissão também. Hoje em dia, as competências de um arquitecto numa divisão de gestão urbana podem reduzir-se à simples verificação da conformidade administrativa de um processo que lhe chega às mãos. Como se fosse uma check-list de normas regulamentares. Por outro lado, a grande parte dos autores de projectos não tem cultura disciplinar de diálogo, não consegue debater arquitectura. O arquitecto municipal deveria ter a postura de dizer: “Penso que o projecto coloca questões que não são passíveis de uma informação interna de licenciamento deferido/não deferido apenas. Não se importa de passar por cá para termos uma conversa, discutirmos o projecto?” Mas a verdade é que a receptividade dos autores também é mínima.
CONCEIÇÃO Nem o autor de um projecto sabe discuti-lo, nem quem está do lado de cá, do lado do município, sabe discutir com ele.
FERRAMENTAS E ILITERACIA DISCIPLINAR
J–A Durante os últimos trinta anos passou-se da experiência de implementação de sistemas de ordenamento e gestão do território para uma grande acumulação de instrumentos. As ferramentas que temos hoje são suficientes e úteis?
JOSÉ CARLOS Temos imensas ferramentas, mas fazemos muito pouco com elas. Ou porque se anulam umas às outras, ou pela sua falta de operacionalidade e interactividade. Em determinadas situações, as soluções devem ser dinâmicas, assumindo o risco de se cometerem erros. Ao mesmo tempo, existem pressões derivadas do ciclo eleitoral que obrigam a executar obra, hipervalorizando os resultados; e desvalorizam-se os processos ou o estudo. Isto é altamente perverso para a gestão da cidade, que deve ser paulatina e quotidiana, perspectiva e prospectiva… Com a normativa que temos hoje, os processos de planeamento tornam-se ainda mais intricados, obsessivos e inconsequentes.
CONCEIÇÃO Eu estou agora a ver os resultados dos primeiros planos que fizemos quando cheguei a Santo Tirso. É preciso tempo. Quando trabalhamos à escala territorial, é preciso dar tempo para ver resultados. Na Câmara de Santo Tirso há uma estabilidade técnica, e uma estabilidade política, que permitiu a continuidade necessária para comprovar resultados. É preciso ter a ideia, fazer o plano, fazer o projecto, candidatar-se a financiamento e construir. Este ciclo é muito maior do que o ciclo político.
JOSÉ CARLOS Mas nesse ciclo que designaste há muitas subtarefas, ou melhor, muita da energia despendida nesse ciclo é lateral à prática disciplinar, porque é excessivamente burocrática, normativa, regulamentadora e muito defensiva. Formatámo-nos para nos defendermos… Do que eu precisava era de ter as ferramentas usadas nos primeiros Planos de Urbanização – que eram desenhos, sobretudo desenhos, com intenção… Hoje em dia, um plano são pilhas de documentos, toneladas de texto. Quando digo “Já estou cansado de ler, mostra-me os desenhos da cidade”, os desenhos são pobres de pensamento. São muito pouco propositivos. Estou sempre a tentar subverter essa situação e a tentar pôr os arquitectos a desenhar. Alguns arquitectos perderam em menos de quinze anos a capacidade de fazer um esquiço, de pensar e propor desenhando.
J–A Normalmente são os arquitectos que não trabalham nas câmaras que costumam maldizer os arquitectos que trabalham nas câmaras!
JOSÉ CARLOS Há um acréscimo preocupante de iliteracia arquitectónica na profissão. Creio que nos últimos cinco anos se agravou imenso. Incultura e iliteracia disciplinar.
CONCEIÇÃO Tanto do nosso lado como de fora. Muitas vezes, eu tenho bastante dificuldade em encontrar argumentos para defender os arquitectos dentro da Câmara.
JOSÉ CARLOS Digo isto como matéria de facto e não como matéria de opinião. Basta ver o que muitos arquitectos fazem e que é apresentado na Câmara. Agora imaginem essa tendência conjugada com a dominante do dito pragmatismo que transforma tudo em simplex e que faz quase tudo apenas com base na responsabilidade profissional, por causa da dinâmica económica… Estou muito apreensivo!
J–A Juntar a burocracia à iliteracia tem um resultado explosivo?
JOSÉ CARLOS Claro. E é esquizofrenia.
CONCEIÇÃO Há outra coisa. Cada vez mais, a legislação responsabiliza mais os técnicos, dá-lhes maior responsabilidade civil. E as pessoas têm medo… Depois, o que acontece é que a maior parte dos técnicos não assume a posição de pegar no lápis – posição que o José Carlos defende e eu partilho –, porque têm medo de dar a sua opinião, têm medo do risco e de serem penalizados.
JOSÉ CARLOS A minha utopia é poder discutir cada projecto com o seu autor. Essa é uma ajuda preciosíssima. Quando, como arquitecto, vou para um território que não conheço, se tiver alguém de lá que fale a linguagem disciplinar da arquitectura é muito enriquecedor e uma grande vantagem. Porque, além das regras que regem essa terra, cada vez mais comuns e universais, o arquitecto municipal conhece aquele território em concreto, conhece as pessoas, conhece as necessidades, conhece a atmosfera…
CONCEIÇÃO Mas os técnicos municipais, na maior parte das vezes, não têm estas capacidades. Têm medo, porque se não fizerem cumprir aquela alínea do PDM [Plano Director Municipal] incorrem numa ilegalidade grave, e isso pode levar a perda de mandatos políticos.
JOSÉ CARLOS Tudo tem de ter soluções compatíveis com o regime normativo que existe. Mas isso não justifica termos perdido a capacidade de discutir arquitectura. Não discutimos arquitectura porque não o sabemos fazer. Os RJUE [Regime Jurídico da Urbanização e Edificação] e os RJIGT [Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial] foram necessários e tinham de ser feitos. Mas perdeu-se completamente o pé. Hoje, na caixa das ferramentas não tenho um lápis. Estou cheio de ferramentas para fazer tudo. Mas quero um lápis de mina mole, e não o tenho. Perdi o lápis no meio das outras ferramentas. Isto, do ponto de vista do arquitecto, é preocupante. Se não forem os arquitectos a fazer arquitectura, quem é que faz a arquitectura? Os reguladores?
SOBREPOSIÇÃO E ARTICULAÇÃO
J–A Há muitos municípios, e cada um tem os seus níveis de gestão subordinados às várias tutelas do Estado. Como entendem a articulação com os municípios vizinhos e com as tutelas superiores.
JOSÉ CARLOS A minha experiência é má. A administração central é distante, ponto final. Com os vizinhos, em termos de consciência da continuidade territorial, há falta de rotinas. Embora, no que toca a procedimentos, os processos estejam bastante equalizados, em continuidade territorial continuam a ler-se as fronteiras administrativas.
CONCEIÇÃO A experiência nos municípios do vale do Ave demonstra a dificuldade das tutelas em aceitar determinados conceitos que, não sendo os mais ortodoxos, não correspondem aos modelos de ordenamento territorial do resto do país. Mas, com o tempo, foram-se aceitando estas diferenças. Hoje em dia, até há sensibilização e aproximação às questões da especificidade que nós levantamos desde há muito tempo. Há mais abertura e foram-se abandonando os cânones mais rígidos do planeamento. Mas gostava de falar da articulação necessária dentro da própria estrutura de uma câmara municipal. Acho que é importante. No meu caso, porque estou num cargo de chefia, tenho a possibilidade de relacionar aquilo que é o planeamento físico com o plano plurianual de investimento (instrumento de planeamento orçamental) da Câmara. Mas isso muitas vezes não acontece. Na maior parte das vezes, o plano de actividades e os investimentos previstos não se cruzam com aquilo que está previsto fazer em termos de planeamento. Porque é que isso não está articulado?
J–A Portanto, além da articulação externa, ainda há desfasamentos internos entre a gestão política, os critérios de planeamento territorial e a sua execução pelos serviços técnicos.
CONCEIÇÃO Ou entre vários serviços e competências técnicas. Há a Divisão de Cultura, por um lado, a de Turismo, por outro, a de Património… e é difícil fazer cruzamentos entre elas.
JOSÉ CARLOS É verdade que há essa dificuldade no interior das câmaras, e há pouca cultura de interdisciplinaridade. Quando entrei na Maia, foi criada uma coisa chamada INTERDEP, que não é mais que uma reunião interdepartamental. Iniciou-se com o intuito de resolver problemas chamando pessoas de várias áreas disciplinares. Parecia a Torre de Babel. Ao fim de três horas tínhamos concluído pouco, porque falávamos linguagens diferentes. Todos falavam imenso, mas mal se entendiam. Hoje, protegidas pelo executivo, essas reuniões já não são notícia, são feitas com muita frequência para cumprir objectivos específicos. As rotinas de trabalho interdisciplinar criam-se com a prática. A debilidade da relação intermunicipal foi uma coisa que senti ainda recentemente quando estive a representar a Maia na elaboração do Plano Estratégico de Base Territorial da Área Metropolitana do Porto. É um macroplano, que suportará uma série de acções da área metropolitana e que deverá orientar os investimentos estratégicos a alojar nos fundos europeus do novo quadro comunitário de apoio. Imaginem dezassete municípios numa sala. Percebem-se rapidamente duas coisas: a primeira é que ninguém está habituado a um trabalho conjunto com dezassete municípios, ninguém tem linhas de diálogo rotinadas; a segunda é que todos, nos seus municípios, já perceberam que a segmentação do território não leva a lado nenhum. Se isto não for visto como uma metrópole, como um território de continuidades e transições equilibradas, não temos nenhuma relevância a nível europeu. Todos percebem o que deve ser feito, mas ninguém tem rotinas para o fazer.
CONCEIÇÃO Eu trabalhei com a Amave [Associação de Municípios do Vale do Ave], pioneira no país no que se refere ao associativismo municipal, e na altura, nos anos 90, já tinha instrumentos deste género, de planeamento estratégico. Funcionou muito bem porque havia objectivos comuns e estavam todos centrados na resolução de problemas concretos, como no caso do processo e despoluição do rio Ave. A Amave acabou porque alguns municípios passaram a formar parte de outro quadrilátero, ao mesmo tempo que Santo Tirso passou a integrar a Área Metropolitana do Porto [AMP], onde talvez não devesse estar. E estas associações tendem a ser sobretudo políticas. Talvez por isso mesmo, o que actualmente acontece na AMP é a dificuldade em conciliar um conjunto de municípios com realidades muito diferentes. A preocupação e importância de ter um projecto comum, e de haver coordenação de interesses ou uma estratégia em rede, é mais uma necessidade técnica do que politicamente sentida e admitida. Parte mais do nosso lado, dos técnicos e dos consultores, do que do lado político.
CRESCIMENTO E RETRACÇÃO
J–A Durante anos, o planeamento respondeu a ópticas de crescimento e de expansão. Actualmente, observa-se uma tendência contrária. Há retracção. Quais são as respostas do planeamento a este novo desafio?
CONCEIÇÃO Esta retracção é bem visível, e por isso estamos quase ansiosos, à espera que “entre” um novo processo de obras. Deveríamos estar a pensar nos planos de que precisamos agora. Esta situação de retracção traz consigo outras questões e inconvenientes. Como há falta de investimento, se aparecer uma hipótese de investimento, mesmo que seja na reserva agrícola ou noutra qualquer situação de impossibilidade legal, temos de tentar encontrar maneira de o acolher. É o reverso da medalha.
JOSÉ CARLOS Há muita coisa a fazer na cidade que já existe. A mais antiga precisa de se reabilitar, restaurar, etc.; a mais recente precisa de se qualificar. Para isso, apesar de tudo, tenho visto que há muita formação; houve evolução na tecnologia e nas empresas. Portanto, grande risco de asneiras não há-de haver. Por outro lado, numa sociedade que sistematicamente perde emprego e não tem solução para as pessoas não valerá a pena estarmos a falar de urbanismo. Para as câmaras e para os seus técnicos, a situação que vivemos é perturbadora em muitos aspectos. Mas menos dinâmica na construção também traz mais tempo para estudar. Insisto na necessidade de formação e na cultura em arquitectura, no desenho do território e no pensamento sobre a cidade. Não se investe muito nesta formação disciplinar contínua; investe-se muito em formações laterais também importantes, sobre boas práticas disto e daquilo, mas não em formação disciplinar arquitectónica. É isso que deve ser feito: cuidar da cidade que já temos, revisitá-la e fazer um exercício de análise do que foi feito, com um sentido disciplinar crítico e prospectivo.
CONCEIÇÃO Santo Tirso é um caso um pouco atípico; não sei se tem relação com a gestão urbanística feita ao longo destes anos. Praticamente não temos habitação degradada; a necessidade de reabilitação habitacional, de que tanto se fala hoje em dia, praticamente não existe e não há excesso de construção. Durante muito tempo fomos acusados de não deixar desenvolver Santo Tirso: “Vieram para aqui as arquitectas e não deixaram evoluir a cidade.” Santo Tirso sempre teve habitação mais cara, porque tinha menos habitação e cresceu de um modo mais equilibrado.
J–A Isso foi uma política explícita ou um modelo de planeamento que controlava o crescimento?
CONCEIÇÃO É verdade que o nosso PDM funcionou e que houve poucas “fugas” ao plano. E julgo que o resultado se vê quando olhamos comparativamente para os municípios que nos circundam.
J–A Mais importante do que o plano é a sua aplicação.
CONCEIÇÃO E quem está na gestão.
JOSÉ CARLOS Nós também não tivemos grandes desequilíbrios em excesso de construção de habitação. Mas em última análise não deve ser um arquitecto a decidir o que se faz e o que não se faz. Posso dizer, ainda que de uma forma algo provocatória, que um arquitecto pode ser mais útil a ajudar a não fazer do que a fazer.
CONCEIÇÃO Isso é bom. Quando passo num determinado local, olho para ele de uma maneira com que mais ninguém olha. Digo: “Aqui podia estar aquilo que não está.”
JOSÉ CARLOS Vês uma veiga fantástica e dizes: “Fui eu que fiz!” (risos)
CONCEIÇÃO Sim, no fundo a imagem da cidade não é só o que se constrói, é também feita pelos vazios que resultam do que não se constrói.
J–A Portanto vale a pena começar a planear as demolições?
JOSÉ CARLOS Vale a pena discuti-las. Um investimento que falha, que não tem sucesso, que não cria cidade nem a beneficia, que não corresponde a uma necessidade… No consumo, por exemplo, um shopping que faliu serve para quê? É versátil para acomodar outros usos?
CONCEIÇÃO Mais do que planear as demolições gostava de introduzir outra preocupação relativa à quantidade de edificações dos anos 80 e 90. São maioritariamente edifícios de habitação de má qualidade construtiva, que actualmente começam a falhar e a apresentar problemas infra-estruturais, nos revestimentos exteriores, etc. Vai ser um novo problema recuperar este conjunto edificado. O que fazer?
JOSÉ CARLOS De todas as formas não nos toca muito directamente, a não ser quando num condomínio as pessoas se zangam e são incapazes de gerir o próprio prédio. Quando não se entendem, vão à Câmara para procurar perceber o que se pode fazer. É uma questão que não tem resposta genérica, apenas caso a caso.
PARTICIPAÇÃO
J–A Nos últimos anos têm notado uma maior vocação participativa dos habitantes nas decisões técnicas ou políticas da câmara municipal?
CONCEIÇÃO Acho que a esse nível as pessoas são um pouco esquizofrénicas. Por exemplo, a questão da água e do saneamento: tem sido uma exigência popular, mas, quando as redes estão construídas, as pessoas não querem fazer as ligações, porque têm maiores custos. Lembro-me também de algumas reclamações no nosso Plano Director, quando definíamos a Reserva Agrícola: “Acho muito bem que exista a Reserva, mas pode passar no terreno do vizinho do lado, porque no meu não dá jeito…” É sempre assim: as pessoas têm um comportamento e uma visão socialmente correcta, mas na prática têm o comportamento oposto. Nas discussões públicas definidas nos instrumentos de gestão do território não existe participação efectiva.
J–A Mas discute-se cada vez mais a organização popular a partir de grupos de interesses, dentro de bairros, com interesses muito específicos. Como é que isso depois é absorvido?
JOSÉ CARLOS Não sinto que isso chegue ao destino, porque não há rotinas – ainda que existam interesses e instrumentos de participação e se procure facilitar esses processos. Somos todos obrigados a ter um portal na Internet, formatado de maneira a permitir às pessoas participar… É uma desilusão completa. Ajuda pouquíssimo. As participações efectivamente construtivas, aquelas que nos podem fazer descobrir o que nós não sabemos, são raríssimas. As participações consistentes e que permitam operacionalizar são raríssimas. Esses impulsos gregários de manifestações ou de interesses normalmente esgotam-se em si próprios.
J–A Porque não têm destino?
JOSÉ CARLOS Não têm destino nenhum. Contudo, essa massa da rede social chega directamente ao poder político e acaba por nos condicionar da pior forma. Substantivamente, não tem verdadeiramente contributos e chega lá pela via mais errada: a da influência. Para os políticos, é preciso dar resposta: temos de fazer qualquer coisa, porque estão a contestar, sem que se esteja a contestar nada. As pessoas, tendo possibilidade de, com um clique, reagir a uma coisa que é circunstancial, fazem-no. E fazem-no com tal agressividade que chega ao gabinete de apoio, lá em cima, e vai descer aos técnicos.
CONCEIÇÃO Creio que a participação pública ganhava muito se fosse feita menos individualmente e mais através de organizações. O aumento e o investimento desse género de organizações cívicas, e o aumento da literacia urbanística, relacional e ambiental ajudar-nos-ia muito.
JOSÉ CARLOS É verdade. Temos alguns bons exemplos. São é muito poucos. As poucas participações consistentes provam a utilidade das estruturas associativas, por menores que sejam, e percebe-se que os assuntos já chegam discutidos. Hoje em dia há ferramentas que permitem uma grande eficácia para essas mensagens chegarem a quem toma as decisões.
CONCEIÇÃO E cada vez mais os projectos que vão ser financiados no novo quadro comunitário de apoio são projectos integrados. São projectos que têm de aliar a componente material ao envolvimento de parceiros, organizações e associações.
JOSÉ CARLOS É o triângulo do ISI: Inteligente, Sustentável e Inclusivo. Entenda-se por inteligente o investimento que é produtivo e que é justificável, que tem raízes na necessidade do território. Por sustentável, o que for feito de forma menos agressiva possível, mas também com um certo padrão de vida, que nivela por cima. E por inclusivo o que agrega a participação social e que, sobretudo, corrija ou cuide de outro enorme problema que temos como país, que é o envelhecimento da população.
CONCEIÇÃO Perante isto, o papel do arquitecto numa autarquia tem de alargar o seu âmbito.
JOSÉ CARLOS Mas não podemos deixar de fazer arquitectura. Temos de guardar três ou quatro horas do dia para pensar em arquitectura, para fazer arquitectura ou, pelo menos, para fingir que estamos a fazer arquitectura.
Este texto foi publicado no J-A 250, Mai — Ago 2014, p. 390 – 397.
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